Performance e Saúde zMais notícias Redação 15 de outubro de 2024 (0) (679)

Faltou perna ou faltou pulmão?

POR FERNANDO BELTRAMI | RELEIRURA – setembro de 2019


Você possivelmente já ouviu – ou mesmo disse – algo do tipo “As pernas estavam bem, o pulmão que não aguentou” ao final de treinos ou provas. Na corrida, temos estas duas sensações distintas: sentir o pulmão ou a respiração “queimar” (alguns ainda descrevem como falta de ar) e a sensação de que as pernas simplesmente não respondem mais ao comando para irem mais rápido.

Em uma prova bem corrida, dentro dos limites do corredor, entende-se que o natural seria que a sensação principal de limitação deveria vir das pernas, ainda que o problema não seja falta de força propriamente dita. Na verdade, o que ocorre é que as pernas estão no limite do que nosso sistema de produção de energia permite, mas mesmo assim sentimos isso como “falta de força”.

Muitas vezes, no entanto, erros de cálculo sobre o ritmo adequado, erros de treino ou mesmo na alimentação podem levar a sensações de limitação. Assim, tentar compreender o que exatamente leva um corredor a pensar que faltou isso ou aquilo, no fim da prova, é importante para o treinamento. Se compreendermos quais são os limites da nossa performance, então o caminho é tentar trabalhar para empurrar este teto um pouco mais para cima.

Faltou pulmão. A sensação de “faltar pulmão”, curiosamente, pouco tem a ver com a falta de oxigênio. Embora em algumas situações mais especiais seja possível que os níveis de oxigênio no sangue caiam durante a corrida, para a imensa maioria das situações este não é o caso. Na verdade, o estímulo para se ventilar (o ato de trocar o ar nos pulmões é a ventilação, e não respiração) se dá por motivos como o estímulo neural pelas contrações musculares das passadas, a elevação de temperatura, o aumento de acidez do sangue e também a necessidade de retirar o gás carbônico do sangue.

Para cada pessoa, existe um ponto máximo entre a velocidade de trote e a velocidade máxima de corrida, em que o organismo consegue manter a ventilação estável e ainda assim satisfazer todos estes estímulos. Este ponto geralmente é chamado de limiar ventilatório ou limiar anaeróbico. Na prática, é aquela velocidade em que apesar de ser possível manter uma conversa, não se quer conversar.

Provas mais curtas, como os 5 km ou 10 km, podem até ser corridas acima deste ponto, mas nesse caso a ventilação aumenta de forma gradual para que chegue em seu máximo somente no final da competição, sem que a sensação de falta de ar comprometa a velocidade durante a prova. Durante uma corrida, então, “faltar pulmão” quer dizer que alguns dos estímulos passaram do ponto de regulagem muito cedo.

Por exemplo, se uma prova de 10 km for iniciada num ritmo muito forte, eventualmente a acidez ou temperatura corporal irá aumentar demais, e mesmo que o corredor diminua a velocidade (com queda do estímulo neural da ventilação), levará mais algum tempo para reduzir a acidez do sangue e a temperatura corporal, de forma que a sensação de falta de ar irá perdurar mais um pouco, mesmo com a corrida mais lenta, comprometendo o desempenho.

Faltou perna. Como dito anteriormente, o natural em uma prova bem feita é que a sensação de limite venha das pernas. No entanto, em situações em que a performance caia drasticamente durante o evento, é possível que esta sensação seja atípica. Este cansaço fora do comum nas pernas pode vir de várias fontes, sendo a mais famosa delas o esgotamento das reservas de glicogênio da musculatura.

Acredita-se que este processo seja o responsável pela sensação de se encarar um muro ou a de ter um urso nas costas, perto do final de uma maratona. A queima relativa de glicogênio (sobre o total de energia utilizada) é proporcional à velocidade de corrida, e a nossa sensação de cansaço possui uma forte relação com a reserva muscular de glicogênio e o tempo de esforço restante.

Caso o organismo sinta que o ritmo de corrida irá exaurir o glicogênio muscular antes do fim da prova, há um aumento brusco nesta sensação de pernas pesadas ou de “pneu furado”, o que nos força a diminuir a velocidade e utilizar mais gordura como fonte de energia.

É possível também que a sensação de falta de perna seja um reflexo do acúmulo de metabólitos na musculatura, sinal de que o grau de esforço é maior do que aquele que se consegue manter no longo prazo. Enquanto a antiga noção de que o ácido lático envenenaria os músculos, incapacitando-os e criando a sensação e queimação nas pernas, hoje já se sabe que o acúmulo de lactato é um dos fatores necessários para disparar nervos sensores na musculatura, que nos fazem sentir cansaço ou dor, mesmo que a função muscular em si não necessariamente sofra.

Uma terceira possibilidade é a falta de preparo muscular efetivo, especialmente em situações em que a musculatura não esteja pronta para o tipo de esforço, como um corredor que se aventura numa prova de trilhas pela primeira vez, ou aquele que corre a maratona sem ter a base de volume adequada. É extremamente difícil medir este tipo de limitação, mas em termos de percepção esta é aquela situação em que passamos a sentir dor muscular propriamente dita, e não somente o peso nas pernas ou falta de força. Outros problemas, como cãibras, também são associados com a falta de treino adequado para o ritmo imposto.

Força nas pernas. Se a sensação de cansaço nas pernas não quer dizer que falte força, para que serve a musculação? Sem entrar em toda a discussão sobre o treino de força para a prevenção de lesões, o ganho de força muscular ajuda sim a melhorar o rendimento na corrida.

Correr mais rápido implica em gastar mais energia; então, mesmo que o ganho de força servisse para aumentar a velocidade de corrida pelo ganho dessa capacidade em si, seria necessário melhorar também o sistema de oferta de oxigênio e nutrientes para que pudéssemos fazer uso desta força maior. Logo, fica evidente que o benefício para a performance não é simplesmente o ganho de força pelo ganho de força.

O que estudos têm demonstrado nos últimos anos é que a musculação melhora a capacidade física por aumentar a eficiência de movimento. Em outras palavras, como o aparelho muscular se torna mais eficiente, correr em uma mesma velocidade passa a gastar menos energia. Assim, é possível correr um pouco mais rápido, despendendo a mesma energia de antes.

Existe a ainda a possibilidade de o treino de força aumentar a resistência muscular à fadiga. Por incrível que pareça, este é um campo muito menos claro na literatura. O que se sabe é que o volume de treino parece ser um indicativo muito mais sensível da capacidade de suportar um determinado ritmo por longos períodos do que as séries feitas no fortalecimento muscular.

Para os casos em que o corredor “quebra” na prova com a sensação de falta de força, cabe, em primeiro lugar, apostar em revisar o ritmo alvo, que possivelmente estava fora da realidade atual; depois, levar em conta o volume de treino e considerar aumentar um pouco a base de treinos para uma próxima corrida, e somente depois de adequar estes dois considerar se faltou treino de musculação.

Veja também

Leave a comment