História admin 7 de setembro de 2016 (0) (601)

Maior que o ouro: a jornada de Vanderlei de Lima em 2004

O ano é 2004. O lugar é Atenas, na Grécia. Estamos próximo ao km 36. No Brasil, perto das duas horas da tarde, tele espectadores que já abriam seus sorrisos para a certeza da conquista de uma última medalha dourada, inédita e, talvez, mais desejada, olhavam aterrorizados para a TV. Uma pessoa vestida com traje típico escocês driblava a péssima segurança e, da outra margem da avenida, onde não havia espectadores, corria em direção ao líder da maratona olímpica, o brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima. Foram oito segundos de horror, nos quais o atleta foi agarrado, empurrado contra a multidão, caiu ao chão e foi colocado de volta à prova graças à iniciativa de um grego forte que acompanhava a prova. Ao sair, Vanderlei de Lima balançava a cabeça, em choque, como se dissesse a si mesmo "estragou tudo, estragou tudo".
Com então 35 anos, Vanderlei tinha, provavelmente, sua última oportunidade em uma Olimpíada. Nascido em Cruzeiro do Oeste, na região noroeste do Paraná, seu sonho, assim como a maioria dos jovens brasileiros, era ser jogador de futebol. No entanto, ter muito fôlego para ir de um lado ao outro do campo não compensava a pouca habilidade com a bola nos pés, nem a pouca estatura e o corpo franzino. O sonho do futebol acabara, mas surgira outro, quando seu professor de educação física viu nele, aos doze anos, potencial para ser um fundista e o treinou para participar de uma prova no interior paranaense. Acabou ganhando e criando outro sonho: o de ser um corredor profissional. Mais, um atleta olímpico.
Se o Brasil é, historicamente, celeiro de excelentes jogadores de futebol, o mesmo não pode ser dito para fundistas. Pelo menos até os anos 80. E a despeito de alguns nomes que se destacaram, como José Romão Andrade, Edson Bergara, Eloi Schleder, Diamantino dos Santos, e os campeões da São Silvestre, José João da Silva e João da Mata, estes eram exceções confirmatórias à regra de não termos representantes reconhecidos mundialmente por suas realizações em provas de longas distâncias.
O quadro mudaria, gradualmente ao longo dos anos 90, mas, naquele momento, era um empecilho para o jovem Vanderlei de Lima: de família humilde, viam que a "brincadeira" de correr estava sendo levada a sério demais e ficaram reticentes, pois precisavam de apoio para colocar comida na mesa para a família inteira, incluindo Vanderlei e seus seis irmãos. E ele logo alternou fazer pequenos serviços em fazendas da região e treinar correndo entre as fazendas, à revelia da família.

MUDANÇA PARA SÃO PAULO. As coisas começaram a mudar quando Vanderlei, destacando-se cada vez mais no mundo da corrida, em 1988 recebeu convite para se mudar para São Paulo e treinar pela equipe Eletropaulo. Dois anos depois, passou a treinar pela União Esportiva Funilense, em Campinas. Porém, o ponto de virada se deu quando seu antigo e querido treinador, Asdrúbal Ferreira Batista, faleceu em 1992 e ele foi entregue nas mãos do jovem técnico Ricardo D'Ângelo.
Este teve curta carreira como atleta no final dos anos 70, mas o suficiente para se apaixonar pelo esporte. Depois de formado, dedicou-se a levar sua paixão como treinador. Vanderlei resume bem a relação entre os dois "Nós temos um ótimo relacionamento, e quando eu comecei a correr, ele estava iniciando sua carreira de treinador; nós dois aprendemos muito juntos". A sinergia entre atleta e seu novo técnico foi tão intensa que até hoje, Ricardo D'Ângelo o representa oficialmente.
E foi seu principal mentor que, acidentalmente, transformou Vanderlei em maratonista. D'Ângelo, querendo que Vanderlei, já com seus 25 anos, ganhasse mais experiência em nível internacional, sugeriu que aceitasse ser "coelho" da maratona na cidade francesa de Reims. Seu contrato solicitava que ele puxasse os líderes até a metade da competição, no entanto, como ele mesmo citou em entrevista, "No meio da corrida eu me senti tão confortável que decidi continuar. Primeiro até a marca dos 30 km, em seguida, fui até o final da corrida, ganhando a prova em 2:11:06".
Daí pra frente, Vanderlei Cordeiro integrava-se definitivamente ao seleto grupo de fundistas que, nos anos 90, elevaria o moral do Brasil na categoria. Entre eles, destaca-se Luiz Antônio dos Santos, bicampeão da maratona de Chicago e bronze na maratona do Campeonato Mundial da IAAF em 1995, na Suécia. E, Ronaldo da Costa, o qual, surpreendentemente, bateu o recorde mundial, que já perdurava dez anos, na maratona em Berlim em 1998, com um estupendo 2:06:05 -marca até hoje não superada por nenhum outro brasileiro.

