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Um pouco de luz sobre as malditas câibras

COMO FUNCIONA – por Fernando Beltrami – agosto 2011

 

O tema câibra interessa demais aos corredores, por razões óbvias. Contudo, ainda não se consegue explicá-lo, nem informar de forma taxativa como evitar o problema ou enfrentá-lo. Mas um monte de “teorias” existem, discordantes entre si.

Já que no mês passado tratamos de fadiga muscular, uma boa forma de continuar o assunto é falando das câibras musculares, que muitas vezes despedaçam as esperanças de corredores. Dado que este assunto é extremamente polêmico e discutido, resolvi abordá-lo de uma forma diferente.

Fiz uma busca no Google pelas palavras câibra e suplementos, e abri os primeiros dez resultados que faziam algum sentido. Esse é o tipo de informação que eu imagino que o corredor regular tem acesso. Na segunda parte da matéria, e por favor leiam a segunda e a terceira parte da matéria também, fiz uma pesquisa pelas palavras câibras e exercício em um portal de buscas de artigos científicos. Na terceira parte vamos abordar os mecanismos responsáveis pelas diferentes teorias. Vejamos o que encontrei.

Pesquisa informal

De acordo com a Fitnessboutique, câibras são espasmos ou contrações musculares involuntárias, em geral bastante dolorosas, causadas pela perda de líquidos (desidratação) em conjunto com a perda de nutrientes pelo suor, pelo acúmulo de ácido lático e principalmente pela má circulação de fluxo sanguímeo.

Esta visão é compartilhada pelo blog voltado ao fisiculturismo Planeta do Corpo, que explica que as câibras são causadas pelo acúmulo de ácido lático na musculatura devido à ausência de oxigênio durante a quebra de glicose no músculo.

A assessoria Copacabana Runners segue a primeira linha apresentada pela Fitnessboutique, e apresenta como causa para as câibras a grande perda de sódio e líquidos durante o exercício. O site do grupo explica, ainda, que como a perda de potássio e magnésio no suor são relativamente baixas, é pouco provável que estes minerais tenham algum envolvimento na causa das câibras.

A fabricante de suplementos USN discorda, e promove a venda do seu Cramp Bloq (bloqueador de câibras, em tradução livre), um comprimido rico em sódio, magnésio, cálcio e potássio, que deve ser ingerido a cada hora de exercício para prevenir a ocorrência das malditas.

Entre as sugestões de tratamento para as câibras está uma dieta balanceada, rica em minerais e hidratação adequada. A suplementação de alimentos ricos em potássio e também magnésio é recomendada. Já entre as sugestões nutricionais do blog Portal do Corpo aparece a ingestão de uma banana (fonte de potássio), cerca de meia hora antes da atividade física. A Copacabana Runners também apoia a ingestão de bebidas esportivas para repor o sódio perdido durante o exercício.

Uma visão diferente é apresentada pelo blog Ultimate de suplementos, que sugere que as câibras são fruto da fadiga, da contração muscular em posições encurtadas e da falha de reflexos de relaxamento da musculatura. O alongamento da musculatura afetada é o tratamento sugerido.

 

Pesquisa formal

A medicina esportiva descreve as câibras musculares como “contrações musculares involuntárias, dolorosas e espasmódicas, que ocorrem durante ou logo após o exercício”.  É importante salientar que estamos falando de câibras associadas ao exercício, e não de qualquer outra situação patológica que leve a câibras.

Uma série de trabalhos de dois grupos têm liderado as pesquisas no assunto nos últimos anos: na universidade de Cape Town, na África do Sul, o grupo comandado pelo prof. Martin Schwellnus, e nos Estados Unidos o grupo de Kevin Miller.

As pesquisas mais recentes do sul-africanos buscaram por associações entre a ocorrência de câibras em uma ultra-maratona ou um Ironman com variáveis de treinamento, performance e exames sangue dos participantes. Os resultados mostraram que não havia diferenças importantes nos níveis sanguíneos de sódio, potássio, magnésio, cálcio, glicose, osmolalidade plasmática, concentração de hemoglobina (estes dois últimos são referências para o grau de hidratação de um indivíduo) entre os corredores que tiveram ou não câibras.

