Você certamente já ouviu falar que descanso é treino. Mas não basta descansar o corpo, ficando um ou mais dias sem treinar, dependendo da planilha da prova que acabou de correr. É essencial ter noites de sono na quantidade e qualidade adequadas, para melhorar a performance ou mantê-la em alto nível. Uma das razões que fazem do repouso noturno um componente fundamental na vida dos atletas é o princípio da restauração celular. Tudo o que construímos durante o dia – energia, conexões neurais, etc. – é reconstruído à noite, com maior intensidade, enquanto dormimos.
Estudos indicam que pessoas com privação crônica de sono têm 50% mais de chances de engordar. Isso, segundo o médico do exercício e do esporte João Felipe Franca, acontece pela maior secreção do hormônio da fome (grelina). "Além disso, é uma situação que aumenta a irritabilidade e o estresse, e diminui a criatividade e a imunidade. Visto pela ótica dos corredores, uma noite mal dormida prejudica a performance física tanto pelo substrato energético deficiente quanto pela maior irritabilidade e menor criatividade na tomada de decisões."
Em qualquer área – esportiva, profissional e até familiar – o rendimento está intimamente relacionado à quantidade e à qualidade do sono. Ainda assim, tem gente que acha que dormir muito é perda de tempo. É uma visão completamente equivocada, visto que o organismo precisa de oito horas – em média – de uma boa soneca para se recuperar completamente, embora muitos se sintam bem com uma quantidade menor de horas. Aí, segundo o médico, entra a relação quantidade e qualidade. "Entre as duas, a falta de qualidade prejudica mais. Mas mesmo um bom sono tem que ter um mínimo de horas, pois é um período que se divide em ciclos e estima-se que, para haver qualidade, deva ter de três a cinco ciclos completos. Estes ciclos variam de 90 a 120 minutos. Portanto, um descanso ideal pode variar de cinco a dez horas."
Como sempre o organismo dá sinais de que algo não vai bem, basta ouvi-lo e tentar mudar a situação. Com relação a déficit de sono são muitos os avisos: dependência de despertador; comentários sobre sua fisionomia abatida e seu cansaço; dificuldade para levantar de manhã; sonolência durante o dia; e uso exagerado de estimulantes como cafeína e álcool. Neste caso, é importante rever a planilha e fazer adaptações aos treinos de forma a priorizar as horas de total repouso. Do contrário, o corredor pagará um preço caro.
"A privação do sono diminui a imunidade. São afetadas a concentração e a restauração das fontes energéticas. Portanto, qualquer um assume o risco de pegar alguma infecção e ver diminuído o nível de concentração e atenção. No caso de um corredor, isso pode resultar em queda e perda de performance", explica o médico, que em 2009 estudou a fundo o problema quando integrou a equipe da ciclista Daniela Genovesi no Race Across America, prova em que a atleta precisou pedalar 20 horas por dia durante 12 dias.
A longo prazo, noites com baixa qualidade de sono associadas a atividades físicas intensas podem provocar irritabilidade, infecções oportunistas, lesões musculares e ganho de peso. No caso dos corredores, que muitas vezes expõem o organismo a situações extremas e gastam mais energia, um bom descanso é essencial. Do contrário, de uma forma geral, há aumento do estresse que, associado ao ganho de peso, leva à elevação da pressão arterial e ao aparecimento de doenças cardiovasculares, como infarto do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais.
A ultramaratonista Sueli Silva sofre com distúrbios de sono por conta de uma disfunção da tiroide e chegou a abandonar a Maratona de São Paulo no km 25 por cansaço. "Foi falta de energia mesmo. Cheguei em casa e fui dormir. E olha que foram só 25 km, que não tenho a menor dificuldade em correr". Acostumada a fazer ultramaratonas em que passa a noite correndo, a atleta usa uma estratégia para tentar enganar o cérebro, embora sem qualquer base científica.
"Como preparação, há períodos em que começo a treinar de madrugada e fico sem dormir até a noite. Não sei se por conta disso, mas faço as ultras de 24 horas, me sentindo muito bem."
Na véspera pode pouco influenciar
As recomendações para que esportistas não descuidem da alimentação e do repouso são obviamente acertadas, mas elas estão focadas no cotidiano, no dia a dia. Por muitas razões, sempre se passará por situações adversas, em que se come tudo errado por falta de opção ou não se consegue dormir como gostaria. E esses casos pontuais não chegam a afetar a performance, que como se sabe tem como principal base o treinamento correto e dedicado.
Ao menos foi o que passou comigo em três situações, todas com resultados bem melhores do que poderia supor, considerando-se as noites mal dormidas. Vamos a elas.
A primeira aconteceu na véspera de minha primeira maratona, em Blumenau 1992; em função da tensão pela estreia, não consegui dormir um minuto sequer, mas fiquei na cama das 21h às 5h. Café da manhã tomado, segui de ônibus para a largada, às 7h, e voei nos 42 km, completando em 3h04, contra as 3h15 previstas – ainda meu recorde na distância, aos 45 anos, tendo corrido até agora umas 40 maratonas.
A segunda foi em uma meia-maratona em Buenos Aires, em 1998. No sábado à noite jantei com minha mulher, massa e carne, acompanhado de uma garrafa de vinho tinto. Fomos para o hotel antes das 22h e quando nos preparávamos para dormir, descobrimos que a janela do quarto dava para um salão de festas, onde acontecia um casamento ou algo parecido. Muita música até às 4h, então deu para dormir das 5 às 7h. Fui para a prova estimando fechar na melhor das hipóteses em 1h45, em função desse acontecimento, mas completei em 1h36.
O terceiro episódio é mais recente. Treinei bem para a Maratona de Porto Alegre de 2010 e fui correr a Meia das Cataratas, uma semana antes, como último treino-teste. Apesar de estar no hotel oficial do evento, lá aconteceu uma comemoração que varou a madrugada, só dando para dormir depois das 3h, sendo que a largada era às 7h. A meta era completar em torno das 2 horas, mas o dia nublado e frio acabou minimizando os problemas da noite e terminei em 1h48.
Para não ficar apenas no tema "horas de sono", lembro outro relacionado à alimentação irregular. Foi na Maratona de Londres 2000, quando acordei atrasado e tive que sair do hotel sem comer nada, a não ser uma banana que achei em minha mochila. Na concentração, descobri que nada havia além de água, chá e café. E no percurso apenas água e hidratante. Mas como estava bem treinado, então apenas passei um pouco de fome (peguei "emprestadas" 2 bolachas de chocolate de uma criança), mas deu para terminar e pedi 3 sanduíches para o staff na chegada… (por Tomaz Lourenço)