20 de setembro de 2024

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História admin 6 de janeiro de 2017 (0) (157)

A CONSTRUÇÃO DE UM CAMPEÃO OLÍMPICO: JOAQUIM CRUZ E O OURO EM LOS ANGELES 1984

Entre as várias formas de se perceber a força de uma nação no contexto internacional estão os esportes. É até a mais simbólica, pois sai das portas fechadas de reuniões diplomáticas, e mostra-se visível a milhões de espectadores. E a Olimpíada é o epicentro de tal exibição, no qual não é avaliado apenas como cada esporte se desenvolveu, mas também onde cada medalha de ouro é uma metáfora do confronto geopolítico entre as nações. E o Brasil, com seus mais de 200 milhões de habitantes, proporções continentais, e com uma ampla diversidade cultural, era de se esperar que a prática do esporte fosse grande e que houvesse muitos ícones esportivos. No entanto, ainda nos resumimos a ser apenas "o país do futebol".
O atletismo, o esporte mais emblemático dos Jogos Olímpicos, muito embora fosse o detentor da maior quantidade de medalhas olímpicas até os Jogos de Pequim, em 2008, possui infraestrutura e recursos ínfimos nos quais obrigam seus melhores atletas a irem morar fora do país na busca de melhor qualidade de treinamento. O resultado é que nas provas de pista e campo, contamos apenas quatro medalhas de ouro em toda a história: Adhemar Ferreira da Silva, Joaquim Cruz, Maureen Maggi e, agora no Rio, Thiago Braz. Contudo, apenas um ouro foi conquistado em uma prova de velocidade na pista, a de Joaquim Cruz, nos 800 m em Los Angeles 1984. A trajetória de tal medalha traz consigo uma história rica sobre como se construiu um campeão olímpico, que apresentamos nas próximas linhas.
Nascido em 1963, na recém-construída Brasília, Joaquim Carvalho Cruz foi fruto do contexto sociocultural da época. Seus pais migraram do Piauí atraídos pelas oportunidades que a construção da nova cidade oferecia. E muito embora morasse em uma casa na qual não coubessem decentemente os oito membros da família, em um assentamento ilegal na cidade satélite de Taguatinga, onde sequer tinha luz, o "Quincas", seu apelido de infância, tinha Brasília como seu quintal.
Os inúmeros prédios e conjuntos habitacionais que hoje ilustram a cidade ainda eram poucos, possibilitando ao menino se aventurar pelo serrado adentro. Em casa, seus laços afetivos eram mais fortes com suas cinco irmãs, e, sobretudo, sua mãe, Lidia. Seu pai tinha longas jornadas no setor de obras públicas, partindo antes do amanhecer e voltando quando os filhos já estavam na cama. Se o Joaquim pai trazia o sustento financeiro, a mãe era o pilar emocional da família.
O trabalho de seu pai, na "Novacap" (Companhia Urbanizadora da Nova Capital), ao mesmo tempo em que impossibilitava um contato mais próximo e afetuoso com Quincas, possibilitou seu ingresso na escola patrocinada pelo SESI, a melhor opção educacional para quem não poderia arcar com os custos das particulares. Esta ainda oferecia em seu currículo oficinas de esportes no contraturno e almoço para os alunos. Para uma família humilde na qual não se passava fome, mas que também nunca excedeu o mínimo necessário, era um grande estímulo ver seu filho matriculado lá, mesmo que, para isso, fosse necessário que Quincas saísse da sua cama, que ficava na cozinha, mais cedo e caminhasse dois quilômetros até o SESI, calçando seu único calçado, um tênis Conga que já lhe apertava os dedos.
Jovem de poucas palavras e bastante introvertido, Joaquim Cruz, ainda assim, tinha seu grupo de amigos de escola. O principal deles era Carlos Vanderley, o Vandeco. Costume entre os rapazes da idade, sua diversão era pregar peças nos amigos. E foram duas dessas que colocaram Joaquim Cruz no mundo dos esportes.

