No último dia 6 de maio, a Nike colocou em ação o seu projeto Breaking2, que visava checar as ideias fisiológicas destes tempos em relação à superação da barreira das duas horas na maratona. Tal como em um laboratório, todas as variáveis estavam sobre controle no Autódromo de Monza (palco do desafio): clima, marcadores de ritmo e um carro à frente quebrando o vento, suplementação e a escolha do maratonista mais constante em resultados dos últimos anos, o queniano Eliud Kipchoge, para ser o responsável pela primeira marca na casa de 1:59:59. A barreira não foi quebrada por 26 segundos (ele fechou a distância em 2:00:25), o que foi visto por alguns por "muito próximo" e, para outros, uma eternidade.
Polêmicas à parte, o que se sobressai é a discussão sobre a possibilidade da superação deste tempo. Debate esse que, há 10 anos, era se alguém seria capaz de correr abaixo de 2h04. Ou, voltando um pouco mais, cerca de 20 anos, se seria possível um homem correr 42 km a uma média de 20 km/h. Insaciavelmente curiosos, sempre que uma marca, sobretudo na maratona, é pulverizada, logo impomos uma próxima, no afã de responder qual é o limite do ser humano?
A maratona, desde a criação do mito de sua gênese até se transformar em modalidade esportiva, é vista como o ponto máximo do limite da capacidade física do homem. Completá-la já é digno de admiração; ser o mais rápido entre inúmeros numa competição, uma façanha; superar o melhor tempo entre todos no mundo, um feito extraordinário.
E no espaço de 109 anos entre o primeiro recorde oficialmente aceito pela IAAF, o tempo de 2:55:18 completados pelo americano Johnny Hayes nas Olimpíadas de Londres em 1908, até a marca – não oficial – de Eliud Kipchoge no Breaking2, estão quase 56 minutos de diferença. Mas como ela se deu? Como os homens foram empurrando seus limites até os dias de hoje?
COMEÇO EM 1908. Como dito há pouco, a IAAF só passou a considerar como marcas mundiais os tempos após 1908, quando a Maratona Olímpica de Londres foi a primeira prova com a distância oficial da modalidade, os esdrúxulos 42,195 km. Contudo, os tempos realizados nos doze anos anteriores não podem ser jogados fora.
Muito pelo contrário: segundo historiadores do esporte, a mundialmente cobiçada marca da sub 3 horas entre os amadores tem como ponto de origem o resultado do primeiro vencedor de uma maratona oficial, o grego Spiridon Louis.
Sendo um atleta que mais se aproximava de um corredor amador, não vivendo do esporte profissionalmente e até sem muita experiência na modalidade, seu tempo de 2h58 nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 1896, foi encarado ao longo dos anos como uma realidade factível a quem se empenhasse em alcançá-la, muito embora, ainda hoje, somente 10% dos homens e 1% das mulheres tenham conseguido tal feito nas Majors em 2016.
Já em 1909, um ano após o tempo de 2h55 em Londres, o recorde caiu para 2h40. Tamanho avanço fazia os periódicos da época inaugurar as discussões, mas de forma bem pontual, sobre quando os homens realizariam uma maratona abaixo desse tempo, que foi encerrada em 1913 na Maratona Politécnica, nos arredores de Londres.
Para quem imagina que o Breaking2 foi a primeira experiência de um evento forjado unicamente para quebra de um recorde mundial, é interessante saber que uma semana depois da sua prova já tradicional, a Maratona Politécnica inaugurou uma novidade. Contando com um grupo de 35 atletas como "coelhos", o sueco Alexis Ahlgren registrou o recorde de 2:36:06. Dedicada a ser palco de grandes marcas, a Maratona Politécnica entrou para a história pelas oito vezes em que teve as melhores marcas mundiais, entre 1909 e 1965.
PRIMEIRO SUB 2H30. Desde então, começaram a vir longos períodos de estagnação. Na época, os pouquíssimos jornais que se dedicavam a falar de maratonas davam voz para os médicos, sem especialização na área, que já anunciavam que o limite humano iria até o tempo de 2h30, sem qualquer argumentação fisiológica.
Frases como "nenhum homem tem capacidade fisiológica de correr uma competição de 42 km abaixo de 2h30" apareciam vez ou outra nos jornais americanos. Contudo, eram muito mais suposições, posto que os princípios fundamentos fisiológicos ainda não haviam sido descobertos, tais como as taxas de VO2, economia de corrida e termorregulação, por exemplo.