GRANDES RESULTADOS. Vanderlei obtivera resultados importantes, como a quinta colocação na dura prova de Nova York em 1994, a vitória na Maratona de Tóquio em 1996, onde foi vice-campeão dois anos depois, e terceiro na rápida e famosa Maratona de Fukuoka em 1999, mesmo ano onde foi ouro nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg, no Canadá. Não se especializava apenas em ser mais resistente, mas cada vez mais veloz. Não por acaso, no primeiro ano onde a tradicional prova 10 km Tribuna FM, na cidade de Santos, teve seu percurso homologado pela IAAF, ele foi recordista com a marca de 28:01.
Obviamente que conquistara o sonho de integrar a delegação brasileira olímpica tanto nos jogos de Atlanta, em 1996, quanto em Sydney, quatro anos depois. Todavia, essas duas competições levaram a imprensa brasileira a certa desconfiança quanto às suas reais capacidades. A Folha de S. Paulo, em 2004, estampava matéria cuja chamada era "Vanderlei Cordeiro de Lima obteve resultados pífios nos Jogos anteriores". Ela se referia à 47ª colocação na prova em Atlanta e o abandono durante a de Sydney, em 2000, ambas por lesão. Todavia o texto pouco explorava que apenas em 1984 o Brasil, com Eloi Schleder, ingressou na maratona olímpica e que Vanderlei era o sexto atleta, em toda história brasileira, a entrar nessa competição, e o segundo a participar três vezes em sequência.
Pouco bastou também sua vitória na dura e quente Maratona de São Paulo em 2002, correndo sozinho e fechando em 2:11:19. Tampouco foi citado seu bicampeonato nos Jogos Pan Americanos de 2003, na cidade dominicana de Santo Domingos, onde encarou um clima desumano, que o fez chegar quase em colapso ao final da maratona. Ele, mesmo com índice para os Jogos Olímpicos de Atenas, era uma incógnita. Mal sabiam que as adversidades que ele tinha encontrado nessa jornada tornaria épica a prova do dia 29 de agosto.