O COMEÇO NO BASQUETE. A primeira delas se deu quando um novo professor de Educação Física apareceu na escola, o paulista Luis Alberto de Oliveira, que buscava formar uma escolinha de basquete do SESI e estava selecionando candidatos para fazer o teste. Vandeco informou que seu amigo magrelo e quieto gostaria muito de participar da equipe de basquete. Morrendo de vergonha, compareceu ao teste no qual, surpreendentemente, não consistia em avaliar as habilidades com a bola alaranjada, mas sim realizar o famoso "Teste de Cooper". Doze minutos depois, Joaquim Cruz estava na equipe de basquete: era o mais rápido entre seus pares.
Passado algum tempo, já tinha dominado os fundamentos do basquete e começava a se destacar no esporte. Sua relação com seu treinador começava a se estreitar. Luis Alberto, inclusive, deu um novo apelido a ele: agora o Quincas dava lugar ao Juca. E se deleitava quando estava em quadra fazendo arremessos e passes. Sentimento oposto quando os treinos eram aeróbicos e ele era obrigado a correr. Odiava a atividade e deixava claro para quem quisesse ouvir: era enfadonho, chato e solitário ficar correndo na pista de 300 m do colégio sem nenhum propósito.
E enquanto Juca tinha seus sonhos juvenis de se tornar um jogador de basquete profissional, ainda mais quando pegou um avião pela primeira vez rumo a um campeonato no Ceará, seu amigo Vandeco lhe pregava a segunda peça. A escola procurava candidatos para formar a equipe de atletismo. Como via seu amigo sempre blasfemar quando tinha que correr e, contraditoriamente, era o mais rápido da equipe de basquete, Vandeco colocou o nome de Joaquim Cruz, ao invés do seu, na lista de interessados.
Para completar, procurou Luis de Oliveira, dizendo o que tinha feito, convicto que Juca ganharia tal prova. Competitivo ao extremo, o técnico quis confirmar a capacidade de Joaquim Cruz e, depois do treino de basquete, arrastou-o até a pista e deu as coordenadas: cinco voltas, o mais rápido que pudesse. Juca não esboçou reação, e mesmo contrariado, fez o que foi pedido e largou. Quatro minutos e quarenta e cinco segundos depois, Luiz de Oliveira olhava para o relógio espantado: o rapaz que bufava diante dele não era só um postulante de 14 anos a ser um jogador de basquete, mas sim um prodígio do atletismo. Quis tirar a prova dos nove e três semanas mais tarde, colocou o menino magrelo para disputar o campeonato estadual dos 1.500 m, no qual venceu com tempo de 4:19, qualificando-se, por tabela, para os Jogos Estudantis Brasileiro (JEB). Todos vibraram. Menos Juca.

