FISIOLOGIA – por Fernado Beltrami – Abril 2011
Não há consenso. Para alguns treinadores renomados internacionalmente, o treinamento para encarar os 42 km deve durar vários meses, chegando alguns a sugerir perto de um ano! Já outros dizem não ser necessária uma preparação tão demorada, mesmo para estreantes na corrida.
Fato comum entre corredores de rua, a progressão de provas é alvo de questionamento e debates entre treinadores, e mais ainda entre os próprios praticantes. Existe hora certa para subir de prova? Quanto tempo de prática em eventos curtos é necessário até que se esteja “autorizado” a fazer uma mais longa? Muitos corredores ficam na dúvida se devem ou não realizar aquela sonhada prova, e acabam deixando a decisão final por conta de seus treinadores. O problema é que, como tudo, sempre haverá treinadores defendendo cada um dos diferentes pontos de vista, e fica difícil saber de que lado as evidências pesam mais.
Antes de entrarmos nos fatores que podem influenciar a decisão do corredor sobre quando é a hora certa de aumentar a distância de suas provas, uma pequena declaração de conflito de interesse: estávamos há 50 dias da Two Oceans Marathon (56 km) dia 23/04 aqui na Cidade do Cabo, no momento em que escrevia esta matéria. Um amigo, que está visitando o país até o fim de maio, e que nunca correu mais de 5 km, ficou sabendo da prova, de sua excelente organização, muita festa etc, e se inscreveu! Nada mais a fazer senão tentar prepará-lo nestas 6 semanas; o resultado desta empreitada possivelmente esteja na CR de junho.
Em graus bem menos extremos do que a situação deste meu amigo, muitos corredores resolvem enfrentar uma distância nunca antes tentada algumas semanas antes do evento. É comum ouvir gente empolgada com seus primeiros 5 km falando em encarar um 10 km na quinzena seguinte. Essa busca da maior distância surge em decorrência da euforia da conquista ou mesmo pelo marasmo de correr sempre a mesma distância no mesmo tempo, e é um acontecimento corriqueiro principalmente com corredores sem resultados expressivos. Mas estariam eles realmente prontos para encarar distâncias maiores?
Elite também pula etapas
Fenômeno diferente ocorre com corredores de rendimento, que pensam suas carreiras em longo prazo, e onde a vasta maioria dos fundistas de hoje iniciou sua vida profissional em competições de 800 m e 1500 m. Com o passar dos anos, estes atletas aproveitam a velocidade adquirida nas pistas para subir de prova. No entanto, até os anos 60, 70 muitos deles passavam suas carreiras inteiras nas pistas (como nosso Joaquim Cruz, ouro nos 800 m nas Olimpíadas de Los Angeles 1984 e prata em Seul 1988).
Com o boom das maratonas, e os holofotes da mídia (e dos patrocinadores) voltados para estas provas nos anos 80, início dos anos 90, os corredores de meio fundo e fundo passaram a progredir para meias e maratonas. Recentemente este processo sofreu uma nova guinada, pois costumava ocorrer de forma lenta. Após os anos de juniores, os atletas construíam uma sólida carreira em pista para então evoluir para competições mais longas já em idade mais avançada, com cerca de 25-30 anos de idade.
A nova safra de atletas de elite já pensa diferente. O queniano Sammy Wanjiru, por exemplo, foi destaque nos 800m rasos em seus anos de juvenil, mas logo passou para provas maiores, com grande sucesso, sendo campeão olímpico na maratona dos Jogos de Pequim aos 21 anos. Esta é no entanto a primeira geração de corredores de elite que utilizam esta estratégia, e os efeitos de longo prazo ainda são desconhecidos. Corredores como Haile Gebrselassie tiveram carreiras longas, com 5-7 anos de corrida em pista mais 5-7 anos de maratonas. Por pular o estágio das provas mais curtas, é possível que corredores como Wanjiru tenham vidas profissionais mais curtas, e resta saber se terão mais ou menos sucesso que seus predecessores em termos de recordes e longevidade nas maratonas.
