Notícias admin 4 de outubro de 2010 (0) (110)

Quer correr a Two Oceans? Pegue um onibus!

Duas semanas antes da corrida, peguei uma gripe que não sarava. Quanto mais se aproximava o dia da prova, a tosse piorava, em vez de sumir. Comecei a ficar com medo de não conseguir completar o percurso e esta insegurança foi tomando conta de mim. Para que a família não começasse uma campanha para que eu desistisse e postergasse meus planos, não partilhei minha preocupação com ninguém, mas meu coração sexagenário estava apertado.

Na hora da largada, já dentro da baia predeterminada, notei dois corredores muito altos e fortes, cheios de adereços na cintura, carregando cada qual uma bandeira onde estava impresso o tempo previsto para conclusão da prova: 7 horas (tempo-limite, para os 56 km). No número de peito havia além do nome de ambos, a quantidade de vezes que tinham desafiado o percurso com êxito – algo próximo de sete, oito vezes, o que não deixava dúvidas em ninguém sobre a possibilidade de não pisarem no tapete de chegada em tempo hábil. Juntei-me ao grupo como um náufrago agarra uma tábua de salvação, sem saber que estava começando uma das mais divertidas provas da minha vida.

O "ônibus das 7" era composto por cerca de cinqüenta pessoas, todas se saudando festivamente, como velhos conhecidos. Percebi que poucos eram os marinheiros de primeira viagem, como eu, e a estes os veteranos dedicavam palavras de apoio e ânimo especiais, garantindo-nos pleno êxito.

Ao ser dado o tiro de largada, um dos guias postou-se à frente e o outro da metade para trás do pessoal, mantendo este posicionamento durante toda a prova, como cowboys que tangem gado pelos campos, sem deixar que nenhum desgarre. Pelo contrário, iam arrebanhando mais adeptos à medida em que os quilômetros ficavam para trás, dentre os que tinham sido muito afoitos e partido  forte demais e já  estavam se exaurindo. O ritmo da corrida era variado, acelerando nos terrenos planos, diminuindo o ritmo nos pequenos aclives e tomando extremo cuidado para que ninguém desembestasse nas descidas, arruinando os joelhos. "A velocidade mata", gritavam em uníssono os dois líderes, desde o começo.

CÂNTICOS E BRINCADEIRAS. Para ser percorrido dentro do prazo determinado, o trajeto foi cuidadosamente dividido em trechos em que corríamos e outros em que caminhávamos, fazendo exercícios de respiração, levantando e abaixando os braços, sob o comando entusiasta dos líderes. Cânticos e gritos eram uma constante. Volta e meia um dos líderes berrava que os "meninos" estavam com ótima cara, mas que as "meninas" estavam como sempre muito melhor, esta última parte num tom de voz absurdamente libidinoso, tão despropositado nas circunstâncias, que ninguém conseguia conter o riso.

Por vezes o grupo feminino que estava à frente, eu inclusive, se adiantava um pouco mais, e como alerta para que reduzíssemos o passo, nosso chefe bradava que iria beliscar os traseiros de quem se desgarrasse, lembrando-nos do chão que havia ainda pela frente, moderando nosso entusiasmo. Quando possível, os quilômetros que deveríamos correr eram medidos pela quantidade de postes existentes no trajeto e com isto, por cada um que passávamos, íamos diminuindo do número final, fazendo em voz alta a conta, o que estabelecia metas curtas, psicologicamente muito compensadoras.

O quilômetro deixado para trás era comemorado com uma musiquinha, cuja letra dizia que "mais um havia se transformado em pó". Ao passar pelos pontos de abastecimento, os guias se muniam de pacotinhos extra de água, que usavam para dar um banho generalizado na platéia postada ao longo das calçadas, o que provocava a maior arruaça. Os que estavam vendo a corrida acompanhados de cachorros, eram surpreendidos com os latidos de todo o grupo, enquanto o guia perguntava aos brados "quem havia deixado o cachorro sair de casa". Mais risadas. Por vezes caminhávamos sob comando, de costas, para relaxar os músculos, outras, sacudindo os braços acima da cabeça, sempre na maior farra.

UM TOMBO, MAS TUDO BEM. Na altura do km 28, tropecei em um "olho de gato" que separa as pistas de rodagem e lá fui eu para o chão. Fui levantada e socorrida imediatamente pelos integrantes mais próximos do nosso "ônibus". Um sacou da pochete um spray desinfetante, outro ofereceu-me ursinhos de gelatina energética para adoçar a boca, no esquema de "um por todos, todos por um". Mais duas pessoas, ao longo do percurso,  tiveram o mesmo tipo de acidente e foram prestimosamente socorridas.

Se cada quilômetro era comemorado, imaginem a festa que foi quando o ônibus chegou na marca da metade do percurso!

Ao passarmos pelo último posto de corte, a 12 km do final, quando já me senti adentrando o estádio (!), despedi-me dos líderes, certa da minha capacidade de fechar o percurso em tempo hábil e procurei dali para a frente, dar o máximo que podia. Ganhei vários minutos de vantagem, mas confesso que senti falta da folia. Já com a medalha azul no peito e instalada na barraca de recepção aos estrangeiros, assisti a multidão delirar com a chegada do ônibus das 7, último a vencer os 56 km entre os dois oceanos que banham a Cidade do Cabo.

Dias mais tarde, aguardando o embarque, perambulando pelo aeroporto, ouvi numa das lojas, a música " Shosholossa", que se tornou o hino da ultra maratona mais famosa da África do Sul, a Comrades  que corri nos dois anos anteriores, como o fez o editor desta revista, Tomaz Lourenço. Senti uma emoção enorme. Fiquei parada escutando e rememorando a experiência espetacular que tive a ventura de viver. Apesar de linda, com organização perfeita, a "Two Oceans" não tem o carisma da Comrades, e o respeito com que são tratados os que dela participaram com êxito, demonstra a importância suprema do evento em todo o continente africano. Que sirva a mais curta, de treino para a mais longa, como fazem os que por lá moram – ambas merecem a fama que tem.

Maria Eugênia Cerqueira é assinante de São Paulo

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