NA PISTA, CONTRA A VONTADE. Relutou com a ideia de praticar um esporte no qual não apreciava e sumiu da vista do treinador. Só aceitou treinar para o JEB, pois foi a condição imposta por Luiz Alberto para poder continuar jogando basquete na quadra do SESI. Conformado, Juca acatou e foi representar Brasília nos Jogos Estudantis de 1977, alcançando a terceira colocação com impressionante marca de 4:02. Porém, ao chegar quase desmaiando, afirmou publicamente ser a última vez que iria correr. Afastou-se de vez de Luiz Alberto, que deu espaço a Juca para pensar, aproveitando que iria fazer alguns cursos nos EUA.
O dilema começou a se desfazer quando Luiz de Oliveira, já de volta, chamou Juca para ser monitor de basquete. Aos poucos foi amolecendo o coração do menino de Taguatinga e o fazendo sonhar com a possibilidade de ganhar uma bolsa de estudos nos EUA. Dizia que tinha falado dele para vários amigos americanos, e estes estavam empolgados em receber alguém do talento de Joaquim Cruz.
Na última e derradeira conversa, convenceu o jovem brasiliense em ser treinado somente por um mês. Se os resultados não aparecessem, deixaria o garoto jogar basquete em paz e não mais falaria em atletismo. E um mês depois, no Campeonato Brasileiro de Menores de 1978, Joaquim Cruz correu os 800 m em 1:54, superando o recorde nacional, e os 400 metros em 48.7, a apenas um décimo do melhor tempo. Sim, ele era um prodígio. Era visível a Juca que só viveria o seu "sonho americano", se fosse pela via do atletismo.
Joaquim Cruz e Luiz Alberto formaram uma simbiose notável. Passou a acreditar no treinador quando percebeu que se preocupava com ele, comprando, do próprio bolso, sapatos, alimentos e vitaminas. E Joaquim Cruz dava o seu máximo nas pistas. E o seu máximo não era só 100% de si, era um quilômetro a mais numa rodagem, um segundo a menos num intervalado que estava na planilha. Era a forma que encontrava para ganhar confiança de que os bons resultados viriam.

PRIMEIROS PATROCÍNIOS. E os resultados continuaram a aparecer; no final de 1978, no Campeonato Sul-Americano Júnior, estabeleceu o novo recorde de menores dos 800 m com 1:51. Dois anos depois, já estava na casa do 1:47 e 3:47 nos 1.500 m. Além disso, começou a receber patrocínios, como a do programa "Adote um atleta", da Coca-Cola, e, no ano seguinte, da Universidade Gama Filho.
O ano em que chegava à maioridade seria aquele justamente em que provaria os altos e baixos não só da vida profissional, mas da adulta. Já em janeiro sentiu, como um soco no estômago, a notícia da morte, por infarto, de seu pai. Estavam se aproximando, criando vínculos afetivos há menos de um ano. No mês seguinte, os quatro anos de rigoroso treinamento cobravam o corpo com juros e ele passou a conviver com uma tendinite na região do joelho, que o deixou parado por mais de dois meses.
No entanto, com o tempo, a alma se confortou, o corpo se recuperou e ele voltou aos treinos e às provas. A principal delas, e considerada pelo próprio Joaquim Cruz como a segunda maior ocasião emocional de sua vida, foi no Troféu Brasil, em junho de 1981. Nos 800 m, não apenas superou Agberto Guimarães, representante brasileiro nos Jogos Olímpicos de 1980, como completou com a marca de 1:44.3.

RECORDE MUNDIAL JÚNIOR. Ganhou, mas estava atordoado, confuso, com os aplausos efusivos e a gritaria no saudoso estádio Célio de Barros, anexo ao Maracanã. Após alguns segundos, foi informado que tinha superado o recorde mundial júnior, além de ser a melhor marca sul-americana da categoria adulta.
No entanto, a despeito da vitória e do recorde, o que mais marcou em tal prova foi a consagração da sua estratégia característica nas provas de 800 m. Ele gostava de controlar a competição desde o início, assumindo a liderança um pouco antes do fim do balizamento (momento onde os atletas podem sair de suas raias), aos 200 m, e ditava o ritmo até a arrancada final. Essa era sua assinatura, que, mais tarde, os americanos batizariam como "Cruz Control".
À noite, quando todo mundo tinha se acalmado, Luiz de Oliveira dava a Juca a notícia que o fizera optar pelo atletismo quatro anos antes: era hora de deixar o Brasil. Só que, antes, ele tinha que encarar mais um desafio. Enfrentar aquele a quem admirou pela TV um ano antes. Na terceira Copa do Mundo de Atletismo, em Roma, em setembro de 1981, ele teria o primeiro duelo contra o britânico Sebastian Coe.
Na prova dos 800 m não correu bem, se viu "encaixotado". Sem reação, completou na sexta colocação. Uma frustração amenizada pelo cumprimento do campeão. Coe, chegou perto dele, e o cumprimentou, dizendo algumas palavras ininteligíveis para o ainda incipiente inglês de Juca.

