23 de setembro de 2024

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Blog do Corredor Redação 8 de maio de 2023 (0) (1018)

Pegando o unicórnio pelo chifre – Parte 1


POR THIAGO LIMA CANETA | @thiagocaneta

Som longeeeeeeeee… beeemmm longeeeee, entrando em minha mente… contra-baixo, bumbo, tchim, tum-tum… tchim, tum-tum…

Every breaking wave on the shore
Tells the next one there’ll be one more
And every gambler knows that to lose
Is what you’re really there for
Summer I was fearlessness


É meu despertador me acordando em Watertown, às 4:55 a.m., para a Maratona de Boston 2018… quer dizer, 2023, ao som do U2 no meu iPhone. Primeiro snooze.

No banheiro estava desde a noite anterior: os Band-aids, a vaselina, o desodorante, a coragem (naquela primeira olhadela no espelho?). Lembro de apenas verificar o clima no app do celular, mesma probabilidade de chuva, frio de 11 graus. “Não será um dia fácil, Boston não reserva essas coisas pra mim”, meu pensamento, antes de voltar ao último cochilo.

Acordei meio assustado com o segundo alarme. Teria perdido o horário e a maratona? Mas espera, o Ricardo teria me acordado, não? E se eu tivesse ficado feito uma pedra e ele não conseguiu me acordar e, estando atrasado também, partiu para Boston Common e me deixou ali, dormindo. Mas não. 


O café começaria às 5:30 e o Uber estava agendado já para saída às 5:55. Então seria o tempo de tomar o café rápido após me arrumar, descer para o lobby, subir, ir ao toalete e verificar todos os itens novamente, a tempo de descer às 5:50 e encontrar um outro corredor norte-americano que estava no mesmo hotel e iria dividir o Uber comigo no mesmo horário do carro. 

Mas não foi bem assim: levantei da cama às 5:05 e de repente já eram 5:35 e ainda não havia descido para o café. Peguei o elevador já com minhas coisas ciente de que não conseguiria subir de novo. 

Descendo ao lobby, o hotel não cumpriu bem o café às 5:30, não havia o ovo mexido, nem o café quente. Só um chá, um ovo cozido gelado, uma torrada que fiz na hora com geleia. Eram 5:53. Enquanto mastigava o pão, fui verificar se o Uber estava se dirigindo ao local, o pontinho indicava que ele já estava lá me esperando. Um pouco de pânico: não posso atrasar e perder esse Uber hoje nem a pau. 

If you go
If you go your way and I go mine
Are we so
Are we so helpless against the tide?…

Peguei um kit “to go”, que o hotel havia deixado para os maratonistas no lugar do ovo e salsicha que eu esperava para já sair bem alimentado, e desci até a saída com as minhas coisas.

Achei o driver, num carro preto, semblante sério. Nada do meu colega de viagem aparecer. Não sabia se entrava e esperava dentro do carro para garantir a corrida e quem sabe conseguir que ele esperasse. Outros dois corredores, um casal talvez, pareciam estar pedindo ou esperando um outro Uber, com suas bags transparentes da maratona como a minha, gorro, blusas.

Meu Uber ali parado – Chamo eles para irem comigo e abandono o amigo de última hora? Garanto minha ida? Vou sozinho e não ligo para as doletas que economizaria com o compartilhamento do transporte e a economia de gás carbônico pro meio ambiente também que se lasque? 

Afinal, é A MINHA BOSTON, meu retorno após 2018. Abro a porta do Uber e digo ao motorista que estou esperando um amigo para a viagem, se ele pode esperar mais três minutos. Eram 5:57. Ele gesticula contrariado um OKAY com a cabeça. Imaginava já o trânsito, a dificuldade para chegar até a Boston Common. Ou ainda se esse motorista resolver simplesmente ir embora. Quanto tempo demoraria outro Uber? Onde está o Derek. Esse era o nome, Derek, delayed Derek, Delay-rek, Derekate, Dereklate. 5:59, plimmmm, era o barulho do elevador se abrindo e bingo. Ele chegou. U-F-A…

Entramos e partimos. Havia planejado um caminho de meia hora caso pegasse trânsito. Eram 9 km dali até o centro. O GPS do motorista dizia onze minutos. Então chegaríamos trinta minutos antes da abertura do Gate para o início da saída dos amarelinhos School Buses para Hopkinton, tempo de sobra para fazer o Gear Check com as coisas para depois da chegada: capa de chuva, roupa seca, celular etc. Felizmente o caminho estava mesmo livre, e por volta da 6:13 estávamos em frente a Arlington Street Church para o “nice race” e o último goodbye ao Derek. Adios!


Every sailor knows that the sea
Is a friend made enemy
And every shipwrecked soul knows what it is
To live without intimacy
I thought I heard the captain’s voice
But it’s hard to listen while you preach


Indo aos ônibus da RED WAVE, me perdi do Cássio e outros brasileiros. Olhei pra trás e já não o achei: ele me encontra nos ônibus. A experiencia de ter um número “baixo” na principal major é emocionante em todos os sentidos e momentos. O sorriso da staff recebendo minha bag após eu verificar se havia separado tudo do jeito correto, e não esquecido nada para a viagem até o Village. 

Não encontrei nem fui encontrado pelos amigos perdidos no meio do caminho na volta. Fui ao ponto de encontro inicial que já era na direção da entrada dos ônibus. Abriria dali a uns quinze minutos. 

