Sem categoria admin 24 de maio de 2016 (0) (114)

A vida vale mais do que a vaidade

Há alguns anos era comum ouvir corredores falar que tinham feito tantas maratonas com pequeno intervalo entre elas. Por outro lado, muitos treinadores insistiam em teses como "não se podia correr mais de duas provas de 42 km por ano, sendo necessário um longo descanso, pois, as lesões apareceriam se não fosse assim" etc.
Então, para testar essas duas correntes, resolvi fazer duas maratonas em dois domingos seguintes (Paris e Londres); a primeira de verdade (em menos de 3h30) e a segunda numa boa (em torno de 4 horas) e foi não só absolutamente fácil, como na volta já estava correndo normalmente. Hoje são poucos os treinadores que insistem na tese de no máximo duas maratonas por ano, ainda mais que agora a maioria dos corredores não participa tão competitivamente e, portanto, não sai tão quebrados após os 42 km. Mas, por isso mesmo, para os atletas de elite continua sendo uma "verdade" não entrar em mais de duas maratonas por ano.
Aí passei também a ouvir gente falando da Comrades, a ultramaratona na África do Sul de 89 ou 87 km, que era prova para super-homem, ou mulher-maravilha e uma prova disso é que poucos brasileiros a tinham feito e completado no tempo limite de 11 horas (há alguns anos é de 12 horas). Ao ler sobre a prova, vi que milhares a terminavam e naturalmente concluí que ela não poderia ser algo tão difícil assim.
Para não haver dúvidas, resolvi fazer a Comrades, para comemorar meus 60 anos, e não tive muita dificuldade para fechá-la em 10h50 e repeti-la no ano seguinte, desta vez em 10h12. Foram 5 meses de treinos, com quilometragem alta e progressiva, que chegou a totalizar em torno de 150 km semanais no último mês de treinamento, ou quase 4 maratonas por semana!
Depois dessas corridas e dos textos que fiz sobre a ultra sul-africana, meio que desmitificando o evento como coisa para heróis, quase uma centena de brasileiros tem lá estado a cada ano, a absoluta maioria conseguindo completar no limite das 12 horas, com exceção das raríssimas vezes em que a temperatura não favorece.

"A MAIS DIFÍCIL DO MUNDO". Em todos estes anos, também li vários relatos sobre participações em corridas da categoria "a mais difícil do mundo" (são inúmeras as que gostam de usar esta expressão), geralmente de alto custo de inscrição e em que normalmente mais se anda do que se corre, devido ao piso, à topografia, ao muito frio ou muito calor.
Postam-se e divulgam-se inúmeros depoimentos, sempre acompanhados de belíssimas fotos, o que, em termos jornalísticos, é um grande apelo. O enfoque não costuma valorizar a performance, mas as dificuldades enfrentadas e superadas, o quase heroísmo de conseguir ter finalizado, de ser o primeiro brasileiro a estar lá.
Aliás, lembro de que quando terminei a Comrades me senti um "super-homem", sensação que se reforçou durante por vários anos, quando tinha que explicar a leitores, em entregas de kit, como tinha me tornado um comradeiro, quais eram os segredos etc, ao que eu dizia (e alguns não compreendiam) que não tinha sido nada demais, que apenas tinha tido foco, treinado, alimentação normal, descanso e por aí vai.

CARAS E SEM ESTRUTURA. Então começaram a surgir notícias sobre provas em desertos ou locais inóspitos, sempre associadas aos desafios para poucos, o que em parte é verdade, porque os custos para quem vai são altíssimos, com excelente rentabilidade para os organizadores, que oferecem muito pouco, para que os eventos fiquem ainda mais difíceis (e lucrativos).
Também publicamos alguns relatos sobre essas ultracaminhadas, que parece um nome mais apropriado, na medida em que geralmente mais se anda, se escala e se despenca, do que se corre. Muitas existem por aqui no Brasil e especialmente na Argentina, sempre com grande apelo turístico, em que os participantes têm que ser autossuficientes (menor custo à organização…), assumir o risco por acidentes ou mesmo morte (o suporte costuma ser mínimo no percurso), tudo isso com taxas de inscrição que não correspondem ao que se disponibiliza.
Mas, enfim, ninguém é obrigado a entrar em tais corridas de montanha; vai quem quer, quem acha que vale a pena (pelo visual, pela sensação de superação, para conhecer novos lugares etc). A preparação mesmo pode ficar em segundo plano, porque a meta é apenas completar, no tempo que for necessário, como se constata no resultado obtido pela absoluta maioria.
Como exemplo dessa situação, fui convidado a conhecer a Patagonia Run em San Martin de los Andes, na Argentina, e optei por fazer a prova de 21 km (tem também de 10, 42, 53, 80 e 100 km), distância que costumo cobrir em 2 horas. Em função do percurso em grande parte por trilhas e com muito sobe e desce, fechei em 3h30, mesmo porque devo ter corrido menos de 10 km; no restante caminhei. Aliás, pouco antes da largada ouvi duas brasileiras conversando, em que uma perguntava se a outra tinha treinado, e como resposta esta falou: "Não treinei nada, vou sair caminhando numa boa, tirando fotos e assim chegar". Na véspera já me surpreendera com outra inscrita nos 100 km e que nunca tinha corrido uma maratona!