MUDANÇA PARA OS EUA. Quando sua mudança para os EUA foi anunciada publicamente, ao contrário da família, a notícia foi mal recebida pela imprensa, políticos e até mesmo outros atletas. Mesmo em um período onde a ditadura militar consolidava sua abertura, ainda vingava a ideologia expressa na frase "Brasil: ame-o ou deixe-o". Para muitos, Joaquim Cruz traía a nação, deixando-a para ir para os EUA.
A imprensa dava voz a Hélio Babo, presidente da CBAt na época. Para ele, seria o fim de Joaquim Cruz, e que a responsabilidade seria do "mercenário" Luiz Alberto de Oliveira, que, por fins mesquinhos e egoístas, iria destruir a carreira do jovem atleta. Mas o que mais doeu em Joaquim Cruz foi a opinião de João Carlos de Oliveira, o João do Pulo, bronze no salto triplo na Olimpíada de Montreal e de Moscou. Era um duro golpe ler que para este, Juca se dirigia a um matadouro, posto que iriam enchê-lo de substâncias ilegais.
Se já não bastassem as críticas, a adaptação de Joaquim nos EUA também não foi das melhores. Tinha conseguido uma bolsa de estudo pela Universidade Brigham Young, na cidade de Provo, no Estado de Utah. Uma cidade pequena, que apesar de hospitaleira, possuía clima adverso, com temperaturas baixíssimas em boa parte do ano. O que era péssimo para o treinamento e para a recuperação das dores no pé que incomodavam Joaquim Cruz desde que ele saiu do Brasil.
A solução encontrada por Luiz Alberto, a essa altura, já na posição de segundo pai de Quincas, foi procurar seus contatos na Nike para levar o seu pupilo à conhecida Universidade de Oregon, na cidade de Eugene, e também casa da patrocinadora. Três meses depois de se instalar em Provo, Juca mudou-se novamente e foi para a autointitulada "The Track City" (a Cidade das Pistas), Eugene.

PERNA MAIS CURTA. Se o problema do frio podia ser superado trocando-se de cidade, o problema do novo idioma só poderia ser solucionado pelo esforço próprio de Joaquim Cruz. Foi reprovado três vezes no teste de idioma na Universidade de Oregon, o que adiava o seu ingresso e, consequentemente, a bolsa de estudos. Era uma situação incômoda, mas não tanto como a que sentia em seus pés. As dores no pé direito tornaram-se insuportáveis, incapacitantes e a nova rotina do fundista brasileiro era ir ao consultório médico e fazer dezenas de exames.
As investigações revelaram mais que o esporão calcâneo que ele tinha adquirido, como também a provável causa: seu fêmur direito era menor dois centímetros que o esquerdo. A via mais rápida para remoção do esporão era a cirúrgica. Juca não titubeou e no dia seguinte do diagnóstico já estava na sala de operações. Um mês com o pé imobilizado, pode se concentrar apenas em passar na prova de admissão da Universidade. Passou no teste de idiomas e administrava as dores nas costas e no tendão, consequência do novo eixo de equilíbrio que o corpo tinha que se adaptar após a cirurgia. Recebeu da Nike um tênis especial, o qual compensava a diferença de tamanho entre as pernas.
Depois de todas as adversidades de adaptação, estava finalmente em paz para se focar nos treinos do ciclo olímpico. O idioma não era mais um problema e tinha na família de Luiz Alberto de Oliveira sua segunda casa. E já estava namorando sua futura esposa, Mary. A maturidade batia à porta e o atleta rebelde que treinava visando a tirar 110% de si, agora respeitava e obedecia aos sinais do corpo. Não mais se castigava, pois, finalmente, tornava-se um amante do ato de correr.
Apesar disso, seus treinos eram extenuantes, com sessões de duas horas de corrida, com cardápio marcado pela diversidade: longos de até 16 quilômetros, rodagens intercaladas com salto e treinamento de força, corrida em montanhas, além dos mais conhecidos intervalados, fartlek, treinos de velocidade, de ritmo e treinamento de circuito. Sentia que estava chegando ao auge do ciclo olímpico. Porém, antes, o objetivo era fazer seu nome nas pistas americanas.

