FISIOLOGIA – Fernando Beltrami – Outubro 2011
É propalado que correr em baixa intensidade usa mais gordura do que carboidrato, mas na prática não é bem assim. Os magrinhos corredores competitivos que o digam.
Em se tratando de perda de gordura, o exercício físico é possivelmente a alternativa com o melhor custo x benefício quando comparado a suplementos, dietas ou até mesmo cirurgia. No entanto, receitas milagrosas para acelerar a queima de gordura é o que não falta no mercado. São receitas caseiras, suplementos nutricionais, e os aparelhos de ginástica mais improváveis que se poderia pensar, todos com um único objetivo: aumentar a queima de gordura. O cliente, ou corredor, tentando potencializar ao máximo os resultados de seu treinamento, já não sabe em que acreditar: se no ídolo esportivo que aparece na TV, no programa de culinária ou no instrutor da academia. Potencializar a queima de gordura possui um apelo imenso entre esportistas de qualquer modalidade, e a corrida parece ser um alvo preferencial de informações erradas, talvez pelo fato de ser reconhecidamente uma atividade “aeróbica”, que queima muitas calorias.
Corredores focados no rendimento e performance estão razoavelmente imunes a este tipo preocupação, pois a alta carga de treino inibe o acúmulo de gordura automaticamente; porém os outros, que buscam na corrida um meio para manter ou recuperar a forma, são particularmente mais suscetíveis às novidades do mercado de suplementos e treinamento. Mas no meio deste mar de informação, o que será que realmente funciona?
Para se ter uma idéia de onde está o mercado hoje em dia, duas patentes registradas nos Estados Unidos (ambas em 2003) chamaram minha atenção enquanto escrevia este artigo: a primeira era sobre um dispositivo que mede o consumo de oxigênio e a produção de gás carbônico para a partir daí calcular a intensidade de exercício que oferece a maior taxa de queima de gorduras. O equipamento então mede a freqüência cardíaca correspondente a esta intensidade e oferece ao usuário uma zona “ótima” de treino que maximiza a queima de gorduras. Já o segundo equipamento vem descrito como “motivacional” e segue a mesma idéia de zona “ótima” de treino baseado na freqüência cardíaca. O aparelho controla o volume e o fornecimento de energia para um televisor ou equipamento de som. Assim, se o usuário sair da faixa alvo ele perde o volume ou o equipamento é desligado.
Saindo desta zona (com o perdão do trocadilho) de novidades do fitness, e entrando no que há de consistente sobre a queima de gordura durante o exercício, vamos ver um pouco sobre o funcionamento básico do metabolismo de lipídios no nosso organismo.
Três fontes de gordura
Nossos músculos podem queimar gorduras de três fontes: os triglicerídeos intra-musculares, que representam cerca de 10% do total de energia gasta; triglicerídeos circulantes de densidade muito baixa (muito pouco utilizados); e os ácidos graxos circulantes de cadeia longa, os mais utilizados. Estes entram nas células por processos de difusão facilitada e adentram as mitocôndrias (onde são “queimados”) sendo transportados pela carnitina (mais sobre ela abaixo).
O treinamento físico aumenta a capacidade dos diversos componentes deste processo, desde a mobilização de ácidos graxos dos depósitos viscerais e subcutâneos até as ações enzimáticas de queima de gordura que ocorrem dentro das mitocôndrias. Apesar desta melhora generalizada, ainda não está muito claro de quais das três fontes que mencionamos é que vem as maiores alterações. Para os pesquisadores desta área, o alvo é buscar a forma de exercício que maximize estas alterações e que promova a maior taxa de metabolismo de ácidos graxos.
Um estudo suíço de 2004 revelou que tanto e homens e mulheres treinados queimam mais gordura quando se exercitam a 75% de seu consumo máximo de oxigênio do que comparado a intensidades mais baixas, e os valores absolutos de queima de gordura são mais altos na corrida do que no ciclismo para ambos os sexos na mesma intensidade relativa. No entanto, esta comparação inter-modalidades pode ser um pouco injusta, pois é sabido que o consumo de oxigênio é mais baixo no ciclismo, então uma mesma intensidade relativa é uma menor intensidade absoluta.
Este tipo de achado é reforçado por estudos envolvendo treinamento: um trabalho francês de 2003 seguiu adolescentes obesos durante dois meses de treinamento e dieta, e encontrou que ao longo do tempo os participantes passaram a queimar mais gordura em cada intensidade de exercício e também passaram a ter sua taxa máxima de queima de gordura em intensidades mais altas. Explicando: durante o exercício nosso corpo pode “optar” entre queimar gorduras ou carboidratos, e normalmente as gorduras são queimadas em intensidades mais baixas, e conforme a atividade se intensifica o corpo passa a preferir os carboidratos. Com o treinamento, nossa capacidade de queima de gordura se intensifica, e passamos a metabolizar mais gorduras do que anteriormente numa mesma intensidade, mas também passamos a utilizar gorduras em intensidades que antes preferiam os carboidratos.