29 DE AGOSTO. Era o último dia de jogos das Olimpíadas em Atenas, e os brasileiros já consideravam que tinham conquistado sua última medalha naquele domingo pela manhã, quando a seleção de vôlei bateu a italiana por três sets a um. Embora estivesse na décima sexta colocação, a delegação de atletismo estava prestes a voltar da capital grega sem nenhuma medalha. A meta da CBAt era obter pelo menos dois pódios e igualar o desempenho obtido em Helsinque em 1952 e em Seul em 1988, quando tivera seus melhores resultados.
Mas, o resultado final parecia ser pífio, abaixo inclusive das últimas Olimpíadas, quando o revezamento 4×100 m, bronze em 1996 e prata em Sydney, tinha subido ao pódio. As fichas da CBAt estavam depositadas no então segundo colocado no ranking mundial de salto triplo, Jardel Gregório, e, novamente, no revezamento 4×100 m, formado pelos atletas Cláudio Souza, Edson Ribeiro, André Domingos e Vicente Lenílson. Jardel terminou na quinta colocação, enquanto o revezamento amargou a oitava e última colocação.
Contudo, estávamos em um domingo, aproximadamente ao meio dia (18 horas em Atenas), e as câmeras das principais emissoras de televisão aberta e por assinatura estavam voltadas para o último grande evento: a maratona masculina. O percurso é o mesmo dos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, em 1896, e correr com os pés montados na história era a grande atração do último evento.
A sua altimetria oscilava entre longos e curtos aclives e declives, já de conhecimento dos 102 atletas que iniciaram a prova. O grande momento altimétrico da prova estava no km 30, onde os dois quilômetros em subida faziam os jornais brasileiros lembrarem-se da semelhança a que era o "terror" dos atletas na São Silvestre: a subida da Brigadeiro Luiz Antônio. No entanto, mesmo os mais desgastados muscularmente teriam uma motivação para aumentar sua velocidade ao final: assim que entrassem na capital grega, faltando um pouco mais de 5 km, seriam recompensados por um trajeto todo em descida até chegarem ao Estádio Olímpico original de 1896, o Panathinaikon.
O maior problema residia, na verdade, nas condições climáticas. O intenso e seco calor do verão europeu assolava Atenas, chegando a temperaturas acima de 32º C, como foi sentido na maratona feminina, uma semana antes, quando inúmeras atletas abandonaram por exaustão, incluindo a favorita e, recordista mundial, a inglesa Paula Radcliffe, exatamente na placa do km 36. Uma semana depois, no dia 29, o clima tinha melhorado um pouco, mas a temperatura ainda era alta, entre 26º e 28º, e o ar extremamente seco, com umidade em 40%.
Percurso duro, clima desfavorável, e o trio brasileiro composto pelos maratonistas André Luiz Ramos, Rômulo Vagner da Silva e Vanderlei Cordeiro de Lima não inspirava otimismo. Sobretudo pelos outros competidores. Como dito, entre os 102 participantes, 14 tinham tempos abaixo da casa de 2h08, e Vanderlei, que, entre os brasileiros, tinha o melhor tempo de carreira, com 2:08:31, era apenas o 18º colocado no quesito marcas.

CONCORRÊNCIA. Entre seus concorrentes estavam o marroquino Jaouad Gharib, então campeão mundial em 2003; o sul coreano Bong Ju Lee, prata nas olimpíadas de 1996; o veterano e duas vezes medalhistas de bronze em mundiais, o italiano Stefano Baldini. No entanto, todos os olhos marcavam os passos do queniano Paul Tergat. Ele estava sedento por uma medalha de ouro, após bater duas vezes na trave nos 10.000 em Atlanta e Sydney. E, assim como Vanderlei, sabia que poderia ser sua última participação olímpica, pois já entrava na casa dos 35 anos de idade. Porém, ele tinha como uma de suas motivações o primeiro sub 2h05 da história das maratonas, obtido um ano antes, em Berlim. A outra era o jejum no qual nenhum queniano, já a principal potência nos 42 km, jamais tinha vencido a maratona na história dos Jogos Olímpicos e que apenas acabaria com Samuel Wanjiru, em Pequim 2008.
Dificilmente alguém entre os participantes tinha a plena certeza de que poderia vencer Paul Tergat, e por isso mesmo a tática observada nos primeiros quilômetros foi a de deixar o queniano ditar o ritmo. Logo, os primeiros 10 km foram realizados em um pace muito lento, a 3:12/km, formando assim um gigantesco pelotão no qual alguns se aventuravam em pegar a ponta, como o suíço Viktor Rothlin. Mas, logo voltavam a se agrupar.
O ritmo moroso já incomodava Vanderlei, mesmo não sabendo exatamente a quanto estava, pois não possuía qualquer tipo de relógio em seu pulso. Sentia-se bem, já começava a liderar, junto com o espanhol José Rios e o chinês Gang Han, o ainda enorme bloco, praticamente uma comitiva de 60 corredores ao redor de Paul Tergat, que desfilava pelas ruas gregas.