Apesar de ainda não estar tão lotado de gente, o número de corredores aumentava a cada minuto, guardas organizando o trânsito, caminhões chegando com os últimos cones e cavaletes, carros ainda passando em parte da via que cruzava a Boyslton ali na esquina, e os mais variados perfis de atletas passando. 

Faziam 10 graus com um vento gelado, alguns corredores sem blusa alguma, já vestidos como pretendiam largar dali a três horas e meia; outros mais encapotados – como eu, várias blusas, capa de chuva, cobertor, gorro, luva, calça… outros ainda no meio termo, carregando outro par de tênis pendurado ao pescoço.

Outro grupo de brasileiros, agora a maioria de conhecidos da HF, Pedro Pinguim, Érik, Volnei, Conrado e mais alguns de Beagá apareceram entre a horda que ia aumentando saindo do guarda-volumes ambulante em direção à próxima etapa. Sem luxo ou orgulho, cada um com seus mais fashions e variados “pijamas anti-chuva” (rsrs), com o intuito de driblar o frio até a último segundo pré-largada. Me juntei a eles e partimos em direção ao portão que ainda estava fechado na praça.

Os primeiros ônibus escolares amarelos já estavam alinhados em duas filas na rua mesmo antes de entrarmos nos primeiros currais do dia – das portas dos shuttles, enquanto uma pequena multidão já se acumulava em filas, uma agitação quase muda perambulava entre os olhares e cabeças, algo quase que palpável, uma coisa entre o prazer de chegar à etapa final e a incerteza de como chegariam ou chegaríamos de volta até ali após aqueles vários metros e passos.

Baby, every dog on the street
Knows that we’re in love with defeat
Are we ready to be swept off our feet
And stop chasing every breaking wave…

Aberto o portão, a fila e a apreensão foi se movendo como blocos congelados num rio lento. Reencontrei o Cássio com os demais novamente: “Te procuramos, mas sem chance”. 

Chegamos num grupo de vinte brasileiros à mesma fila do mesmo ônibus. Deveríamos ser a segunda ou terceira frota que sairia para um lugar que fica a 5 cidades distante dali do centro, sentido norte, indo pela rodovia, oito cidades ao voltar correndo. Posso estar enganado. 

Após o comando dos staffs na fila, entramos e ocupamos o fundo do ônibus como bons brasileiros. Seria uma viagem de cinquenta minutos e, diferente de alguns que queriam conversar para disfarçar o nervosismo, eu queria utilizar o percurso para tentar pelo menos tirar um cochilo e concentrar mais para o desafio que se aproximava mais e mais sem escapatória ou porta de saída que não os 42.195m.

Eu repetia
Fazia projeções
O fim da linha
O fim
Da linha
É lá que devo ir
Só depois que posso
Que devo
Parar
Eu repetia
Os passos
Brigava com a mente
O fim da linha
O fim
Da rota
Essa imagem
Me imaginava
Sobre ela
Elas
Meus passos
Sonho em asfalto

O fone de ouvido havia ficado pra trás para o pós-prova, então restavam os próprios pensamentos: VOCÊ TÁ PRONTO. – VOCÊ TÁ FERRADO! – VOCÊ TREINOU PARA UM CACETE, TÁ PRONTO – VOCÊ TREINOU TUDO ISSO, E MESMO ASSIM PODE DAR TUDO ERRADO. 

Aqueles velhos anjos e demônios discutindo dentro de mim, como se eu nem estivesse ali. THEY DONT FUCKING CARE.

Entrei em meu casulo pessoal, sob meus óculos escuros, a touca e boné, encostado no vidro da janela, entre os solavancos das freadas bruscas: vim tão longe para ter a prova estragada por um motorista a caminho da largada – NO WAY! 

Repassava a estratégia combinada com o treinador, 10 km para tal, meia para tal, sem apertar muito na descida do começo. Repetia para mim as palavras do Joaquim Cruz antes de sua prova em 1984, nas Olimpíadas de Los Angeles – no livro de sua história “Matador de Dragões”, que me esperava no hotel e viaja sempre comigo para as principais maratonas: 

estou pronto, tudo foi feito da melhor maneira possível e meu corpo está preparado, só trabalhar a mente. Estou pronto, estou pronto.Pronto. Após atropelar um cone num último acesso da rodovia chegando a Hopkinton, e mais alguns solavancos, chegamos inteiros na famigerada Athlete Village da Boston Marathon 2023; sem gelo e lama dessa vez durante horas pré-prova? Sem chuva e pés molhados? Sem passar frio e perder energias valiosas para minha prova? Não estou em 2018? Não! 

The sea knows where are the rocks
And drowning is no sin
You know where my heart is
The same place that yours has been…


Apesar do frio maior que antes, a mini cidade – vila – dos atletas era outra. Apenas uma neblina sobre as serpentinas de filas secas nos toaletes químicos, sem alvoroço ou pessoas apertadas debaixo das tendas. Perto de 8:00 quando chegamos. Two hours to go.

Continua…

Confira segunda parte do texto: “Pegando o unicórnio pelo chifre – Parte 2”


Thiago Lima, @thiagocaneta, é um atleta das palavras, escritor e corredor, autor do livro de poesias Antes da ilha, maratonista 2x vezes Bostoner, criador do Caneta Your Sports Story; 20 maratonas com seu PR 02:40:20 na Maratona de Buenos Aires 2022.



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