Participação dos carboidratos
Normalmente o “teto” para a queima de gorduras fica na região no limiar ventilatório (aquele momento em sentimos a respiração ficar mais pesada de repente), a partir de onde nosso corpo passa a queimar predominantemente carboidratos. Um dos mecanismos pelo qual isso ocorre é que o metabolismo de carboidratos tem início pela secreção de insulina (hormônio que favorece a saída do açúcar do sangue para as células musculares), que impede a mobilização de ácidos graxos. O consenso é que pessoas destreinadas apresentem seu pico de queima de gordura na faixa entre 55-65% do consumo máximo de oxigênio e pessoas treinadas num nível um pouco acima, entre 60-70% do seu máximo. Falando em termos de frequência cardíaca, uma variável mais prática para corredores em geral, é que esta zona se situa entre 60-80% da FC máxima.
É importante salientar que este tipo de adaptação ao treinamento independe do tipo de trabalho que está sendo feito, no sentido de que normalmente qualquer treino que traga melhoras cardiorrespiratórias irá apresentar este padrão de adaptação. Por exemplo, pesquisa de 2007 mostrou que um treinamento de quatro a seis tiros de apenas 30 segundos cada, feito três vezes por semana, gerou o mesmo grau de adaptações no metabolismo de lipídios (entre outras coisas) do que 50 minutos de atividade moderada realizados cinco vezes por semana, durante as mesmas seis semanas de treino!
Numa linha que está ganhando espaço dentro das ciências do esporte, pesquisadores descobriram que indivíduos treinando por duas horas sem tomar café da manhã queimaram mais triglicerídeos intramuscular (a gordura que fica dentro das células musculares) do que indivíduos que receberam café da manhã antes do treino. Além disso, e talvez mais importante, quando receberam uma dose de glicose após a sessão de treino os indivíduos que estavam em jejum tiveram sua resposta de insulina potencializada, o que hoje acredita-se que pode potencializar também as adaptações ao treinamento.
Estes efeitos do jejum sobre o metabolismo de lipídios parecem ocorrer após pelo menos cerca de 6h de jejum, e o consumo de carboidrato logo antes ou durante a atividade anula este efeito, pelo mesmo mecanismo de ação de insulina que já discutimos. No entanto, realizar longas sessões em jejum ainda é tema de debate, e é necessário discutir questões como o risco potencial de hipoglicemia (queda de nível de glicose no sangue) durante a atividade, antes que se recomende esta prática para corredores.
Carnitina não funciona
Diversos produtos comercializados hoje em dia prometem aumentar o transporte e metabolismo de ácidos graxos. Olhando a questão por esse lado, um estudo dinamarquês de 2005 testou os efeitos do uso de hormônio do crescimento sobre a mobilização e utilização de gorduras, como combustível durante o exercício. A pesquisa mostrou foi que a dose de horrmônio aumentou significativamente a quantidade de glicerol (um tipo de gordura) no sangue, mas isso não teve qualquer efeito sobre a taxa em que a gordura era utilizada pelos músculos. Ou seja, mesmo que alguns produtos sejam efetivos em mobilizar as gorduras de nossos depósitos, isso não significa que elas serão utilizadas por alguém, e podem simplesmente retornar para o local de onde vieram após o passeio. Outro exemplo disso é a carnitina, também conhecida como L-carnitina, molécula que tem um papel central no transporte de gordura do citoplasma para dentro da mitocôndria. Sendo crucial para o metabolismo de ácidos graxos, a carnitina se tornou o alvo da indústria de suplementos. A verdade é que a suplementação de carnitina não possui qualquer efeito sobre o metabolismo de lipídios. Simples assim.
Dentro do que pode eftivamente funcionar, a cafeínea em doses legais (cafeína em altas doses é doping, não se esqueça), contribui positivamente para o exercício, e um de seus mecanismo de ação é a mobilização de ácidos graxos, diminuição do uso de carboidratos e conseqüente preservação do glicogênio intramuscular, uma das variáveis associadas com a performance em exercícios de resistência.
Independente da intensidade da atividade física, o exercício parece ser incapaz de aumentar o grau de utilização de ácidos graxos nas 24h após sua realização. O fato tem levado pesquisadores a imaginar se este é um fato real ou simpels falta de sensibilidade da tecnologia atual em detectar pequenas mudanças no metabolismo. Qualquer que seja a explicação do fenômeno, o fato é que mesmo que o exercício, pelo menos em si, aumente a utlização de lipídios, para que ocorra uma perda real de massa gorda é necessário que o balanço energético do indivíduo seja negativo, ou seja, que o total de calorias gastas seja maior que o de calorias ingeridas. Se não for assim, nosso corpo irá simplesmente repor o que perdeu.
A influente revista Time publicou, em maio de 2009, um artigo um tanto quanto sensacionalista entitulado “Porque o exercício não lhe fará mais magro”. A matéria na verdade mascarou de novidade algo que já é sabido há muito tempo: exercício dá fome. Ou seja, ao mesmo tempo em que se queimam mais calorias, nós também consumimos mais ao longo do dia. Otimizar a queima de gordura através do treinamento só terá qualquer efeito sobre nosso corpo se o que for conquistado com exercício não for compensado com um banquete em comemoração.