Até que em 1925, o americano Albert Michelsen colocou em xeque os achismos fisiológicos da época, ganhando a maratona de Port Chester, nos arredores de Nova York, com o tempo de 2:29:01.
A partir do primeiro sub 2h30 e em função dos dez anos em que a marca não foi superada, levou a ciência a, enfim, olhar com interesse para a maratona. Esse hiato na quebra de melhores tempos fez os especialistas entrarem numa grande discussão entre acreditar ou não que Michelsen era uma exceção e que os primeiros rumores fisiológicos estavam corretos: o limite humano na maratona esgotara-se.
Assim como em 1913, na Maratona Politécnica, forjaram outro palco para testar a validade dessa hipótese. Agora o palco seria Tóquio que, em 1935, montou um percurso e clima perfeito, e com a medição exata de 42.195 metros. No dia 31 de março de 1935, o japonês Fusashige Suzuki, na maratona da cidade, fez o tempo de 2:27:49, colocando mais uma vez os cientistas na lona.
Curioso é que houve, quatro dias depois, no mesmo percurso, outra maratona de mesmo nome, quando o japonês Yasuo Ikenaka fez a prova um minuto mais rápido, chegando em 2:26:44. O New York Times, ao informar a quebra desse tal marca, demonstrou espanto no feito que "derrubou todas as ideias da capacidade do homem na competição mais dura do atletismo".
NADA DE MAJORS. Os leitores já devem ter percebido um detalhe desta história, até agora: os recordes mundiais durante a maior parte do século 20 não estavam centrados nas Majors. Historicamente é um dado relevante, para que não se construa uma crença coletiva de que desde os primeiros tempos sempre foi assim.
Outro mito do senso comum equivocado é de que, desde os primeiros tempos, há uma hegemonia africana nas provas de longa distância. Até 1935, os melhores tempos estavam nas mãos de norte-americanos e europeus. A partir daí, surgiu uma dinastia asiática que se deu o início da década de 1950. E junto a esse momento de hegemonia, os recordes foram chegando a uma nova barreira fisiológica, a das 2h20.
Novamente, o bastão do recorde mundial voltou para as mãos europeias, com o britânico Jim Peters. Este, de 1952 a 1954, na Maratona Politécnica – sim, olha ela aí de novo – levou o tempo da maratona para abaixo da casa de 2h20 três vezes, chegando a 2:17:39 em junho de 1954, pouco mais de um mês de quando o também britânico Roger Bannister, perto dali, rompesse a então marca mais simbólica do atletismo: o sub 4 minutos na milha (1,609 m).
Esse era o principal tema de discussões de médicos fisiologistas que afirmavam, até então, que o atleta que ousasse percorrer a distância abaixo dos quatro minutos não sobreviveria. Bannister, também estudante de medicina, organizou um evento-teste na Universidade de Oxford, com a ajuda de três amigos, que o ajudaram a conseguir o "recorde impossível" e ainda sobreviveu. A data do evento? 6 de maio, a mesma data do Breaking2, o que está longe de ser uma bela coincidência.
O feito de Bannister revelou que a superação da marca da milha era muito mais uma questão psicológica que fisiológica: ao final daquele ano de 1954, mais de 30 atletas já tinham ultrapassado a então "impossível" marca. E isso também reverberou nas longas distâncias, ainda mais que a incipiente popularização das corridas de rua começava a receber atletas que tiveram sua formação nas pistas de atletismo, como o próprio Jim Peters.
BIKILA 2H15. A corrida de rua se expandia pelo mundo amador, atraídos por uma melhor qualidade de vida e pela empatia midiática de atletas como Abebe Bikila, primeiro africano a conseguir um recorde mundial. E conforme aumentava seu raio de alcance, mais crescia o interesse fetichista sobre os limites fisiológicos.
No dia seguinte que Jim Peters correu para 2h17, logo se questionou quando o homem chegaria à casa de 2h15. Quando Bikila completou em 2h15 a maratona olímpica descalço, pelas ruas de Roma, a questão passou a ser sobre o que ele faria de tênis.
Quatro anos depois, quando o etíope (de tênis) venceu em 2h12 a maratona olímpica de Tóquio, logo o The Guardian, um dos principais jornais britânico até os dias de hoje, colocava a dúvida se "seria o homem capaz de correr uma maratona abaixo de 5 minutos por milha (um ritmo, no padrão métrico, de 3:06/km)".
