História admin 21 de abril de 2017 (0) (194)

O LONGÃO QUE SE TORNOU A MAIS BONITA ULTRA DO MUNDO

Por longos anos, cruzar o Oceano Atlântico em direção ao Índico foi a grande obsessão dos europeus. Afinal, era a forma mais vantajosa de se estabelecer uma ligação com as Índias sem ter que pagar as altas taxas aos genoveses e venezianos que dominavam o até então único elo possível ao que chamamos hoje de Oriente Médio: o Mar Mediterrâneo. Provavelmente você aprendeu isso na escola, assim como que a maior dificuldade para alcançar o Índico era o temível "Cabo da Tormenta", que apesar de não ser o extremo meridional a ser contornado (mas sim o Cabo das Agulhas), era onde todos os aventureiros tinham sucumbido às violentas tempestades e redemoinhos.
E o leitor deve, talvez, se lembrar de que, finalmente, em 1988, o português Bartolomeu Dias conseguiu vencer as tempestades, cruzando o temível ponto e o rebatizando para "Cabo da Boa Esperança". Séculos se passaram, a região passou a fazer parte da Cidade do Cabo, capital legislativa da África do Sul, onde o Parlamento Nacional e muitos escritórios do governo estão localizados. Mas ainda há o desejo de cruzar os dois oceanos, mas não mais com caravelas, mas com seus próprios pés, correndo. E a oportunidade propícia para isso acontece uma vez por ano, com a Two Oceans Marathon, uma das ultramaratonas mais desejadas no mundo e uma das poucas que pode rivalizar com a também sul-africana Comrades.
Aliás, foi por conta justamente da mais tradicional ultramaratona no mundo, que liga as cidades de Pietermaritzburg a Durban que surgiu a Two Oceans. O sul-africano Dave Venter, morador de Durban, foi enviado por sua empresa para trabalhar na Cidade do Cabo no final dos anos 1960. Ávido corredor, Venter logo se juntou a um grupo desta cidade para treinar para Comrades, na qual ele já tinha participado inúmeras vezes. A preparação deles exigia, quatro semanas antes da prova-alvo, um último longão, de 35 milhas (56 km). Foi quando Venter traçou uma rota inédita que passava entre as montanhas que protegem a capital legislativa do país. Além de fugir da monotonia de percurso, criava um desafio altimétrico similar a Comrades, com as mais difíceis subidas no ultimo terço da rota que tinha traçado.
O entusiasmo de seus camaradas foi geral e se decidiu criar um evento, com preço de inscrição a 50 centavos de Rand (o que, convertido e corrigido aos dias atuais, dá um pouco menos de um real), apenas para cobrir os gastos de hidratação. Só que as autoridades locais não viram com bons olhos a ideia de Dave Venter e negaram a autorização do evento, igualmente como nos primórdios da Comrades. Havia ainda mais um agravante: na data escolhida, 2 de maio, já teria outro evento esportivo, uma prova de cross-country no turno da tarde.
O idealizador da ultramaratona na Cidade do Cabo teve um pouco mais de sorte do que Vic Clapham, o criador da Comrades, e não precisou esperar dois anos para ter seu evento autorizado: soube negociar com as autoridades e, prometendo largar o mais cedo possível para não atrapalhar a logística da outra prova, conseguiu a aprovação para fazer seu "longão de luxo". Aliás, um dos argumentos dele era que eles iriam correr as 35 milhas, desmontar tudo e ainda participariam da competição de cross-country!

A PRIMEIRA EM 1970. Assim, no dia 2 de maio de 1970, às 6h30, Venter e mais 25 corredores largavam para aquela que, dois anos após, seria oficialmente chamada de "Two Oceans Marathon". O percurso começa em Newlands, subúrbio próximo ao centro da cidade, e segue em direção à praia de Muizenberg, onde pela primeira vez se avista o Oceano Índico. Nos primeiros 28 km predominam descidas e planos costeando o mar até o início do retorno. A partir daí, quando se retorna costeando agora o Atlântico, é que começam as oscilações de altitude mais drásticas, como se pode ver no desenho da altimetria.
Pouca coisa mudou em termos de percurso desde a sua edição, que teve 15 concluintes e seu vencedor foi o estudante Dirkie Steyn, que completou os 56 km em 3h55. A curiosidade fica por conta de que ele correu a prova descalço. O idealizador Dave Venter chegou na quinta colocação e, sim, ele honrou sua palavra e correu a prova de cross-country à tarde.
O sucesso da primeira edição levou a repetição do evento nos anos seguintes, e, ao mesmo tempo em que aumentava o número de inscritos, a competição foi sendo abraçada pelos habitantes da cidade, que, tal como no percurso da Comrades, vão às ruas torcer pelos seus participantes. Justamente por esse esforço em atrair público e corredores, desde 1973 ela passou a ser realizada na véspera do domingo de Páscoa. E os organizadores a denominaram como "A maratona mais bonita do mundo", apesar de muitas outras usarem o mesmo título…
Estava claro para estes que a corrida tinha o potencial de se transformar em um evento de grande porte, e, como tal, começaram a introduzir, a partir de 1977, regras para os atletas poderem se inscrever na prova, não permitindo mais inscrições "em cima da hora". Uma medida que se mostraria válida, sobretudo na edição de 1984, quando houve novo número recorde de participantes, com 3.770 inscrições. Hoje, o limite é de 11 mil participantes para os 56 km e embora seja possível se inscrever sem nunca ter concluído uma maratona de forma oficial, a largada é feita dando prioridade àqueles que comprovam participação em provas oficiais de 42 km num período de 18 meses; eles saem nas primeiras baias.

