Releitura Redação 25 de janeiro de 2021 (0) (793)

Corridas de antigamente não deixam saudades

História – Fernanda Paradizo – Outubro 2009

Não é novidade para ninguém o quanto a corrida de rua evoluiu no Brasil. A prática da modalidade vem atingindo números cada vez maiores. As provas espalhadas pelo país cresceram não só em quantidade, mas também em número de participantes. Os organizadores de eventos também aumentaram e acabaram virando especialistas no negócio. Mas, se antigamente problemas como falta de água no percurso, desrespeito ao horário de largada, circuito não aferido e aberto ao trânsito, sinalização inadequada, chegada desorganizada eram críticos, hoje em dia já são quesitos básicos à maioria dos eventos, sem os quais não se pode nem imaginar que ainda possam existir corridas que sejam realizadas sem respeitá-los. Mas, para chegar a esse nível de organização que encontramos hoje, muita coisa errada e até cômica aconteceu, principalmente nas décadas de 80 e 90, quando a corrida de rua ainda dava os primeiros passos no Brasil.

O publicitário paulista Paulo Cizicov, de 45 anos, corre desde 1981 e sempre participou de corridas pelo Brasil afora. Ele acompanhou muito bem todo esse crescimento ao longo dos anos e viveu situações até engraçadas pela falta de preparo dos organizadores que se dispunham a realizar esses eventos na época.

Competindo em Santo André, região do ABC de São Paulo, o atleta viveu uma situação inusitada, quando o batedor dos líderes resolveu andar muito mais rápido com sua moto do que os corredores, deixando o 1º colocado para trás, sem saber qual o caminho deveria tomar e criando uma situação cômica e ao mesmo tempo inusitada. “Por volta do km 8, o líder parou porque não sabia para onde ir. Eu vinha na 8ª posição e também parei, assim como os demais, até o 17º corredor. Não apareceu mais ninguém e ficamos parados sem saber para onde ir, até que um dos corredores viu de longe uma queima de fogos e imaginou que era a chegada da corrida. Fomos em direção aos fogos e vimos que ali realmente era a chegada”, lembra Paulo. “Depois de muita confusão, o organizador ainda queria que fizéssemos uma nova corrida em volta do quarteirão para decidir quem era o ganhador. Não concordamos.” A conclusão de toda essa bagunça foi que o 18º colocado, que deu sorte no meio do percurso por ter sido avisado para onde ia o circuito, por alguém da organização que passava ali naquele momento, foi declarado o campeão.

Provas raras
Se hoje os corredores têm um calendário recheado de eventos e podem escolher à vontade qual corrida querem participar, os de antigamente não tinham muita opção para competir e muitas vezes tinham que viajar para conseguir colocar seu treinamento à prova. “No começo, as corridas eram bem raras, mas depois de um tempo conseguíamos pelo menos uma por mês. As inscrições, na maioria das vezes, eram feitas no dia do evento”, explica Paulo. As informações sobre as competições chegavam até os corredores mais pelo boca a boca e às vezes por alguns informativos de corrida, como o “Correndo Atrás” e o “A Pé Mesmo”, e mais tarde pela primeira revista de corrida do país, a “Viva!”, na década de 80.

Outra coisa que chamava atenção na época eram os números de peito, que eram feitos de papel ou pano e muitas vezes pintados com pincel atômico. “Em dias de chuva ou de muito vento, soltavam da camiseta e por várias vezes tive que voltar correndo atrás para recuperá-lo. Também perdi várias camisetas manchadas com a tinta.” Paulo lembra também que a maioria dos corredores que participava de provas na época pertencia a uma faixa etária entre os 25 e 35 anos e eram bem competitivos, diferenciando-se muito do perfil dos corredores que hoje encontramos, muitos dos quais correndo mais pela festa ou simplesmente pelo prazer de fazer uma atividade esportiva.

Quem também vivenciou bastante esse início da corrida de rua no Brasil foi o professor de Educação Física Adalberto Ramalho, de 48 anos, que vive em São José dos Campos, SP. Adalberto começou a correr em 1987 e lembra que as corridas normalmente eram organizadas pelas prefeituras e quase não existiam patrocinadores. “As provas eram realizadas em ruas e até mesmo em estradas secundárias sem muito trânsito. Quanto às marcações, só sabíamos onde começava e onde terminava a prova, ficando muitas dúvidas quanto à distância. O público era muito pequeno e se resumia a parentes que acompanhavam a prova muitas vezes de carro”, conta Adalberto. “As pessoas olhavam curiosas as corridas e não sabiam o que estava acontecendo. Quando viam as pessoas correndo, era comum piadas tipo ‘pega ladrão’.”