NÚMERO 1234. Correr no calor não era um problema para o brasileiro que vestia o numeral 1234: a prova do Pan Americano no ano anterior, em Santo Domingo, já mostrava sua boa adaptação a temperaturas elevadas. Correr em percurso acidentado, igualmente, não era um problema para Vanderlei, o qual tinha vencido a dura Maratona de São Paulo dois anos antes. Tampouco correr sozinho era um incômodo, pois os anos correndo pelas fazendas em Cruzeiro do Norte e suas melhores provas o gabaritavam como um corredor que não tinha a necessidade de correr em pelotão.
Sua preparação, a despeito de um acidente de moto que quebrou seu ombro e quase o tirou das Olimpíadas, foi praticamente perfeita, finalizando-a em uma temporada na altitude da cidade colombiana de Paipa. Contudo, era visível que, não obstante tivesse todos os recursos para escapar definitivamente do bloco e fazer a sua própria prova, ele resistia à ideia, e ficou mais dez quilômetros em uma tática cautelosa até demais.
O rumo da maratona olímpica mudou, primeiramente, pouco antes do km 20. Tal como a atleta japonesa Mizuki Noguchi, que disparou naquele ponto e venceu a maratona feminina na semana anterior, o sul-africano Hendrick Ramaala fez uma breve "fuga" do pelotão, abrindo alguns segundos. Como saiu em disparada e não tangenciava as curvas, era certamente um blefe, e não demorou muito para Paul Tergat e sua comitiva o alcançar. No entanto, foi nessa hora que "de Lima", como a transmissão oficial o chamava, não apenas alcançou Ramaala como foi embora. E não era uma fuga inconsequente.

A FUGA NO KM 20. O técnico Adauto Domingues, já então preparador do prodígio Marilson Gomes, e amigo próximo de Vanderlei de Lima, comentava a prova pela emissora ESPN e, ao ver que o paranaense passava a metade da prova em 01:07:23, abrindo 15 segundos à frente do pelotão, que já diminuíra para 24 atletas, indicava qual era a provável tática de Vanderlei naquele momento: "Ele abriu muito, mas é experiente; quer abrir para respirar". Seu currículo, argumentava, garantia que ele não era inconsequente para disparar. E deixava o alerta ao ver que o pelotão não reagiria à fuga do brasileiro: "Ele sabe correr sozinho e, se deixarem, vocês pode ter certeza que ele vai até o final". Mas ainda era cedo para qualquer comemoração.
Na cabeça de Vanderlei, a imagem que o fez tirar da zona de conforto e ir fazer sua prova foi a carta que tinha recebido horas antes de seu treinador. Embora estivesse em Atenas, Ricardo D'Ângelo não era da comitiva olímpica e não possuía credencial para ir até a largada. Últimas palavras, sejam de apoio ou de tática, de um técnico para seu atleta são importantes.
A solução para D'Ângelo foi escrever uma carta para seu atleta, entregando por meio de outro treinador, João Paulo da Cunha. Concisa, relembrava a tática estudada e reforçava os laços que já iam para além do profissionalismo: "Lembre-se da forte subida no km 30. Se você estiver se sentindo bem, arrisque, porque se você não corre o risco, você nunca vai ganhar. Minha confiança em você é imensa, por isso vamos lutar pelo objetivo que tem sonhado por um longo tempo. Não importa o que acontecerá no final, lembre-se que você sempre terá a minha confiança e amizade, e também lembre-se que eu admiro você pela pessoa maravilhosa que é. Então, boa sorte, e vamos tomar uma cerveja juntos após a corrida".