Nos livros, várias orientações
Mas vamos voltar aos corredores amadores, com seus sonhos cada vez mais grandiosos. Existe algum pré-requisito para que se possa fazer provas mais longas? Provavelmente não, e praticamente todos os livros sobre corrida trazem o treinamento ideal de seus autores, apresentado na forma de planilhas sugeridas por eles para diferentes objetivos de performance.
O livro “Lore of Running”, de Tim Noakes, por exemplo, sugere que o treino de maratona tenha duração de 26 semanas, mas deve ser necessariamente seguido por um treino anterior de 25 semanas (preparação de caminhante para 10 km). O total recomendado pelo autor então é de 51 semanas, ou um ano, para que um caminhante se torne um maratonista.
Esta é uma medida extremamente conservadora, e outros treinadores apresentam sequências bem mais rápidas. Jeff Galloway, por exemplo, apresenta um programa de 25 semanas do quase nada à maratona, onde a primeira semana é composta de caminhadas de 30 minutos (às vezes alternadas com corridas) entre segunda e sexta-feira e 5-7 km de corrida no final de semana, atingindo a maratona na semana 25. Ambos modelos apresentados sugerem uma fase de 24-26 semanas, ou aproximadamente 6 meses, de treino específico para a maratona, e nisso são seguidos por diversos outros, como Jack Daniels e Matt Fitzgerald.
Os diferentes programas variam de acordo com o grau inicial do corredor, e dessa forma existem programas de 25 semanas tanto para quem quer apenas completar a maratona quanto para os que almejam completar os 42 km em menos de 3 horas. Peter Coe, pai e treinador do meio fundista britânico Sebastian Coe (adversário de Joaquim Cruz…), não chega a indicar em sua obra o tempo de duração do preparo para uma maratona, mas sugere que corridas de 20-30 km sejam feitas a cada 12-20 dias nos dois meses que antecedem o evento. Apesar deste autor ser mais voltado para atletas competitivos, fica evidente a necessidade que ele sente de que o preparo para a maratona seja de longo prazo.
A base de cada um
É possível achar consenso na idéia de que maratonistas devem possuir um volume mínimo semanal de treino, na casa de 70-90 km semanais, pelo menos, e que devam ser corredores que encarem longos de 20-30 km sem grandes problemas. O ponto então é verificar quanto tempo de treino um corredor precisa para atingir este condicionamento. Muitas pessoas não acostumadas a correr, mas com experiências em outros esportes, começam a treinar encarando 10, 15 ou 20 km com facilidade. Obviamente estas pessoas estão avançadas em seu grau de preparo, e não precisam passar por tanto tempo de treino quanto alguém que mal consegue correr 2 km.
O importante aqui é verificar o condicionamento inicial do corredor, e a partir disso criar um ciclo de treinos que preveja aumentos graduais de carga. Aumentos semanais de 10%, por exemplo, são uma recomendação razoável. Se considerarmos que cada quarta semana da periodização consista em um período de recuperação, veremos que não é saudável levar um corredor de 20 km semanais para 70 km semanais em questão de dois ou três meses.
Num exemplo prático, um corredor que inicie correndo 20 km por semana e suba 10% a cada semana, repetindo este ciclo durante três semanas e então voltando um degrau na quarta semana (imagine subir três degraus de uma escada, voltar um, subir mais três, voltar um e assim por diante), levará cerca de 36 semanas, ou 9 meses, para atingir um volume de 70 km semanais. Se o corredor iniciar o programa já com 42 km semanais, levaria cerca de 20 semanas, ou 5 meses, para chegar nos mesmos 70 km semanais. Estes exemplos obviamente não estão considerando fases de treino; simplesmente calculam um aumento suave a constante em cargas semanais de corrida, mas dão uma idéia do tempo gasto para se atingir níveis de condicionamento recomendados para uma maratona.
Treinadores devem, necessariamente, zelar pela saúde de seus corredores. Por isso é sempre recomendável agir com mais cautela do que o mínimo necessário. Apesar disso, fica evidente através de atletas do passado e do presente que provas como a maratonas não exigem anos de preparo, ao menos não para serem apenas completadas. Se o iniciante estiver consciente de que não terá em sua primeira a sua melhor maratona, e que talvez leve três ou quatro anos para desenvolver seu verdadeiro potencial na distância, que venham os muros!