No entanto, uma das variáveis medidas em um dos estudos foi a atividade elétrica presente na musculatura durante o repouso (eletromiografia). No grupo de atletas com câibras a atividade elétrica muscular estava elevada, mesmo que eles estivessem repousando deitados, então teoricamente com a musculatura relaxada.

Outro ponto interessante é que o grupo de atletas com câibras em um dos estudos havia corrido em tempos mais fortes que seus “controles” que não tiveram câibras durante a prova, apesar de ambos terem feito cargas similares de treino durante sua preparação. Ou seja, o grupo com cãibras tinha forçado mais o ritmo em relação ao treino que haviam feito durante sua preparação.

Também foi constatado que corredores com câibras haviam realizado treinos mais intensos nos três dias anteriores à prova, a haviam corrido mais forte na primeira metade. Todos estes resultados apontam para uma disfunção muscular decorrente de atividade exagerada como explicação para o fenômeno das câibras durante o exercício.

Nem desidratação, nem falta de minerais

Já os americanos abordam o problema por outro aspecto. Em um dos trabalhos o grupo desidratou seus participantes em 3% via exercício, ou cerca de 2,1 kg para uma pessoa de 70 kg, e após testou o limiar de estimulação para câibras. Explico: utilizando a técnica de estimulação elétrica da musculatura é possível determinar que frequência de estímulo é necessária para que se obtenham câibras. Em outras palavras ainda, o músculo é forçado a contrair em pulsos cada vez mais frequentes, digamos 10, 20, 30 vezes por segundo, até que se obtenha uma câibra.

Este trabalho mostrou que a perda de 3% de massa corporal e consequente perda de eletrólitos (minerais) e aumento da osmolalidade plasmática não tiveram quaisquer efeitos no limiar de câibras, sugerindo pouco ou nenhum efeito da desidratação e perda de minerais (nessas quantidades).

Um segundo estudo, utilizando esta mesma metodologia, mostrou que pessoas com histórico de câibras possuem um limiar de estimulação mais baixo, ou seja, são mais suscetíveis a câibras, necessitando de menos estimulação elétrica para obtê-las. Estes resultados suportam a hipótese do outro grupo, de que as câibras associadas ao exercício são fruto de uma disfunção neuromuscular, ao invés de serem decorrência da perda de eletrólitos ou água.

Água de conserva!

Um resultado inusitado deste mesmo grupo foi encontrado recentemente, ao se avaliar uma teoria popular. Os autores decidiram testar se beber água de conservas (picles) tinha algum efeito sobre a ocorrência de câibras. Novamente elas foram induzidas por estimulação elétrica, e imediatamente um grupo ingeriu a água de conserva, enquanto o outro tomou água pura. Surpreendentemente a água de conserva reduziu a duração das câibras em 50 segundos, sem no entanto afetar as concentrações plasmáticas de eletrólitos, mesmo cinco minutos após sua ingestão.

Os autores criaram então a hipótese de que sensores na região da boca estimulariam algum reflexo que inibiria a disparo de motoneurônios responsáveis pela contração muscular involuntária.

Contração muscular e fadiga

Toda a contração muscular é decorrente de um estímulo elétrico. Eletricidade é o método escolhido pelos nervos para transmitir impulsos do cérebro para a musculatura. Essa eletricidade é gerada a partir da constante troca de íons de sódio e potássio de dentro para fora da célula e vice-versa (íons são moléculas eletricamente carregadas).

Assim, não é surpresa que as câibras sejam associadas à carência destes íons. Os outros minerais (magnésio, cálcio) atuam em outras partes do processo de contração muscular, mas não iremos chegar lá. Por agora, basta entender que em algumas situação patológicas graves, é possível, sim, que a carência destes íons leve à câibras. No entanto, estamos falando de situações de falência quase geral do organismo, e não de uma câibra na panturrilha durante a corrida.

