POR NELTON ARAÚJO
A história de Abebe Bikila é bem conhecida por praticamente todos: em uma modalidade dominada por atletas do leste europeu ou britânicos, ele foi o primeiro africano a bater o recorde mundial da maratona e vencer os Jogos Olímpicos na mesma cajadada. E descalço. A curiosidade é que ele só não correu calçado por um detalhe.
O fato: Bikila, que estudava na escola de cadetes da Guarda Imperial do imperador etíope Haile Selassie, treinava calçado e sua evolução aparecia a olhos vistos. No entanto, um dia, ele se atrasou para o treino, se atrapalhou todo e para não deixar o pelotão de cadetes escapar, voltou às origens e correu descalço. Além disso, o treinador de Bikila, o sueco Onni Niskanen, ao vê-lo correndo descalço, viu melhoras substanciais em sua postura e sugeriu que continuasse a treinar com os pés desnudos. Bikila então alternava treinos calçados e sem tênis, embora se sentisse mais confortável sem eles.
Chegando na Olimpíada de Roma, tanto Abebe Bikila quanto seu compatriota Abebe Wakgira receberam uma proposta da Adidas para calçá-los. Não que eles fossem especiais, mas porque estava rolando uma guerra nos bastidores entre a Adidas e a marca alemã Puma, que incluía inclusive pagamentos (teoricamente proibidos) para que atletas usassem este ou aquele calçado. Além disso, correr descalço poderia transparecer aos outros que a Etiópia era um país pobre, sem condições de oferecer um mísero sapato a um atleta olímpico. Não era o tipo de imagem que se quer divulgar.
Naquela época, no entanto, por ter corrido muito pouco em provas oficiais, Abebe Bikila ainda era um desconhecido na própria Etiópia, imagine internacionalmente? E aí os pares que a Adidas enviou eram do tamanho correto, mas um pouco desconfortáveis. Ou não incomodavam, mas não exatamente na medida dos pés do atleta. O dilema durou até poucas horas antes da largada.
Abebe, Bikila e Wakgira, resolveram trotar descalços. Foi quando perceberam que teriam mais chances assim do que com os modelos da marca alemã. E tiveram: a ‘Flecha de Ébano’ surpreendeu a todos, vencendo a com o tempo de 2:15:16 e quebrando o recorde mundial. Seu compatriota chegou em sétimo.
Foi, portanto mais uma questão de ajuste ao tênis do que uma tradição inviolável. Tanto que, quatro anos depois, em Tóquio, lá estava Bikila rumo ao bicampeonato olímpico e a quebra do próprio recorde, correndo com um belo par da Puma, feito sob medida para o campeão.
* Este texto faz parte da matéria “10 curiosidades sobre o mundo da corrida”, publicado na edição de dezembro de 2020 da revista Contra-Relógio. Confira na revista digital a matéria completa, com esta e as outras 9 curiosidades do mundo da corrida.
Mestre em História pela UERJ, especialista em história das corridas de rua. Colunista da Contra-relógio desde 2013 e corredor (bem) amador.