SUCESSO NO ESPORTE UNIVERSITÁRIO. E conseguiu! O treinador de atletismo da Universidade de Oregon, Bill Dellinger, disse que Joaquim Cruz fez nos dois anos que vestiu a camisa dos "Ducks", como são chamados os atletas dessa universidade, mais que qualquer outro homem fez na vida. Na dura temporada do esporte universitário americano, onde há competições quase todo final de semana, Juca tornou-se ídolo, vencendo a maioria das provas disputadas.
Logo no início da temporada, em março de 1983, estabeleceu a nova marca sul-americana dos 1.500 m, com tempo de 3:38.43. E ao final dela, consagrou-se e tornou-se o primeiro brasileiro a vencer o campeonato dos 800 m da NCAA, o tradicional campeonato universitário norte-americano em 1983, com o tempo de 1:44.91. No mesmo ano, foi bronze na Copa do Mundo de Atletismo em Helsinki.

LOS ANGELES 1984. Chegava enfim, a Olimpíada de Los Angeles, em 1984. Diferentemente do que acontecera em Moscou, o boicote aos Jogos nos EUA não chamou a atenção por diminuir o número de países participantes – que foram 140, um recorde -, mas sim por influenciar bastante no nível técnico de muitas provas.
Para que se tenha uma ideia, as quartoze nações que se recusaram a ir aos EUA haviam conquistado 58% das medalhas de ouro em disputa em Montreal, em 1976. No entanto, os olhos estavam voltados para a primeira maratona feminina da história e pela busca do jovem americano Carl Lewis em repetir o feito de Jesse Owens em 1936, e vencer as mesmas competições que o mito: 100 e 200 m rasos, revezamento 4×100 m e salto em distância.
Como de costume, os jornais começavam a fazer suas listas de prováveis vencedores. E nos 800 metros, Joaquim Cruz escondia o sorriso quando via o seu nome entre os potenciais vencedores, ao lado dos ingleses Sebastian Coe, recordista mundial da modalidade, e Steve Ovett, ultimo campeão olímpico.
Chegou a Los Angeles na melhor da sua forma física e já tinha dado algumas declarações para a imprensa brasileira de que não estava indo para competir, mas sim para vencer a prova. Apesar disso, e para sua felicidade, o tímido Juca circulava pela Vila Olímpica e pelas ruas de Los Angeles como ilustre desconhecido.

PRIMEIRA ELIMINATÓRIA. Se até então era pouco conhecido, deixou de ser na primeira eliminatória dos 800 m. Venceu sua bateria com o alto tempo de 1:45.66, mas mostrou seu cartão de visitas ao ser o mais rápido entre todos na eliminatória, deixando para trás, nada menos que Steve Ovett. Para evitar distrações e manter o foco apenas na competição, o fundista ergueu um muro contra a imprensa, e se recusava a dar entrevistas, o que foi compreendido pela maioria, mas visto como uma atitude antipática por uma minoria.
A segunda bateria seguiu o script da primeira eliminatória: Joaquim Cruz dominou a prova de ponta a ponta, cumprimentou seus colegas, dirigiu-se para uma pista anexa para trotar, e voltou para a Vila Olímpica, sem alardes ou entrevistas.
No mesmo dia em que Joan Benoit fazia história e ganhava a primeira maratona olímpica feminina, Joaquim Cruz se alinhou na pista do Memorial Coliseu de Los Angeles para a semifinal. Era a semifinal mais forte, que contava, novamente, com o britânico Ovett, o queniano Edwin Koech e seu velho rival da época de NCAA, o americano Earl Jones.