NO DESERTO. Decidi escrever este texto motivado por dois fatos. Em novembro recebi o relato de um corredor paulistano sobre sua participação em uma ultra de 250 km (em 5 dias) no Deserto do Atacama, no Chile. O texto era semelhante a outros que já publicamos, ou seja, o desafio da longa distância, o sofrimento e a sensação de quase heroísmo por ter completado, acompanhado de boas fotos.
Por falta de espaço deixei para publicar apenas em janeiro, mas novamente não consegui, ficando então "na gaveta", com outras matérias. Na verdade, achei que a publicação poderia envolver dois "problemas":
1 – Valorizar esse evento como algo sobre humano, para poucos abnegados (e com dinheiro…), quase atletas olímpicos, quando na verdade não são, apenas que enfrentam muito sofrimento e, dessa forma, precisam ter capacidade para suportar condições adversas por longos períodos.
2 – Estimular outras pessoas a aderir às provas do gênero "a mais difícil do mundo", para se testar, se superar, se sentir acima dos "normais", ou seja lá qual for a motivação, que é um pouco diferente do prazer que se tem ao encarar uma maratona ou uma ultra, correndo de verdade.
Então, nos dias de ócio da passagem do ano, coincidentemente vi na TV um documentário exatamente sobre esse evento em 2010, compreendendo as 4 etapas, todas em deserto. Um programa de 2 horas pegando alguns personagens, que relatavam as razões para terem se inscrito, desde questões trágicas como esquecer a morte da mulher, ou até superar a sensação de se sentir um atleta frustrado, se tornar a primeira mulher sub tantos anos a completar os 4 desertos, subir ao pódio, entre outras "justificativas".
Chamou a atenção o depoimento de um participante que nunca tinha corrido mais que 10 km (!) e que mesmo assim se inscreveu para os 250 km em 5 dias, confirmando minha suposição sobre as ultracaminhadas.
O documentário usa e abusa de imagens sobre o sofrimento dos 150 inscritos, notadamente as bolhas nos pés, sobre o fato de terem direito a receber apenas água a cada 10 ou mais quilômetros, tendo que levar os mantimentos para todos os dias na mochila, sobre as adversidades de percurso e clima. A organização oferecia quase nada de suporte médico ou logístico, com inscrição na casa dos 4 mil dólares! Lucro certo!!!
Na tal filmagem fica-se sabendo da morte de um participante (sozinho no deserto), de uma corredora estuprada durante o percurso à noite (sozinha no deserto), enfim uma prova "emocionante"…
Também por várias vezes alguns participantes comentam ter optado pelo desafio porque correr maratonas já não lhes garante emoção ou talvez fosse melhor dizer não os valoriza. Isto é, você comentar que fez esta ou aquela maratona em determinado tempo, junto com milhares de outros corredores, não vai atrair grande atenção em uma roda de bate-papo, mas se relatar que esteve não numa provinha de 42 km e sim de muitos mais quilômetros, em que a temperatura era demais, o percurso dificílimo e poucos completaram (e poucos largaram…) aí você vai ser olhado quase como um super-homem ou mulher-maravilha.
Voltando ao começo deste texto, assim como pouca importância tem quantas maratonas uma pessoa já fez, o mesmo vale para a participação nesta ou naquela ultra "mais difícil do mundo".

Mais segurança nas ruas
As provas "de montanha" ou semelhantes, em que se fica por conta própria e risco, em nada se parecem com as corridas de rua bem organizadas e que são atualmente maioria. As primeiras têm por característica básica a autossuficiência de abastecimento, e em caso de algum acidente ou mal-estar precisa se torcer para contar com a ajuda de outros participantes.
Enquanto nas corridas de rua sempre há algum atendimento de emergência, nas por trilhas fica difícil essa disponibilidade, e por vezes não há até mesmo na área de concentração. Não custa lembrar que tal serviço tem custo expressivo para o organizador.
O apelo costuma ser que são provas "de tirar o fôlego". Bem… se faltar durante o percurso, é bom rezar para que a organização pelo menos o venha buscar depois de algumas horas e lhe garanta um enterro digno.
Aliás, a revista levanta a questão da responsabilidade sobre a vida dos participantes em provas de montanha. É fácil exigir que a pessoa assine um papel eximindo a organização de qualquer culpa, mas será isso coação ou honestidade legal? Como as provas não pagam taxas nem impostos, enfim não existem oficialmente, como podem ser processadas?

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