Durante o exercício, nosso corpo perde líquidos e sais minerais. Só que ele perde muito mais líquidos que minerais, então na verdade a concentração de todos eles aumenta, e não diminui. Ingerir sais minerais nesse caso só faz aumentar ainda mais esta super-concentração. Imagine uma piscina de 100 litros com 14 mil pedras dentro. Temos uma concentração de 140 pedras por litro (qualquer semelhança com nossa concentração de sódio não é mera coincidência).

Se nossa piscina for correr por uma hora  e perder 5 litros d’água junto com 200 pedras, a concentração da nossa piscina não diminui, ela aumenta para 145 pedras por litro! Essa conta vale para todos os outros eletrólitos do organismo. Obviamente que a ingestão de água (com ou sem eletrólitos) irá dissolver um pouco essa concentração, mas normalmente o máximo que ocorre é que tudo volte ao normal.

Uma outra possibilidade é que a desidratação em si, por diminuir o tamanho das células e deixar suas paredes mais próximas e talvez instáveis perante estímulos elétricos, pudesse ser o causador das câibras. Estudos como o que mostramos desprovam essa teoria, além dos milhares de atletas que se desidratam sem apresentar câibras.

O problema das câibras parece residir mesmo na excitabilidade das fibras (independente de hidratação), que se modificaria com a fadiga. É como se, após muito tempo fazendo a mesma atividade, o músculo começasse a descoordenar, com o processo de contração e relaxamento saindo dos eixos.

É importante observar que, como mostraram os trabalhos que acabamos de descrever, câibras raramente aparecem em situações onde a quantidade de atividade física realizada é moderada para o indivíduo. Ou seja, quem está acostumado a correr 10 km em 40 minutos dificilmente têm câibras, a menos que tente correr em 38.

O fenômeno parece estar intimamente relacionado a algum “erro de treinamento”. Erro não é a melhor palavra, mas fica claro que a fibra não está preparada para transmitir estímulos por tanto tempo ou tão repetidamente, o que possivelmente poderia ter acontecido se ela tivesse sido melhor treinada. Esta interpretação final é mais um passo lógico, baseado nos estudos na área, não necessariamente uma conclusão científica, e pode não se confirmar verdadeira com o tempo.

Este exercício que fizemos de buscar informações em diferentes “bancos de dados”, por assim dizer, é de extrema importância para o corredor. Notem como a explicação / tratamento muda drasticamente de acordo com a fonte utilizada.

Salvo um dos textos encontrados na busca “informal”, todos os outros nos guiaram para a hipótese de desidratação, perda de sais, alguns indo até a hipóteses como má circulação e acúmulo de ácido lático. É preciso abrir os olhos e sempre buscar por respostas em mais de uma fonte, especialmente se esta estiver interessada em vender uma cura.

 

Como enfrentá-las

A literatura científica é bastante conservadora no tratamento das câibras. De imediato, é necessário alongar a musculatura afetada. Em muitos casos isto irá exigir que o corredor pare por alguns minutos. Depois disso, é provável que a repetição da atividade irá desencadear novas câibras, então é necessário que se diminua o ritmo, e talvez até a passada, de forma que a musculatura deixe de se contrair no mesmo ritmo e intensidade que antes.

Aliás, muitas vezes é possível perceber quando um músculo irá iniciar a processo de câibra. Pequenos espasmos ou “pré-câibras” podem ser notados, e a partir desse ponto já é salutar diminuir a intensidade, alongar e modificar a passada.

Tentar “correr por cima” de uma câibra grave é uma decisão infeliz na maioria dos casos, já que acâibra só tende a se intensificar até que obrigue o corredor a parar, e nessa altura levará um bom tempo para passar.

Sobre a água de conserva, pode haver algum mérito na idéia, mas ainda acho cedo para justificar o consumo de sal puro, ainda mais em cápsulas. O estudo apontou para algum tipo de reflexo induzido pela passagem do sal pela boca, não pela sua chegada no sangue, e dentro de uma cápsula esse efeito se perde.

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