Quando Júlio César, o sagaz e temido imperador romano, finalmente venceu numa longa batalha (58 a.C-52 a.C) o gaulês Vercingetórix, selando assim o domínio do império romano sobre a Gália, imediatamente ordenou a criação de uma capital para unificar e pacificar as várias regiões e tribos que lutavam entre si interminavelmente, há séculos. Foi assim que se fundou Lugdunum, a atual Lyon, bela cidade situada na confluência dos rios Rhône e Saône.
Vindo de Salvador com uma escala longa (seis horas) em Lisboa – resolvi deixar o aeroporto e, de metrô, ir ao Chiado, bairro central da capital portuguesa, para uma breve visita. Cheguei lá após poucos minutos de viagem, ainda com os primeiros raios de sol e o brilho do orvalho da noite sobre o calçamento das ruas; circulei pelo bairro à espera da abertura da Livraria Bertrand – à qual sempre retorno nas minhas passagens pela cidade -, e especialmente do café A Brazileira, o famoso estabelecimento preferido pelo poeta Fernando Pessoa, onde em frente jaz a sua estátua eternamente fotografada pelos turistas e admiradores. Ali no café ordeno o pequeno-almoço (café da manhã), primeira refeição do dia, antes de regressar ao aeroporto sereno e restaurado, num metrô igualmente tranquilo e eficiente.
Chego a Lyon repleto de grandes expectativas. Afinal, todos os comentários e relatos na internet tecem elogios grandiosos à maratona (www.runinlyon.com/us/) como sendo extraordinariamente bem-organizada, de um percurso plano e de extrema beleza. Soma-se a chegada e largada na praça principal da cidade – a Place Bellecour -, enorme com estação do metrô, várias linhas de ônibus ao redor, o tram (bonde) etc, além de inúmeros hotéis situados na redondeza. E, muito confortável aos participantes, a retirada do kit é realizada na própria praça em modernas barracas.
No entanto, para quem deseja comprar, consumir com voracidade, a feira é fraca. Talvez seja uma confirmação do minimalismo francês, em contraponto às grandes feiras americanas. É claro que há a da maratona de Paris, mas é uma exceção. Em Lyon, mesmo com a feira pequena, tímida, 28 mil se inscreveram para as três modalidades: 10, 21 e 42 km; número expressivo, ao considerar-se um evento de magnitude relativamente mediana, assim como pouco expressivo em termos de mídia.
LARGADA TRANQUILA. O domingo 4 de outubro amanhece frio, com uma temperatura em torno de oito graus nos primeiros momentos da manhã. Mas a temperatura aumenta um pouco no exato momento da largada – 8h30 – atingindo onze graus: ideal para quem por ventura deseja correr veloz neste percurso plano e sem vento algum.
E com o providencial auxílio da largada em ondas, eliminando os prováveis incidentes em virtude das ruas estreitas nos primeiros momentos, sem engarrafamentos, com vários marcadores de ritmo ao bel prazer do corredor, é assim então que poucos minutos depois do locutor fazer a contagem regressiva, já chego à Antiga Lyon, beirando o rio Saône.
Neste bairro medieval vejo encravada sobre um monte altíssimo a Basílica de Notre Damme de la Fourvière, à qual tive acesso, na véspera, através do funiculaire (bondinho). Lá de cima, uma visão magnífica em 360 graus sobre toda Lyon. Um programa imperdível! Também a própria Antiga Lyon merece uma visita, principalmente à noite com seus cafés, restaurantes e lojinhas de lembranças.
Corro desta maneira pelo cais do rio Saône, espaçoso, confortável até alcançar a ponte Paul Bocuse, para então retornar pela margem esquerda do mesmo rio. Volto ao centro passando pelo túnel Croix-Rousse de 1,5 km, onde a meia maratona se separa. Dentro, além de uma mureta de separação de pedestres e carros, há um interessante jogo de luzes, representando sucessivamente o espaço, Lyon, o mar, um grupo de dança. Belíssimo!
DENTRO DO PARQUE. E assim sigo em direção ao maior e mais belo parque da cidade: o Parc de la Tête d`Or, com o seu Museu de Arte Moderna ao centro. Muitos quilômetros são corridos ali dentro, sem ser monótono. Com a temperatura estabilizada, extasiado de tanta beleza, continuo em direção agora ao cais do rio Rhône e observo uma sequência interminável de pontos turísticos, antigos e modernos, tendo como destaques o moderníssimo Museu da Confluência – um edifício em prata que se destaca a quilômetros de distância – e o Espace Verney-Carron em verde e cinza de uma beleza estonteante. Outra área verde ainda se descortina, logo após adentrar e sair do Estádio Gerland, o Parque Gerland, também muito apreciável.
Enfim, aproximo-me ao final e de volta à Place Bellecour. Considerando que cheguei com boas expectativas, penso que elas foram correspondidas. Recebo a medalha e a camisa de "finisher" recompensado e contente. O sol brilha, a temperatura chegou aos confortáveis quinze graus e fico definitivamente iluminado nesta terra dos irmãos Lumière. Uma maratona de cinema.
Penso que existem maratonas que devem ser repetidas. Esta é uma delas. No meio da Bellecour, tendo como proteção a imensa estátua de Luís 14, o rei Sol, empoleirado sobre seu cavalo, penso ainda na tranquilidade e beleza desta cidade. Goethe dizia que a beleza ideal está na simplicidade calma e serena. E aqui reside a tradução perfeita desse pensamento.
No dia seguinte, sentado na estação Perrache, bem próxima do palco principal da maratona, à espera do trem para uma breve estada em Paris, anoto alguns detalhes, sem negligenciar a visita ao célebre mercado Paul Bocuse, certamente um local para não ser esquecido. Deve ser mesmo colocado na lista de prioridades.
Quando o trem parte de Lyon, numa jornada de duas horas até à cidade-luz, penso no ser maratonista, longevo, feliz, talvez competitivo consigo mesmo, ou nem mesmo isso, imbuído apenas do prazer de deslizar pelas ruas das cidades, pisar os tapetes eletrônicos possíveis, receber a medalha, o aplauso do púbico – o maior mimo de todos – e assim se emocionar, mesmo após já ter atravessado quase uma centena de vezes o pórtico de chegada.
Penso, finalmente, no maratonista que sofre, que se envolve no embate cotidiano com os treinos, que chega ao final bem ou mal, e para muitos inalcançáveis, porém embevecido de orgulho e contentamento.
Ney Cayres, assinante de Salvador, é dentista e autor do livro de memórias "Maratonas, um olhar cultural sobre as cidades".