Sem categoria admin 29 de fevereiro de 2016 (0) (114)

A volta por cima, após grave acidente

A manhã de 16 de agosto de 2014 ficou marcada no mundo das corridas. Por volta das nove horas daquele sábado, um carro descontrolado, pilotado por um motorista embriagado, atropelou quatro pessoas que se exercitavam nas ruas da Cidade Universitária de São Paulo, a USP, reduto dos corredores. O acidente vitimou o veterano Álvaro Teno e feriu gravemente os outros três. Entre eles estava Anelive Costacurta Torres, então com 35 anos, mãe de dois filhos, que se preparava para sua primeira maratona. Um ano após o fatídico acontecimento, a biomédica está de volta ao esporte, recuperada e feliz. A seguir, ela fala como tudo aconteceu, de seu processo de reabilitação e de seus planos.

O INÍCIO DE TUDO. A corrida entrou na vida de Anelive em 2006, durante uma viagem de estudos para Washington, nos EUA. "Via os americanos correndo pelas ruas da cidade e achava lindo. Um belo dia comprei um par de tênis e comecei a dar meus trotinhos de tartaruga. Voltei ao Brasil e dei continuidade à atividade. Minha primeira corrida foi a Nike 10K na USP, que completei em 1h04", conta.
Ela pegou gosto pelo esporte e começou a participar de outras provas, sempre melhorando os tempos. "Treinava sozinha, correndo pela Avenida Sumaré." Em 2008, no entanto, ao engravidar, teve de dar um tempo. "Depois que meu filho nasceu, fiquei praticamente um ano parada. E quando estava voltando, bem no início mesmo, engravidei novamente."
Em julho de 2013, com a vida já mais em ordem, Ane voltou pra valer às corridas. "Corria sozinha todos os dias, de cinco a oito quilômetros, na esteira do prédio. E fui melhorando muito meus tempos. Até que resolvi tentar uma meia maratona. A mais próxima era a Meia Internacional de São Paulo, em fevereiro de 2014." Na época, a biomédica morava no mesmo condomínio de uma amiga também corredora. "Conversando com ela, decidi buscar uma planilha de corrida com seu treinador, o André Lyra."

CORRER UMA MARATONA. O treinamento resultou em bom resultado: a primeira meia foi feita em duas horas cravadas! "Peguei gosto, me inscrevi para outra e continuei com o André, que já me dava aulas de musculação. E então bateu a vontade de correr uma maratona." O treinador achou precoce fazer os 42 km naquele mesmo ano. "Mas depois de muito procurar, vi que a de Buenos Aires poderia ser uma boa – era plana, perfeita para uma estreia, e aconteceria no segundo semestre, dando tempo para me preparar direitinho."
Sem falar com seu preparador, Ane fez a inscrição para a prova na capital argentina. "Claro que teve resistência por parte dele, que continuava achando cedo. Mas em abril de 2014 eu já estava inscrita para ela, que aconteceria em outubro."
Com muito foco, aulas de fortalecimento pesado e algumas provas usadas como treinos, Ane ia se preparando para realizar seu grande sonho. "Todos os sábados eu ia para a USP, ao lado da minha grande amiga Eloisa Pires – que foi quem me indicou o André. Adorava esses momentos."

