No dia 24 de maio de 1921, na África do Sul, um sobrevivente de guerra, chamado Vic Clapham, realizou a edição inaugural daquele que, segundo ele idealizou, se tornaria um memorial vivo em homenagem aos combatentes mortos na Primeira Guerra Mundial. Era uma corrida de rua, mas não uma qualquer. Realmente para poucos, dado o seu grau de dificuldade, com apenas 34 atletas perfilados, a largada ocorreu na cidade de Pietermaritzburg. E somente 16 cruzaram a linha de chegada em Durban, 89 quilômetros distante. Mal sabia ele que, talvez despretensiosamente, estava nascendo ali a mais famosa ultramaratona do mundo, a Comrades Marathon, prova que passou a ser realizada anualmente, ladeada de tradições, entre as quais o fato de inverter o percurso a cada edição (Down Run, quando termina em Durban, que é ao nível do mar; e Up Run (87 km), no sentido inverso).
Com apenas 21 anos de idade, estreou na Comrades um franzino atleta de cabelos louros esvoaçantes, concluindo na não desprezível 43ª colocação. Natural de Hong Kong e naturalizado sul-africano, bacharel em artes pela Universidade de Witwatersrand, em Johanesburbo, seu nome era Bruce Fordyce. Cruzando a linha de chegada em 6h45, quase uma hora após o vencedor, ninguém imaginava que o maior nome de todos os tempos estava, bem ali, escrevendo o seu primeiro capítulo de uma trajetória repleta de conquistas. O mais incrível é que a primeira corrida de toda a sua vida ocorreu apenas um ano antes, quando ele deu um leve trote de 10 minutos pelo campo de rugby da universidade.
Com inquestionável evolução, após a 14ª colocação obtida em 1978 (6h11), o 3º lugar em 1979 (5h51) e o vice-campeonato em 1980 (5h41), dessa vez, em sua quinta participação, Bruce deixou todos os oponentes para trás e conquistou a sua 1ª vitória: 5h37. E, com uma hegemonia histórica, obteve 8 vitórias consecutivas entre 1981 e 1988, interrompendo a sua série de vitórias em 1989 para disputar o Mundial de 100 km que, em caso de sucesso, daria a ele uma premiação em dinheiro suficiente para comprar uma casa. Resultado: com o tempo de 6h25, quebrou o recorde mundial e… trocou de casa.
RAINHA DAS ULTRAS. Bruce Fordyce, definitivamente mito sul-africano e apelidado de Rei da Comrades, vence em 1990 pela 9ª vez a prova que também é conhecida como a Rainha das Ultras, feito jamais igualado. A partir de 1991, Bruce passou a participar apenas por lazer e presenciou, por muitos anos, diversos atletas tentarem, sem sucesso, quebrar o recorde que ele estabeleceu em 1986: 5:24:07, para a Down Run – esse tempo só foi batido em 2006.
Na África do Sul, Bruce não consegue dar um passo sem ser reconhecido. Mais do que um ex-atleta exemplar, ele é, acima de tudo, uma figura humilde e simpática. É surreal imaginar que esse mito conquistou tantas glórias sem sequer ter tido um treinador: tendo como mentor o catedrático Tim Noakes (uma das maiores sumidades da ciência do esporte e autor de Lore of Running, a bíblia do atletismo), ele montava e aprimorava os próprios treinos – indiscutivelmente eficientes.
Atualmente "aposentado" da Comrades – correu pela 30ª e última vez em 2012 -, Bruce não descarta participar da histórica 100ª edição, em 2025, quando terá 69 anos. Para 2018, está em seus planos a Two Oceans (56 km), dia 31 de março, bem como a prova de 21 km que será realizada em conjunto com a Maratona Nilson Lima.
Estar ao lado dessa lenda viva, ouvir suas histórias, admirar seus feitos, aprender com sua trajetória e reverenciar esse mito do atletismo mundial é um privilégio que terão os que participarem da exclusiva palestra que Bruce Fordyce fará em Uberlândia no dia 21 de abril. E eu terei o privilégio e a honra de ser o seu anfitrião e intérprete e asseguro que, mesmo já tendo feito a Comrades 15 vezes, certamente aprenderei muito com as palavras e atitudes do grande nome que a principal ultramaratona do mundo já viu.