TÁTICA PERFEITA. O Brasil então parou diante da TV. As pessoas nas mesas em seu almoço dominical, sempre tagarelas, silenciaram e viam o "de Lima", que mais lembrava um jóquei, com seus 1,68 m e 52 kg, se distanciar cada vez mais de um pelotão inerte, que parecia não acreditar que ele se manteria num pace de 3:09/km por muito tempo. A prova era só do paranaense; André Ramos abandonou antes do 10º km e Rômulo Vagner no 24º km.
A tática, segundo Adauto, era perfeita, pois, se algum grupo encostasse nele, não seria mais uma grande comitiva, mas 4 ou 5 atletas, o que era bom, pois ele correria junto e levaria a decisão para o final. A distância entre ele e os outros já passava dos 30 segundos no km 25, e ao mesmo tempo em que Baldini, Tergat e Gharib se destacavam do comboio, onde muitos abandonavam ou diminuíam o ritmo por conta do calor, Vanderlei dava uma leve olhada para trás e, ao virar o rosto para frente dá um discreto, porém maroto, sorriso.
Conhecido por suas colocações enfáticas, doa em quem doer, Adauto Domingues sabia que muito provavelmente este grupo que já descolava, a passos lentos – diga-se, atrás do brasileiro, provavelmente o alcançaria. Porém, a sua prova era extremamente simbólica no entender do treinador, pois "independente até da gente pensar em medalha ou qualquer coisa, com certeza ele está fazendo uma bela prova. E é isso que a gente espera, é isso que a gente quer dos atletas. Que estes caras, realmente, façam aquilo que sabem fazer, que não se escondam, que apareçam, que mostrem a cara". Recado dado e quem têm ouvidos, ouça.

DESCONHECIMENTO. Particularmente, dois anos depois da prova em Atenas, o atleta de Adauto, Marilson Gomes, vencia a Maratona de Nova York pela primeira vez em circunstâncias muito parecidas: um percurso duro, o mesmo adversário – Paul Tergat, uma fuga na metade da prova, na qual foi desacreditada pelo desconhecimento dos tempos do atleta. Vanderlei também foi desprezado pelo pelotão. Exemplo disso é que, em livro de sua autoria, o americano Meb Keflezighi afirma que não sabia que Vanderlei tinha um tempo melhor que o dele em maratonas.
Por falar em Meb Keflezighi, é possível afirmar com base não somente na literatura, mas na prova em si, que este foi um dos principais, para não dizer, o principal catalisador para que as coisas mudassem naquele evento. Em sua apenas 4ª maratona e sofrendo com dores terríveis do ataque de um cão enquanto treinava na cidade de Creta, Meb desistira da prova dos 10.000 m, na qual tinha índice, para se dedicar somente ao último evento dos Jogos. E reconhecia suas limitações enquanto maratonista, tanto que, se todos tentavam acompanhar Paul Tergat, sua estratégia era ir atrás do experiente italiano Stefano Baldini, que estava em sua 17ª maratona e tinha como característica uma forte e consistente chegada, ao contrário do brasileiro.
Meb fez uma prova cautelosa, ficando em um bloco secundário por bom tempo, mas com 1h30 de competição já tinha alcançado e ultrapassado nada mais, nada menos, que Paul Tergat, colocando-se ao lado de Baldini, que coincidentemente também sofria as dores de um ataque canino durante sua preparação. Ao chegar ao km 30, em um posto de hidratação, o americano, que já puxava o pelotão, recebia a informação de um médico da sua delegação que "de Lima" estava a 42 segundos deles! Muito embora achasse difícil tirar essa diferença, resolveu apertar o passo, a despeito do pelotão.

NA LIDERANÇA. Vanderlei não apenas chegava ao ponto mais íngreme e forte da prova, como acelerava, e o comentarista já falava que ele estava no modo "quem quiser que venha atrás de mim e me alcance". Ele completou a parte mais complicada da prova com seu melhor split da prova, 15:05 em 5 km. Houve uma breve hesitação do pelotão, que estava atrás do brasileiro: enquanto Meb tentava acelerar para diminuir a desvantagem, alguns ainda se mantinham presos à estratégia de ficar ao lado de Tergat, que já diminuía os passos.
Ao passar pelo km 35, Meb foi novamente informado que estava a "apenas" 28 segundos de Vanderlei, ou seja, se aproveitando do trajeto, que já começava a entrar num leve declive, era hora de acelerar ainda mais, fechando, junto com Baldini, a passagem dos 30 para os 35 km em impressionantes 14:47. E, nesse momento, o americano, muito próximo de Baldini, disse, em italiano, "Endiamo primo e segundo" ("Terminemos em primeiro e segundo").
Os olhos de Baldini se esbugalharam e ficaram em choque, como se pensasse "esse neguinho usando uniforme americano está falando italiano comigo de verdade?". Estava sim. Meb nasceu na Eritréia, país dominado nos séculos 19 e 20 pela Itália. Ele foi alfabetizado em italiano e, antes de se mudar para os EUA, morou um tempo na Itália, o que, nos leva a acreditar que não foi uma frase inventada para florear sua biografia.
Acreditando ou não no que americano disse, ambos partiram para a caça a Vanderlei, que já dava sinais visíveis de cansaço, enquanto Meb puxava Baldini de forma consistente. Uma das projeções de Adauto Domingues era que eles se encontrariam lá pelo km 40. No entanto, quanto mais próximo da chegada, mais o ambiente motivacional poderia ser favorável ao brasileiro, que corria sobre a "blue line" (a linha pintada no chão, que indica o caminho mais econômico), em uma avenida larga, ora indo para perto do canteiro central, ora se aproximando do público.
A segurança, por sua vez, era precária, não havendo motos ou um carro-madrinha escoltando o líder, apenas um policial em uma bicicleta que, em certo momento estava a 50 metros dele. Era visível uma falha clara na segurança e que qualquer incidente poderia acontecer.

