Fisiologia – Fernando Beltrami – fernando@evenfaster.com.br – Maio 2010
Em março passado fez um ano que iniciei esta coluna na Contra-Relógio, e por algum motivo este assunto ainda não havia ganho o destaque merecido. O lactato é um dos temas mais recorrentes nas conversas de corredores, e não obstante ainda é um dos mais obscuros dentro da fisiologia e mal compreendido por muitos atletas e treinadores.
A molécula de lactato já fez um pouco de tudo em nosso organismo. Explico: desde os idos de 1920, pesquisadores do mesmo grupo que criou o conceito de consumo máximo de oxigênio estavam estudando a contração muscular em músculos de sapos e perceberam a formação de lactato quando os músculos se contraíam sem a presença de oxigênio. Naquela época, um pouco em virtude da metodologia utilizada e dos conhecimentos que haviam até então, concluiu-se que o lactato era a molécula que desencadeava a contração muscular. De lá pra cá, o lactato passou também pelo papel de vilão da contração muscular, protetor da contração muscular, mecanismo de distribuição de açúcar no organismo, molécula responsável pela sensação de dor e a lista segue, com alguns pesquisadores questionando até se lactato poderia ser utilizado como dopping.
A teoria clássica
Até pouco atrás a teoria corrente, e indisputada, era a seguinte: o corpo humano produz energia a partir da queima de glicose (açúcar) e gordura. A queima da glicose, em determinado estágio, poderia seguir por dois caminhos. A primeira opção, a via aeróbica, seria fazer uma queima completa e lenta da molécula, produzindo mais energia e utilizando oxigênio no processo. Uma segunda opção, a via anaeróbica, seria queimar a molécula de forma incompleta, sem a utilização de oxigênio, num processo mais rápido, mas que gera menos energia e resulta na formação de ácido lático.
O termo ácido lático é pouco utilizado porque logo que formado ele se dissocia em lactato (um sal) e um próton (H+). Esta molécula de hidrogénio é que seria a responsável pela acidose, ou seja, pela queda de ph sanguíneo. Esta queda de ph iria impedir o funcionamento de diversas enzimas e reações químicas. Num paralelo com a temperatura, é como dizer que não se trabalha direito porque num dia está muito quente. Isto diminuiria a capacidade de produção de força e levaria à conhecida sensação de queimação nos músculos durante a corrida. A hipótese aceita é de que nosso corpo recorreria a esta segunda opção de queima de açúcar logo no início de alguma atividade, pois o processo é mais rápido e pode suprir a demanda de energia com mais facilidade, ou então quando em graus elevados de esforço o organismo já não conseguisse mais absorver oxigênio o suficiente para gerar energia pela via aeróbica na quantidade requerida para manter o exercício.
O parágrafo acima pode ter soado um pouco complicado, mas é importante saber que você possivelmente ainda treina apoiado neste princípio. Que princípio? O de que para melhorar nossa capacidade como corredores é preciso então melhorar o sistema aeróbico, para diminuir a quantidade de lactato gerado durante uma determinada velocidade de corrida. Alguém aí já ouviu falar de limiar de lactato ou limiar anaeróbico? Os conceitos se confundem um pouco, e querem dizer que existe uma velocidade, e aqui imagine-se correndo cada vez mais rápido a cada um ou dois minutos, em que seu corpo não irá conseguir produzir energia o suficiente pela rota aeróbica, e a partir daí a via anaeróbica será ativada num ritmo muito mais intenso, produzindo lactato, acidose, prejudicando enzimas etc; e isso irá limitar sua capacidade de correr naquela velocidade. Sendo assim, o objetivo do treino é “empurrar” o limiar de lactato para velocidades cada vez mais altas, fazendo que com que se consiga correr confortavelmente em ritmos que antes não eram tolerados.
Novos horizontes
Uma nova área de pesquisa que sacudiu um pouco a teoria “clássica” foi a de um cientista de Universidade da California, George Brooks, que resolveu olhar mais a fundo a questão da produção de lactato. O experimento merece ser descrito. Uma pessoa fazia algum exercício de pernas apenas com a perna direita, digamos. Enquanto isso, sua concentração sanguínea de lactato era medida em uma veia e uma artéria de cada perna. A grosso modo, o sangue chega em nossos músculos pelas artérias, cheio de oxigênio e glicose, e sai pelas veias, com gás carbônico e lactato. O resultado foi surpreendente. Na perna que estava parada, o sangue chegava com (valor simbólico para explicação) duas unidades de lactato e saía com quatro, enquanto na perna que estava se exercitando o sangue chegava com quatro unidades e saía com duas. Estou simplificando os números e quantidades, mas a ideia central é que a perna parada produzia lactato enquanto a perna que se exercitava consumia este lactato!