PRIMEIRO SUB 1:44 NOS 800 M. Conhecendo o "Cruz Control", Jones quis estragar os planos e o ultrapassou ao fim do balizamento, seguido do queniano. Não demorou muito para que Joaquim Cruz voltasse à liderança e, ao final, arrancou não somente para a vitória, mas também para o seu recorde pessoal, fazendo, pela primeira vez, um sub 1:44, com o tempo de 1:43.82 .
Sebastian Coe, que assistiu atentamente à prova do brasileiro, saiu de lá satisfeito. Para ele, que teve uma semifinal tranquila, via no desgaste de Joaquim Cruz na semifinal a sua chance de ganhar o ouro perdido em 1980, quando foi superado por Steve Ovett. Já Joaquim Cruz, em um dos raros momentos onde se deixou tomar pela emoção do momento, descumpria o pacto de silêncio, e dava uma rápida entrevista ao então repórter Reginaldo Leme, da Rede Globo. Ainda ofegante, respondeu sobre a possibilidade do recorde olímpico: "Se a medalha de ouro vier, o recorde também vai vir". Ao se ver falando para um microfone, irritou-se consigo mesmo e logo se retirou. À breve irritação somou-se a tristeza de ver seus compatriotas e amigos Zequinha Barbosa e Agberto Guimarães serem eliminados nas semifinais.
Mais tarde, conversava com seu treinador sobre a estratégia para a final. Sempre muito lúcido e de uma inteligência esportiva ímpar, Joaquim Cruz tinha convicção que o queniano e o americano iriam tentar quebrar novamente o "Cruz Control" na final, enquanto Ovett e Coe ficariam à espreita para se valer de um dos seus maiores trunfos: o sprint nos últimos 100 metros.
Luiz Alberto de Oliveira sugeriu então variar a tática: não tomaria a frente logo de início, não lideraria, mas ficaria bem próximo do primeiro, para só impor seu ritmo nos últimos 200 metros. A ideia era confundir os atletas que achavam que o fundista brasiliense só tinha uma carta na manga.

O GRANDE DIA. Desta forma, no dia 6 de agosto, as emissoras de TV no Brasil pararam sua programação normal do final da noite para acompanhar o rapaz de 21 anos, com uniforme azul e numeral 093, posicionar-se na raia 6 para a largada da final olímpica. Osmar Santos ficaria encarregado de fazer a transmissão e como sabia pouco além dos principais nomes, tornava-se mais um torcedor do que narrador.
Dado o tiro de largada, Joaquim Cruz deixou o queniano Edwin Koech tomar a ponta. Ao completar a primeira volta, chegava ao que se chama de "zona da morte", entre os 500 e os 600 m de prova: é o momento no qual o melhor atleta no dia impõe seu ritmo. Esse era o trunfo de Sebastian Coe, e Joaquim Cruz vigiava-o atentamente para não ser surpreendido. Controlava-se para não disparar antes do combinado; começou a imprimir seu ritmo, tomando a dianteira; após uma leve olhada para trás, viu que a prova era dele e começou a acelerar para delírio do público. Coe até reagiu, ultrapassando Jones e Koech, e conquistando o segundo lugar.
Joaquim Cruz cruzou a linha de chegada com impressionantes 1:43.00, novo recorde olímpico, que perdurou durante doze anos. Ergueu o braço e deu um soco no ar. Pelo menos no Brasil, o feito de Joaquim Cruz tinha eclipsado a façanha de Carl Lewis, que conseguiu conquistar as mesmas provas de Jesse Owen. Ou de Joan Benoit na maratona feminina.