DEREK CLAYTON. Foram três anos de intensa discussão até que um australiano de apenas 25 anos, chamado Derek Clayton, mais uma vez na história, deixou sem argumentos aqueles que consideravam o feito uma tarefa impossível. Na maratona de Fukuoka, em 1967, fez 2:09:36 e dois anos depois, melhorou seu tempo em um minuto.
Todavia, isso não o livrou de especulações de fraude, que o levou inclusive a procurar o já renomado fisiologista David Costill nos EUA para fazer testes e ver sua real capacidade aeróbica. A conclusão foi que Clayton tinha uma excepcional eficiência mecânica, bem como na produção de lactato. Seu VO2 era de 69.2, que, traduzindo aos leigos, dava a garantia ao médico de que o detentor do recorde mundial era capaz de correr para 2h08 naquele momento. Os críticos silenciaram.
Mas em 1970, década de surgimento das grandes maratonas atuais e do boom do jogging, não houve quem chegasse muito perto do jovem australiano. E a própria imprensa agora voltava seus olhos para o crescimento exponencial e fulminante dos tempos da maratona feminina.
Isso teve como efeito o eclipse na discussão sobre evolução masculina na distância, ainda mais que as marcas femininas iam sendo pulverizadas de tal forma que alguns já especulavam se algum dia as mulheres alcançariam os recordes masculinos. A marca de Derek Clayton foi superada apenas 12 anos depois, pelo também australiano Robert de Castella, na mesma Maratona de Fukuoka.
RECORDE ESTAGNADO. O recorde mundial foi batido algumas vezes durante os anos 1980, chegando a 2:06:50 com o etíope Belayneh Dinsamo em Roterdã 1988. E, mais uma vez, a quebra de recorde estagnou-se por dez anos, levando, também, mais uma vez, a discussão sobre os limites da capacidade humana, agora pauta própria nos periódicos. Todavia, no campo acadêmico, os avanços científicos já eram utilizados para se discutir a possibilidade do 1:59:59 em uma maratona.
O primeiro artigo que se debruçou sobre essa tese surgiu em 1991, quando o fisiologista americano Michael Joyner publicou um famoso artigo no "Jornal of Apllied Physiology", onde especulou sobre qual seria o perfil ideal para quebrar a barreira das 2 horas na prova mais longa do atletismo. Outras pesquisas se seguiram, reforçando uma característica de Joyner, a de que o atleta perfeito seria alguém oriundo de lugares de grande altitude.
Com isso generalizou-se a crença de que se houvesse a possibilidade de se correr a 20 km/h uma maratona inteira, isso seria feito por algum maratonista com tal perfil.
RONALDO DA COSTA. Aí, em sua segunda maratona, o brasileiro Ronaldo da Costa destruiu a então crença fisiológica, pois, nascido e criado quase ao nível do mar, correu a Maratona de Berlim de 1998 a um ritmo mais rápido que 20 km/h, completando-a em 2:06:05.
Desde Ronaldo da Costa em 1998, os melhores tempos mundiais da maratona vêm caindo quase quatro vezes mais rápido do que nas décadas anteriores. O marroquino naturalizado americano Khalid Khannouchi empurrou o limite ainda mais para frente, chegando ao sub 2h06 em Chicago 1999, quando correu para 2:05:42. Isso levava a maratona a outro patamar: a de uma prova na casa de 2h05.
Não é preciso nem dizer que jornalistas e especialistas já escreviam páginas debatendo a possibilidade de correr abaixo dessa marca. Mas poucos realmente acreditavam, uma vez que uma maratona em 2h04 é algo realizado num ritmo abaixo de 3 min/km, algo impensável para se sustentar por 42 km.
TERGAT E GEB. Entretanto, algo particularmente interessante que podemos observar é que os anos 1990 foram férteis em quebras de tempos mundiais em provas de fundo e meio fundo em pista, em especial os 5.000 m e os 10.000 m. Boa parte desses recordes foi conquistada pelo queniano Paul Tergat e o etíope Haile Gebrselassie. A rivalidade na pista, inevitavelmente migraria junto com eles para a maratona. E como sabemos que os melhores maratonistas são aqueles que fazem uma boa base nas provas de pista, não é difícil imaginar que eles fossem quebrar a então intransponível barreira no tempo da maratona.
Paul Tergat saiu na frente na rivalidade com Gebrselassie, sendo o primeiro atleta a correr abaixo de 2h05, em setembro de 2003, quando fez 2:04:55 em Berlim. Sim, somente em 2003 um queniano teve, pela primeira vez na história, um recorde mundial.