A FATÍDICA MANHÃ. "Naquele sábado, 16 de agosto, como de costume, eu e a Elô saímos de casa em direção à USP. Minha planilha indicava 28 km. Para revezar o apoio no meu treino, o Andre Lyra, que nunca foi na USP correr conosco, decidiu ir junto. Nunca parei para ir ao banheiro e naquele dia senti uma vontade insuportável… Demos a primeira volta de seis quilômetros e a Elô quis parar para tomar um isotônico. Aproveitei para ir ao banheiro e disse que os esperaria, para continuar. E foi assim; corremos mais um pouco, eu estava na esquerda, a Elô no meio e o André na direita. Estávamos correndo na rua, perto da guia, como todos fazem, conversando, rindo… Até que vejo, por frações de segundos, um carro prata vindo desgovernado em nossa direção. Nesse momento não dá tempo de pensar em nada. É tudo muito rápido e você só tem uma certeza – a de que já era! Então, tudo apagou…"
Quando abriu os olhos, Ane teve a sensação de sonho. "No mesmo segundo, uma corredora chegou ao meu lado e falou para ter calma que havia acontecido um acidente. Perguntei pela Elô e pelo André e disseram que estavam bem. Aos poucos, consegui mover a cabeça para o lado direito e vi minha amiga com o rosto encoberto de sangue e fiquei assustada. Nesse momento não sentia nada, nenhuma dor, nem frio, nem calor. Sentia uma tranquilidade apenas, apesar do clima tenso. Vi o Corpo de Bombeiro chegando e percebi que o negócio era sério. Logo depois escutei a voz da Elô baixinho, dizendo que não estava sentindo sua perna. Gelei – sei bem o que isso significa. Fechei os olhos e só pensava nos meus filhos e no filho da Elô. Pedia muito a Deus para nos ajudar naquele momento. Não via o André, mas falavam que ele estava bem. Lembro também que um corredor pegou no meu pulso o meu Road Id – a pulseira de identificação com todas as minhas informações para uma emergência. Escutei alguém conversando com meu marido e deram o celular para falar com ele. Minha voz quase não saía. Não conseguia falar muito, era como se o corpo quisesse economizar energia. Começaram os atendimentos ali mesmo e passei a sentir uma dor insuportável na cintura. Um dos bombeiros disse para não me mover. Mas quando ele se virou para pegar algo, levantei uma perna por vez para testar como estavam os movimentos. Consegui levantar as duas. Uma sensação de alívio tomou conta de mim – minhas perninhas estavam boas. Sabia que estava toda machucada, mas minhas pernas estavam boas para voltar a treinar em alguns dias. Tinha essa certeza. Naquele momento, só pensava nisso. Já na ambulância, por várias vezes levantei as duas pernas só para ter certeza que estavam bem. Era uma sensação de alívio: ia continuar a correr em breve."
No hospital, os médicos fizeram infinitos exames. "Pedi a uma enfermeira um espelho. Quando me vi, assustei. Não era eu. O rosto estava muito roxo, inchado, o lado direito inteiro esfolado e com um corte grande no supercílio. Ainda assim agradeci porque, mesmo com o rosto ralado, imaginava que poderia voltar a correr em breve. Pensava o tempo todo na maratona que estava se aproximando e a certeza de que estaria nela a qualquer custo."
Finalmente o ortopedista chegou com o laudo: Ane havia rompido três ligamentos do joelho esquerdo e dois do direito, além de apresentar fraturas na fíbula nas duas pernas e no joelho direito. "Meu mundo desabou. Chorei como uma criança que perde o brinquedo que mais gosta: a corrida e o meu sonho de fazer minha primeira maratona. Não consigo descrever em palavras o sentimento que tive naquele momento, foi uma sensação de fim de linha." Ela deixou o hospital no início da noite em uma cadeira de rodas, pois não podia e nem conseguia mais parar em pé.
"Quando cheguei em casa e vi meus dois filhos, acordei para vida e pensei: ‘que maratona, que nada, eu estou viva, olhando para meus filhos'. Mas foi uma mistura de sentimentos: estava feliz por estar ali com minha família e triste por achar que não poderia mais correr."