PRIMEIRO OURO EM PISTA. Era o primeiro ouro em prova de pista para o Brasil. Mais: era o primeiro televisionado ao vivo. Pegou uma bandeirinha do Brasil, que tinha secretamente guardado com um amigo do alojamento, e deu a volta olímpica, terminando com um abraço intenso entre Juca e Luiz Alberto. Um abraço de reconhecimento, de agradecimento, mas também um abraço emblemático: era o abraço que ele não podia dar ao primeiro pai.
Enquanto Steve Ovett tinha parado no hospital depois da exaustão ao final da prova, Sebastian Coe (hoje presidente da IAAF), que conseguiu a prata, anunciava que não iria mais competir nessa distância. Aos 27 anos, ele afirmava: "Isto não é justo; fui superado por um adolescente".
A rivalidade não ficaria restrita apenas a essa prova, pois dias depois iriam se encontrar nas seletivas para o 1.500 m, prova onde Coe defenderia o título olímpico. No entanto, se os finalistas dos 800 m não conseguiram capturar o Juca, o vírus de uma gripe impediu seu desejo de se igualar ao de Peter Snell, em 1964, e conquistar a dobradinha 800 m/1.500 m.
Dividindo apartamento com José João da Silva, que deixou de correr a prova dos 10.000 m devido a uma forte gripe, e com imunidade de guarda aberta diante do esforço dos 800 m, Cruz foi uma vítima fácil. Até correu a primeira eliminatória, vencendo facilmente. No entanto, sabia que naquelas condições era melhor não continuar. Luiz Alberto até insistiu, mas ele foi enfático e o treinador respeitou a decisão.

SEM OBA-OBA. A máquina pública, ao saber da desistência de Joaquim Cruz nos 1.500 m e do seu aviso de que não iria vir ao Brasil, para subir em carro de bombeiros, acenar para pessoas e aturar a enxurrada de entrevistas, percebeu que esse atleta não era uma marionete política. Sequer deixou a mãe aceitar o "presente" da Fundação Roberto Marinho, de lhe dar uma casa nova. Isso ele faria para ela, e que os governantes usassem o dinheiro para construir pistas.
O contra-ataque veio nas palavras de Hélio Babo para a revista "Placar". E se dirigiam não a Joaquim Cruz, mas sim para Luiz Alberto de Oliveira, novamente caricaturado como um mercenário que fez a cabeça do jovem Juca para que não corresse a prova de 1.500 m, de forma a se recuperar para os meetings que iriam acontecer no próximo mês e cuja premiação era altíssima. Acusações no mínimo levianas a alguém que já não ganhava nada sobre Joaquim Cruz e outros atletas, pois desde janeiro de 1984 recebia um salário fixo como treinador.
As críticas caíram no esquecimento. A imprensa continuou a sua cruzmania, onde até um bebê abandonado numa rua de São Paulo recebeu o nome de Joaquim Cruz. Ao longo dos anos, mais títulos e outra medalha olímpica (prata nos 800 m em Seoul) surgiram na vida desse atleta que é considerado pela conceituada revista americana "Track and Field News" como um dos três melhores nos 800 m em toda a história.
Foi homenageado acendendo a pira dos Jogos Pan Americanos no Rio de Janeiro em 2007 e na abertura dos Jogos Olímpicos, no último mês no Rio, teve a honra de representar o Brasil, ao ser um dos atletas a levar a bandeira olímpica. Mas, infelizmente, ele continua mais reconhecido lá fora do que entre nós.
Assim mesmo, o jovem Quincas, de origem humilde em Taguatinga, ao se tornar o Joaquim Cruz medalhista olímpico e que arrebatara corações pelo mundo, não esqueceu suas raízes. Mesmo morando em San Diego, na Califórnia, mantém em sua terra natal o Instituto Joaquim Cruz, a melhor forma que encontrou para fomentar novos talentos. Ele afirma um status heroico, que apenas alguns atletas são capazes de manter, depois de terminar sua carreira esportiva.

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