A partir desta linha de estudos surgiu o conceito de um sistema de transporte de lactato no organismo. A base é que nosso organismo precisa de glicose (açúcar), e alguns órgãos, como o cérebro, não conseguem utilizar gordura para produzir energia, então é vital que sempre exista glicose em quantidade suficiente no sangue; o problema é que uma vez que a glicose entre no músculo, ela não consegue sair. O lactato não deixa de ser, de certo modo, uma forma de glicose parcialmente queimada, e além de sair facilmente dos músculos, também pode ser oxidado pela via aeróbica. Hoje já é comprovado que órgãos como o cérebro e o coração utilizam e até “preferem” consumir lactato, mas a surpresa veio da possibilidade que a musculatura utilize o lactato para dividir entre si, entre músculos ativos e inativos, os estoques de glicose.
O lactato surge, então, como um mecanismo de redistribuição de açúcar no organismo, que age independentemente da quantidade de oxigênio disponível na musculatura, e ficamos com a seguinte pulga atrás da orelha: sempre que medirmos a concentração de lactato num corredor, o que geralmente é feito nos braços, dedos da mão ou orelha, como saber de onde veio este lactato e por que ele foi criado?
Sem efeito na performance
Mas o pior, para a corrente clássica, ainda está por vir. A noção de que o lactato ou o próton H+, que são formados quando da produção de ácido lático, são prejudiciais à capacidade de produção de força não é desfeita pela pesquisa descrita acima, uma vez que os dois mecanismos podem existir ao mesmo tempo. Ou seja, o lactato poderia muito bem servir aos dois propósitos: ser um meio de distribuir glicose no sangue e também ser um meio de obter energia rápida e em situações extremas, que acabam por prejudicar a contração muscular. No entanto, a segunda linha de estudos que veremos vai contra justamente esta última idéia.
A contração muscular acontece por meio de impulsos elétricos. Esses impulsos são transmitidos ao se fazer com que sódio e potássio viagem de dentro para fora das células (o sódio que existe em grande quantidade dentro da célula muscular saindo e o potássio que existe em abundância fora da célula entrando). O importante é que estudos com fibras musculares isoladas mostraram que conforme as contrações se repetem, o acúmulo de potássio dentro das células (e você aí pensando em bananas pra combater câibras – mas não precisa parar de comê-las) prejudica a contração muscular. Aconteceu que quando as fibras musculares eram colocadas em uma solução com lactato, este “combatia” o efeito do potássio e a força muscular era mantida! Ou seja, diretamente em oposição ao conceito de que o lactato é prejudicial à contração muscular.
Além destes estudos principais, alguns outros trabalhos já mostraram que a infusão venosa de lactato não possui efeito algum sobre performance ou qualquer outra coisa, o que mostra que isoladamente aumentar a concentração de lactato não tem muito efeito sobre nossa fisiologia. Alguns pesquisadores, no entanto, estão alertando para a possibilidade do lactato, em algumas situações, ser responsável por ativar sensores de dor em nosso corpo, o que de uma forma ou outra é responsável por uma diminuição de performance.
E seu treino, como fica?
Estamos num ponto em que não se sabe mais bem ao certo qual é o papel exato do lactato no organismo, e o fato de ele possivelmente ter múltiplos papéis, confundindo-se entre mocinho e bandido, dificulta as coisas. Talvez então seja melhor desencanar da ideia, deixar de furar o dedo a cada série e preocupar-se porque o colega de treino têm um lactato menor que o seu ou um qualquer coisa nesse sentido. Saber seu valor de lactato irá lhe dizer pouca coisa que você ainda não sabia, e comparar sua performance relativa a de outros corredores em diferentes distâncias pode ser mais produtivo para seu planejamento do que saber sua concentração exata de lactato em uma determinada velocidade.
Do ponto de vista do treinamento, é possível montar uma periodização de treinamento que, mesmo baseada num conceito errado, dê certo. Isto porque a maioria dos sistemas de treino se baseia em escolher uma velocidade relacionada a algum evento fisiológico e a partir dela cria diferentes “zonas”, cada uma trabalhando um objetivo específico. Vamos então supor que você sempre treinou pelo seu limiar de lactato, e que daqui a pouco se descubra que o tal limiar, da maneira que você ou seu treinador acreditavam existir, não exista. Você continua com uma velocidade alvo, que irá mudar de acordo com seu grau de treinamento, no caso a velocidade determinada pelo teste de limiar que você usa, e que irá determinar seus ritmos de treino. Claro que ninguém gosta muito da ideia de estar treinando sobre um conceito fundamental falho, mas saber que ainda assim pode funcionar já é um conforto.