O etíope, quatro anos mais novo que o queniano, demorou também quatro anos para despontar na maratona. E o fez igualmente em Berlim 2007, com 2:04:26. No ano seguinte, lá mesmo, rompeu a barreira das 2h04, com 2:03:59.
Iniciava-se o admirável mundo novo nas maratonas a partir de 2008. Não demorou muito para vários atletas alcançarem a marca de 2h04. E, gradualmente, os jornalistas já começavam a abordar a possibilidade de uma maratona abaixo das 2 horas.
AGORA, VELOCIDADE. Mas a principal mudança que houve com Tergat e Haile não foi que apenas alguns segundos caíram do recorde mundial, mas a distância parece ter mudado de gênero. A elite já não considerava a maratona um evento de resistência pura, mas um evento de velocidade, do mesmo gênero de uma meia maratona.
Para explicar a diferença, muitos dos treinadores mais experientes usaram uma analogia automotiva. Até o período de Geb e Tergat, parecia que os corredores de maratona precisavam de um motor a diesel. Após eles, o melhor atleta tinha um combustível híbrido. Eles eram capazes tanto de imprimir um ritmo devastador quanto de mantê-lo por 42 km. Não por acaso, não era mais necessário fazer carreira na pista para ir às ruas, e a faixa etária que quenianos e etíopes começaram a entrar na maratona começou a cair, mesmo que, como consequência, tivessem carreiras efêmeras.
CASA DE 2H03. Esses elementos influenciaram uma geração de atletas que começaram a correr na casa de 2h03. Isso teve início com o queniano Geoffrey Mutai em Boston de 2011, quando com a ajuda do forte vento nas costas e sem noção do seu ritmo, pois o relógio do carro madrinha travou, completou a prova em 2:03:02.
No mesmo ano, o queniano Patrick Makau, embora não superasse o tempo de Mutai, bateu o tempo de Gebrselassie com 2:03:38. O queniano Wilson Kipsang, que três semanas após Makau bater o recorde, não conseguiu quebrá-lo em Frankfurt por apenas quatro segundos, dois anos depois, novamente em Berlim, pulverizava para 2:03:23.
O tema dos principais jornais era quando seria superada a marca de 2h03. Fisiologistas entrevistados na conceituada revista Sport Illustrated afirmavam que, agora sim, estávamos próximos desse feito. E a estimativa prevaleceu, quando o queniano Dennis Kimetto surpreendeu a todos em 28 de setembro de 2014 com seus 2:02:57 em Berlim, um segundo por milha mais rápido que Kipsang.
Após a vitória de Kimetto, as portas foram escancaradas não para um possível sub 2h02, mas direto para o recorde de 1:59:59. Ao mesmo tempo, especialistas perguntavam-se até onde eles poderiam ir. Grandes marcas, como Adidas e Nike já iniciavam seus projetos para que fossem seus atletas que rompessem a icônica marca.
Porém, em artigo para a Contra-Relógio em 2014, o fisiologista e treinador Fernando Beltrami apontava que nas últimas cinco vezes em que o recorde foi quebrado, o ritmo médio caiu apenas entre 0.4 a 0.7 por segundo, o que, para ele, "pode levar ao pensamento de que se está muito próximo de uma barreira absoluta".
Um dos maiores nomes da última década no atletismo, o etíope Kenenisa Bekele, dono da atual marca de 2:03:03, afirmou que não acreditava que os seres humanos de hoje sejam capazes do feito de um sub 2h. Fisiologistas e treinadores, baseando-se nos recordes mundiais de distâncias menores, que historicamente dão uma estimativa para o tempo da maratona, extrapolavam que o tempo limite do ser humano seria de 2:01:06.
DESAFIO NIKE. No entanto, apareceu o queniano Eliud Kipchoge junto com o projeto no Breaking2, superando o limite imposto em quarenta segundos. Obviamente que deve ser colocado que Kipchoge correu num grande balão de ensaio, onde todas variáveis estavam sob controle: clima, altimetria, falta de competição, suplementação e hidratação hiper controladas, pacers em rodízio ditando ritmo e quebrando vento durante todos os 42,195 km, sem contar o carro madrinha com um enorme dispositivo no teto, garantindo certo vácuo.
Contudo, há um fato inegável: houve um atleta que correu uma maratona abaixo de 2h01. Os especialistas ainda afirmam que o que houve em Monza no último 6 de maio foi a prova de que não veremos tão cedo a marca do sub 2h. Só o tempo dirá, mesmo porque, historicamente, especialistas nunca foram bons em previsões.