O ATAQUE. Entretanto, até os mais pessimistas, quanto à continuidade do brasileiro na conquista da medalha de ouro, se espantaram quando uma cena muito rápida foi transmitida, mostrando uma confusão que tinha ocorrido e, oito segundos depois, um Vanderlei emocionalmente abalado se levantava e saía em fuga, com uma cara decepcionante, como se dissesse a si mesmo "estragou tudo, estragou tudo".
Quem estragou tudo foi Carnelius Horan, que chocou e maculou as Olimpíadas ao derrubar Vanderlei, vestindo um kilt vermelho, meias verdes de cano alto, e com um cartaz nas costas que dizia: "A segunda vinda está próxima.". Não era a primeira vez que tinha feito algo semelhante: no ano anterior interrompera o Grande Prêmio da Inglaterra de Fórmula 1 entrando na pista.
A segurança olímpica se mostrou tão ineficiente que foi um grego, Polyvios Kossivas, quem tirou o brasileiro do embolo com o irlandês e o fez voltar à prova. Foi tudo muito rápido, intenso, e por ter acontecido em uma larga curva, não durou tempo suficiente para que Baldini e Meb Keflezighi vissem alguma coisa. Somente o clima do lugar pós evento e a rápida chegada em Vanderlei é que fizeram ambos perceberem que algo tinha acontecido. A diferença que o brasileiro construíra a tanto custo, foi tirada de forma estúpida e nos impede de fazer qualquer análise mais embasada sobre as reais condições de ele conseguir o ouro.
Ainda assim, Vanderlei de Lima, mesmo abalado e correndo em uma biomecânica já deficitária, conseguiu segurar a pressão de um Stefano Baldini ensandecido, correndo a 2:53 de pace nesse momento, e tirando a diferença a passos largos. De forma definitiva ultrapassou o brasileiro no início do km 39, com 2:00:07 de prova. Vanderlei nem esboçou reação: balançou a cabeça e tentou se manter mentalmente na prova. Um minuto depois, Meb Keflezighi o passaria também.
Este tinha desistido de ir atrás de Baldini, não somente por uma questão de ritmo: sabendo que alcançaria "de Lima", mas ainda com receio que Paul Tergat tivesse se ressurgido na prova e viesse como um leopardo para cima dele, ele só pensava "a medalha está em minhas mãos, não estrague tudo". Seria a primeira medalha americana na maratona olímpica desde Frank Shorter. Após ser ultrapassado pelo americano, Vanderlei olhou para trás e viu que ninguém mais o ameaçava. Tirou definitivamente o pé, para administrar a chegada.