O professor de Educação Física Mario Puga, do Rio de Janeiro, de 58 anos, observa que algumas competições eram realizadas em percurso fechado, outras em meia pista e outras em circuitos totalmente abertos. “Lembro-me de uma prova em Jacarepaguá que corríamos entre carros e ônibus”, comenta Mario, que corre desde 1980 e lembra que havia marcações a cada quilômetro, mas nem sempre eram exatas. Os postos de hidratação eram de 5 em 5 km e nas de 8 km, distância bem comum na época, os corredores tinham água apenas uma vez. Os banheiros químicos também eram coisa rara nas provas.

Medalha só aos primeiros

Se hoje uma das glórias máximas do corredor é cruzar a linha de chegada para receber uma medalha que coroe seu êxito ao final da prova, os corredores de antigamente tinham que se esforçar muito para conseguir tal feito, uma vez que as mesmas eram destinadas somente aos 50 ou 100 primeiros colocados ou vencedores da categoria, quando existia essa premiação.

As classificações também eram feitas de forma bem manual. À medida que os corredores cruzavam a linha de chegada, eram retirados seus números e espetados em algum local em ordem de chegada para que posteriormente pudessem ser apurados os resultados. Em provas com premiação das categorias, havia uma etiqueta lateral no número, que era destacável e continha a faixa etária escrita à caneta.

“Todo o processo de apuração podia levar horas e, se você suasse muito durante o trajeto, certamente teria essa etiqueta de papel danificada. Mas, por incrível que pareça, tudo dava certo na premiação, pois os próprios corredores conheciam seus concorrentes, fazendo o controle paralelo, pois não eram muitos e basicamente eram sempre os mesmos”, explica o advogado e economista carioca Luiz Antonio Fernandes, de 55 anos, que também começou a correr em 1980, quando morava em Brasília.

Luiz Antonio, que vivenciou todo o crescimento da corrida de rua no Rio de Janeiro na década de 80, atenta para o fato de na época já existirem vários organizadores de provas, como a Corja, Os Verdes e mais tarde a Sprint, que realizam eventos com nível técnico muito bom. “Já desde 1980, tínhamos corridas bem organizadas, tal como a Maratona de Rio, que recebia corredores internacionais. A feira da prova chegou a ser no Copacabana Palace e cerca de 4 mil maratonistas vinham de todo o Brasil para participar. Havia bons patrocinadores e muita divulgação pelos jornais e até TV. A organização da maratona era impecável, com distribuição de camiseta, lanche, arquibancada na chegada e bom público. A maratona iniciava às 16 horas e era bonito ver o por-do-sol correndo”, comenta Luiz Antonio, que lembra ainda que pelo menos a cada mês havia uma boa prova para se correr, algumas delas com 300 pessoas e outras mais grandiosas, como a própria Maratona do Rio, a Corrida da Linha Vermelha e a Corrida da Ponte, todas disputadas no Rio, além da charmosa Maratona de Blumenau (que agradava, mesmo sem oferecer um único banheiro na largada em Itajaí, onde largava – NR), e também a desde então famosa São Silvestre (igualmente sem banheiros…), que atraía corredores de todo o Brasil.
Quem também vivenciou a época áurea do Rio de Janeiro nas corridas de rua foi o cearense Júlio Lima Verde, de 63 anos, que fez sua primeira participação em prova em 1982 quando fazia doutorado na capital carioca. Militar da reserva, Julio lembra que as corridas de rua tiveram um primeiro “boom” com a vitória do americano Frank Shorter na maratona olímpica de Munique em 1972. “Essa ´bolha´ expansiva só chegou ao Brasil no início dos anos 80 e justamente na modalidade de maratona”, comenta Julio, que correu a Maratona do Rio em 1983 e 1985 e depois começou a participar ativamente de organização de provas, quando foi morar em Recife, justamente por causa da sua experiência na Maratona do Rio de Janeiro, que já tinha como modelo a de Nova York.

Cronometragem manual
Como organizador, Julio lembra que as dificuldades para organizar uma prova na época eram enormes. “Tínhamos que obter patrocínio para a confecção dos números (de tecido), as camisetas de algodão tipo regata, os troféus para os vencedores das categorias e as medalhas apenas para os três primeiros de cada faixa etária. A cronometragem era manual, somente para o primeiro colocado e a primeira atleta vencedora, quando se conseguia identificar a campeã. As autorizações eram realizadas por meio de documento ao Detran e Polícia Militar locais, solicitando a interdição e controle de trânsito nas ruas de maior fluxo”, explica, complementando que o fechamento do percurso variava muito em função do apoio obtido pelos órgãos de trânsito. “Houve provas que acabaram em função dessa falta de apoio.”
Mesmo com toda a mobilização para tentar fazer uma corrida sem maiores problemas, não era difícil que fatos pitorescos e inusitados interferissem no andamento da prova. Numa corrida de 10 km realizada no começo dos anos 90 em Fortaleza, cuja largada acontecia às 20 horas, antes da largada, Julio foi indagado por um corredor: “Você faz os primeiros 3 km abaixo de 15 minutos?” Isso porque exatamente no km 3 os corredores teriam que cruzar uma linha férrea e o trem passava pontualmente no local às 20h15. “Ao largar, acelerei o que pude. Ao ultrapassar a linha férrea, ouvi com surpresa uma série de apitos da locomotiva com dezenas de vagões, que barrou o restante dos corredores mais lentos por mais de 2 minutos.”