A REABILITAÇÃO. Dias depois, Ane passou por uma consulta com o ortopedista Joaquim Grava e sua primeira pergunta foi: "Vou poder voltar a correr?" Ele respondeu "sim", mas o processo de reabilitação não seria fácil – ia depender muito da paciente. "Quando ouvi isso, veio uma força enorme dentro de mim… E decidi ir à luta. Prometi fazer o que pudesse e tivesse forças para esse dia chegar novamente."
A cadeira de rodas fez parte de sua rotina por mais de um mês. "Encarei tudo com muita resiliência. O que me deu forças foi a paixão pela corrida e meu sonho de ser maratonista. Só pensava em me fortalecer para voltar a correr." Otimista, nesse período ela até fez inscrição para a Meia Maratona do Rio do ano seguinte.
O tratamento de fisioterapia durou um ano. Nos primeiros cinco meses, as sessões aconteciam de segunda a sexta, com duração de três horas cada. Depois, passaram para três vezes por semana e nos últimos três meses foram reduzidas para duas vezes. "Cheguei em cadeira de rodas, passei por andador e muletas. Perdi em duas semanas toda musculatura que ganhei em meses de musculação. Não tinha forças nas pernas para subir um degrau de escada. Por esse motivo, tive de reprender a andar."

A VOLTA AOS TREINOS. O primeiro trote de Ane na esteira foi pura emoção. "Foi lindo, chorei de felicidade." E seus treinos passaram a ser os trotes exclusivamente na fisioterapia, sob supervisão de um profissional. No final de maio, foi liberada para fazer sua primeira corrida de rua de 5 km – que completou em 32 minutos. "Em junho voltei a treinar na rua, mas não podia passar de 7 km. No mês seguinte, em uma viagem que fiz a Fortaleza, estiquei para 10 km e me senti bem, sem dores."
O processo de reabilitação seguia dentro do planejado, porém, devido a dores que apareceram, os fisioterapeutas não liberaram Ane para participar da Meia do Rio, em julho. "Mas pude correr os 10 km finais com uma amiga que fazia a prova."
Em agosto, um ano após o acidente, já com a alta da fisioterapia programada, ela deu início aos treinos de corrida com a Race Consultoria Esportiva. "Tracei minhas metas com o Ricardo Arap. A primeira era correr a W21K e a segunda é minha tão sonhada maratona – já estou inscrita para Paris, em 3 de abril de 2016."
Ane seguiu à risca a planilha, com treinos de corrida (três vezes por semana), musculação (duas vezes) e uma de sessão de fisioterapia. "Tive praticamente dois meses de treino. Mas minha evolução foi muita rápida e boa, me sentia mais forte a cada dia."

O EMOCIONANTE RETORNO. A W21K foi a quinta meia maratona de Anelive. "Não fui tão nervosa como na estreia, mas estava muito ansiosa. Larguei forte e fechei o primeiro quilômetro abaixo de cinco minutos. Estava bem, mas segurei porque sabia que tinha muito chão pela frente. Minha meta era finalizar os 21 km inteira, sem dor. Pela média dos meus treinos sabia que seria possível fazer sub 2 horas – e no fundo queria muito isso. Meu melhor tempo em uma meia tinha sido 1h55 no ano passado, já treinando forte para Buenos Aires. Não queria me colocar pressão, mas acreditava que poderia, com muito esforço, chegar com 1h57. Tive apoio de muitos amigos no período de preparação. E na noite anterior à prova, recebi uma mensagem de uma pessoa muito querida que dizia: ‘Quero que você se recorde de toda sua trajetória para chegar até aqui'. Isso ficou na minha cabeça. Corria cada quilômetro e lembrava de tudo, tudo mesmo, do dia do acidente, das noites que não dormia de tanta dor, das vezes que chorei de vontade de ir correr, das sessões de fisioterapia quando eu berrava de dor para dobrar minha perna, dos meus filhos, do meu sonho em fazer os 42 km… Foi tudo isso que me fez chegar naquela linha com toda vontade do mundo de vencer. Quando me aproximei do pórtico de chegada e vi que estava com 1h53 não acreditei! Dei um pulo de tão feliz que fiquei em voltar aos 21 km e ainda fazer meu melhor tempo."

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