E SE NÃO TIVESSE OCORRIDO? Baldini tinha completado os 40 km em 2:04:48, fazendo os últimos 5 km em 14:39. Se o brasileiro mantivesse seu melhor split até esse momento (e sem o padre), Baldini o encontraria exatamente nesse instante. Ponto para Adauto! Até aí, ponto pacífico: eles se encontrariam e pelas marcas e tempos, soaria desonesto dizer que isso não aconteceria.
No entanto, como disse o treinador de Marilson, "que os dois iam chegar nele, não havia dúvida, só que cada vez que você demora a se aproximar, a expectativa da linha de chegada motiva muito mais o atleta". Já Bob Larsen, treinador de Meb, é até mais enfático no livro deste atleta, pois diz que o incidente com "de Lima" deu possibilidade reais para o americano. Se não tivesse ocorrido, então tanto Baldini quanto Meb precisariam de mais tempo para alcançar o brasileiro. E era muito provável que tudo se resolvesse muito próximo do estádio ou mesmo dentro da pista.
Por sua vez, Baldini sempre afirmou, embora tenha atenuado seu tom nos últimos anos, que passaria Vanderlei com incidente ou não. "O que eu penso é que, olhando como a corrida se desenvolvia, analisando os tempos que estávamos fazendo e vendo como terminou, acho que a maratona seria encerrada da mesma maneira", o que foi visto como arrogância e desprezo por Vanderlei.
Cada vez mais próximo do Estádio e vendo a noite chegar, tanto Baldini como Meb Keflezighi tiraram seus óculos e bonés e chegaram à pista para as últimas duas voltas. Extremamente concentrado, Baldini manteve o ritmo e conclui em 2:10:55, um split negativo (em relação à primeira metade) de quase 4 minutos! Meb Keflezighi chegou 56 segundos depois.
No entanto, ninguém mais se importava com isso. Pelo menos aqui no Brasil: todos estavam apreensivos se Vanderlei conseguiria a medalha. Ao entrar na pista e na segunda volta iniciar seu aviãozinho, com sorriso do tamanho de uma maratona, ele emocionava a maioria dos espectadores. Seus 2:12:11 eram o triunfo sobre a desesperança e contra o horror. Bronze ou ouro era o que menos importava.

A REPERCUSSÃO. Enquanto isso, Ricardo D'Ângelo, ao ver a icônica cena, fez seu papel enquanto treinador: ligou para o COB e exigiu que a prova fosse anulada. Ele estava defendendo seu atleta. Obviamente que tal possibilidade não seria deferida pelo COI: seria necessário fazer outra prova que não durariam dez segundos, mas duas horas, e, dado o tempo de recuperação dos atletas, estaria no limite da bizarrice.
Talvez essa ideia perdesse para outra lançada pelo COB e dada como "excelente" e "salomônica" pela imprensa brasileira: entregar a medalha de ouro a Baldini e Vanderlei, algo que seria uma covardia com Meb, que não teve influência no incidente e que ultrapassou o brasileiro faltando ainda 3 km para o final. Sim, tirando a imprensa grega e italiana, por motivos óbvios, todos estavam chocados com que houvera. Os principais jornais do mundo falavam em "vergonha", "covardia", "injustiça" e outros termos para o que houve com Vanderlei; todavia, eles tinham noção de que, infelizmente nada podia ser feito.
Então o COI teve, essa sim, a decisão mais "salomônica" possível: Vanderlei Cordeiro de Lima, enquanto concluinte daquela maratona, receberia sua medalha de bronze. Mas pelo seu esforço, determinação e carisma ao chegar, mostrando o real espírito olímpico durante a disputa dos Jogos iria receber a medalha Pierre de Coubertin, um título que só foi dado a seis atletas e que foi anunciado na hora da cerimônia no Estádio Olímpico de Atenas, sob efusivos aplausos. A medalha foi entregue em dezembro do mesmo ano, e dada pelo "anjo" de Vanderlei, o grego Polyvios Kossivas.
Só que mais que o ouro ou bronze ou uma medalha rara, foram as imagens vistas, o espírito olímpico, a coragem de fazer a sua própria prova, e completar, apesar de tudo e de todos, que fizeram o Brasil esquecer por alguns dias do fracasso que foi o atletismo, do quadro de medalha pífio para um país de nossa envergadura ou mesmo daquela linda e emocionante vitória do Brasil sobre a Itália no vôlei pela manhã.
A Maratona de Atenas tornou-se um símbolo para Vanderlei, que, 12 anos depois é ainda lembrado com carinho pela população. O que ele conquistou foi maior que qualquer medalha de ouro.

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