Participação feminina
A participação das mulheres na época também era rara, situação que mudou um pouco principalmente com a criação das primeiras corridas da Avon, quando o público feminino começou a ser tratado com diferenciação. Eliana Reinert, de 52 anos, nasceu em Blumenau, e escolheu a cidade de São Paulo para morar. Técnica de atletismo da equipe do Pinheiros há 23 anos, ela começou a correr em 1973 em provas de 100 e 200 metros, mas não demorou muito para que se identificasse mais com as provas de fundo. Competiu como atleta de elite até os 40 anos e acumulou vários títulos na carreira, como campeã da Maratona do Rio, pentacampeã da Meia da Gazeta e recordista brasileira dos 3000 metros em 1981.
“Apesar de ser artesanal a organização das provas, comparando com os recursos atuais, tudo era muito sério e o esforço das pessoas era grande para ter o controle das provas, classificação e tempos”, comenta a corredora, que em 1978 foi terceira colocada na São Silvestre, mas foi chamada em quarto lugar no pódio, graças a uma atleta que havia entrado no meio do percurso. “Os atletas tinham que ficar atentos, bem como os organizadores, principalmente em provas longas. Era fácil furar e ver corredores mal-intencionados que se classificavam bem, chegando à frente de atletas já conhecidos pelas suas performances e resultados.”
Embora o percurso nas grandes provas fosse fechado ao trânsito, o controle de segurança era precário. “Muitos acidentes ocorriam, o DSV se desdobrava para conseguir que uma faixa ficasse reservada até o final do evento. As marcações eram feitas em pontos diversos no percurso e jogávamos em um saco plástico pequenos adesivos que continham nossos números de peito, para constar que tínhamos passado naquele trecho”, lembra Eliana, que salienta que uma das maiores mudanças e evolução nas provas nestes últimos 10 anos tenha sido a valorização da participação feminina, em especial das atletas que correm para vencer.
Na própria São Silvestre, que abriu para a participação feminina apenas em 1975, Eliana atenta para o fato de que as mulheres corredoras na época não tinham suporte nenhum na prova e os organizadores resistiram por muito tempo a mudanças que viessem a valorizar a participação feminina. “Na Maratona do Rio, as líderes tinham esse reconhecimento e suporte. Lembro-me que sentíamos mais seguras com os batedores nos protegendo. Já nas demais provas, contávamos com a colaboração de outros corredores (homens), que corriam ao nosso redor até para nos proteger daqueles que faziam de tudo para chegar na nossa frente, inconformados em perder para uma mulher.”
Campeã do Circuito de Provas Femininas da Avon em 1981, Eliana ressalta o importância do crescimento da corrida entre as mulheres graças às corridas da Avon, onde havia uma valorização muito grande da participação feminina. “Tudo evolui muito, o que é sempre promissor. Nas provas e maratonas internacionais, a porcentagem feminina já está sendo de 50%. Correr é um fenômeno mundial. E a maior mudança nestes últimos anos para nós, mulheres, foi esse reconhecimento.”

 

Em 1993, surge a Contra-Relógio

Neste mês estamos comemorando 16 anos e no início vivenciamos muito do que está aqui relatado, com detalhes não muito divertidos às vezes, como algumas provas acabarem em delegacia, pelo fato do organizador não cumprir o divulgado, especialmente no que se refere à premiação em dinheiro.

Mas outras falhas absurdas eram meio que aceitas pelos participantes, como largadas atrasadas, ausência absoluta de banheiros e de atendimento médico. Na parte técnica, a chegada das corridas era sempre uma incógnita sobre como aconteceria, pois poderia ocorrer o que considerávamos um absurdo, ou seja, filas antes da linha final, devido à coleta das senhas ou dos números de peito, mas que os participantes, curiosamente, nem chegavam a reclamar, porque era um fato comum em provas mais concorridas.

Com o aparecimento da CR, em outubro de 1993, os corredores brasileiros passaram a ter uma fonte de informação, depois de 5 anos sem nenhuma publicação, e também um defensor de seus direitos, já que a revista passou a exigir qualidade dos organizadores, fazendo críticas e sugestões, nem sempre bem recebidas.

Mas aos poucos, corredores e organizadores foram compreendendo o papel que a Contra-Relógio se propunha a fazer e passaram a apoiar as bandeiras da revista, que tinham o simples objetivo de buscar a melhora das corridas brasileiras, e os resultados estão hoje aí, o que muito nos orgulha por ter efetivamente participado desse processo.

Tomaz Lourenço

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