APENAS PARA BRANCOS. No entanto, em seus primórdios a competição refletia um problema que estava ocorrendo na sociedade sul-africana: até então, era uma competição exclusivamente para brancos (como foi também na Comrades). Vale lembrar que, desde 1948, vigorava oficialmente um regime de segregação racial pelos governos sul-africanos. O "apartheid", onde os direitos de uma minoria branca cerceavam os da maioria dos habitantes, foi a causa pela qual lutou durante décadas Nelson Mandela, talvez o primeiro nome que deva vir a sua cabeça quando pensamos em África do Sul.
Se Mandela teve que esperar até 1994 ver seu país se livrar dos grilhões da segregação, vinte anos antes, a Two Oceans dava uma demonstração de que o esporte é uma arena no qual o convívio pacífico entre as raças é possível. Em 1975 ela recebeu uma licença do governo, para ser um evento "multi-nacional", ou seja, que atletas de todas as raças poderiam participar. O ministro do Esporte deu a sua aprovação oficial, sob a condição de que os "diferentes grupos de raça não se misturassem desnecessariamente".
E o primeiro corredor negro a terminar foi Goodenough Qokweni, que chegou na sétima colocação. Não tardou para que os negros viessem a dominar a prova. No ano seguinte, Gabashane Rakabaele, natural do Lesoto, venceu a corrida, estabelecendo recorde de 3h18. Em 1977, o sul-africano Brian Chamberlain, branco, melhorou a marca de Rakabaele em três minutos, repetindo a dose no ano seguinte, apenas um segundo mais lento. Em 1979, o corredor do Lesoto reconquistou o recorde da prova com impressionantes 3:08:56. Rakabaele e Chamberlain eram mais em comum que de diferentes: além de vencedores e recordistas do percurso na Cidade do Cabo, foram os únicos a vencer a Two Oceans e a Comrades no mesmo ano.

TAMBÉM MULHERES. Mas a mesma edição de 1975 deu outro grande avanço quanto à igualdade, ao aceitar inscrições femininas para a competição (processo semelhante ao da Comrades, novamente). A sul-africana Ulla Paul, mãe de três filhos, tornou-se a primeira a completar a corrida dentro do limite oficial de 6 horas, com o tempo de 5h14. Três anos depois, a também sul-africana Janet Bailey quebrou a barreira de 5 horas, cruzando a linha de chegada dos 56 km em 4h34 e pronunciando aos repórteres aquilo que muitos pensam depois de completar uma ultra ou mesmo uma maratona: "Fazer outra prova dessas? Nunca mais!".
As edições da década de 1980 colaboraram na consolidação da prova, tirando-a da sombra da Comrades. E enquanto o número de amadores se interessava pela prova, crescendo de um pouco mais de mil inscritos no início da década para quase 8 mil ao final dela, os atletas de elite pulverizavam os recordes do percurso. Em 1987, o sul-africano Thompson Magawana foi responsável por um dos momentos mais icônicos da ultramaratona.
Como já falamos, a segunda metade da prova é a parte mais complicada, incluindo inúmeras subidas longas, incluindo a escarpada colina de Constantia Nek. Logo, não é nada raro que desde a elite até o ultimo amador completem a prova com um "split positivo". Thompson Magawana inverteu a lógica: assumiu a liderança no km 38 e, logo após passar pela marca dos 42 km, imprimiu um ritmo de 3:17/km nos últimos 14 quilômetros, a passagem mais rápida desta seção até hoje. Bateu o recorde da Two Oceans e entrou no seleto rol dos que completaram a segunda metade mais rápida do que a primeira: apenas três atletas até então tinham realizado a façanha. Perguntado sobre essa estratégia pouco ortodoxa, deu uma explicação simples "Gosto de percurso com muitas colinas".

PERFORMANCE INCRÍVEL. Mas ninguém imaginaria o que ele poderia fazer na edição seguinte. Magawana largou em ritmo de recorde mundial de maratona, passando os 10 km em 30:39, e pela placa do 28º km, metade do percurso, em 1:27:30. Apenas Gabashane Rakabaele, aquele que foi o primeiro negro a vencer a competição, tinha executado a distância em menos de 90 minutos. E continuou a quebrar recordes das seções da competição: cruzou a marca da maratona com o tempo de 2:15:05.
Logo depois, entrou pelo caminho que dá acesso ao "Chapman's Peak", uma das colinas mais difíceis do percurso, a 180 metros acima do nível do mar, e que oferece como recompensa a quem consegue subi-la (sem ficar um pouco tonto) uma vista magnífica do Oceano Atlântico, mais de sete minutos à frente do segundo colocado. Quebrou o recorde mundial das 30 milhas, com 2:37:31 e dos 50 km, em 2:43:38. E apesar do corpo ter pagado com juros o início frenético, fincou o recorde da prova que perdura até hoje: 3:03:44.
Quase 30 anos depois do feito de Thompson Magawana, a única vez que se acreditou que seu tempo poderia ser batido foi na edição de 2005, quando Marco Mambo, do Zimbábue, acabou não aguentando o ritmo no final, e completou em 3:05:39. Na edição de 2016, o vencedor chegou dez minutos acima do tempo de Magawana.

RECORDE FEMININO. Tão impressionante quanto o recorde masculino foi o estabelecimento do feminino. A sul-africana Frith van der Merwe surpreendeu a todos na edição de 1989, quebrando o recorde do curso de sua compatriota Monica Drögemöller, a maior vencedora da competição, conquistando o título em 1988, 1990, 1991 e 1992. O tempo Frith foi de 3:30:36, 14 minutos mais rápido que o recorde anterior. E o mais surpreende é que isso foi alcançado em condições completamente adversas: com um "sol para cada um", mais de 2 mil corredores não terminaram a prova .
E, tal como os principais nomes dos anos 70, der Merwe conquistou a Comrades pouco mais de um mês depois da façanha. Seu recorde só foi ameaçado uma única vez, pela russa Olesya Nurgalieva, que, junto com sua irmã gêmea Elena, tem seu nome marcado no Hall da Fama da Comrades, a qual conquistou por quatro vezes. E mesmo com todo esse currículo, o mais próximo do recorde da Two Oceans foi em 2011, quando venceu a prova no tempo de 3:33:58.
Se os anos 1980 foram de crescimento e quebra de recordes, as próximas décadas foram de consolidação, adaptando a prova à crescente demanda que já estava perto de 10 mil inscritos.

MAIS DUAS PROVAS. Em 1990, o professor Kevin Rochford apresentou os organizadores com um pedido especial: que além da tradicional ultramaratona realizada aos sábados, fosse realizada uma prova na sexta-feira. Kevin, que terminou em 17º em 1975, alegava que muitos não podiam correr a prova por não terem uma licença que os dispensassem para realizar alguma atividade aos sábados.
A África do Sul, bem como os países do continente, são grandes caldeirões culturais, e isso envolve diversas religiões na mesma região. E como ex-colônia inglesa, muitos seguiam os preceitos do Anglicanismo, que impede que realizem qualquer coisa no dia do descanso de Deus, o Sabá. O pedido foi considerado e, na sexta feira de 1990 foi organizado o primeiro Friday Run, uma prova de 5,6 km que até hoje está presente, e tem como participantes parentes dos atletas e o próprio staff de voluntários, que podem sentir o gostinho do percurso que irão trabalhar no dia seguinte. A nota curiosa é que Kevin Rochford fez o pedido aos organizadores, mas tinha recebido, após quinze anos, a dispensa no sábado e participava de ambas as provas.
Querendo também atrair um público para quem 56 km era um pouco demais, foi criado em 1998 uma meia maratona concomitante à ultra. Assim, dava para completar a prova, dando um gosto a mais para a prova principal e ainda ter tempo de ver a chegada dos participantes da ultra, já que o tempo de corte é de 2h30. Um sucesso: logo no primeiro ano teve 2.942 inscritos. E hoje é até maior em quantidade de inscritos que os 56 km, com as 16 mil vagas já esgotadas para a edição de 2017.

MUDANÇA NO PERCURSO. O percurso teve alterações bem pontuais ao longo desses 47 anos, e a principal foi em 2000, quando o Chapman's Peak sofreu um incêndio devastador e uma série de quedas de rochas, podendo ceder com o peso de 10 mil corredores. Para manter a tradição dos 56 km, a organização alterou o percurso e incluiu a montanha "Ou Kaapse Weg", que tem 315 m de elevação, ou seja, o dobro da de Chapman. Em 2004 ele foi reaberto, mas somente para a prova e, em contrapartida, recebe doações (para sua conservação) da principal patrocinadora da ultramaratona, o banco inglês Old Mutual.
No mesmo ano de 2000, talvez pelo problema do percurso, talvez pelo entendimento de, quanto maior o número de participantes, mais lenta fica a mediana no tempo de conclusão, a organizadora aumentou o tempo de corte de 6 para 7 horas; também na Comrades foi de 11 para 12 horas, para se fechar os 89 km – em descida, ou 87 km – em subida do percurso. Enquanto isso, a elite nos últimos anos, apesar de estar bem aquém dos tempos de outrora, continua figurando como favorita para, poucos meses depois, vencer a Comrades, como foi o caso da campeã das edições de 2015 e 2016 da Two Oceans, a sul-africana Caroline Wöstmann.
Quem poderia imaginar que aquele último longão para a Comrades iria se tornar um evento cada vez mais cobiçado e com potencial para crescer ainda mais?

 

 

 

 

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