20 de setembro de 2024

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Notícias admin 10 de março de 2015 (0) (79)

OS SOBREVIVENTES DA SERRA DO RIO DO RASTRO

Diferentemente das grandes maratonas pelo Brasil e pelo mundo, a Mizuno Uphill reuniu apenas 50 corredo­res (32 homens e 18 mulheres), amadores convidados pela marca esportiva. Mas em nada ficou a dever aos megaeventos. Só o cená­rio – a Serra do Rio do Rastro, na cidade de Lauro Müller (SC), con­siderada uma das estradas mais bonitas do mundo – já colocava no chinelo muitas das paisagens das provas mais badaladas.
A excitação pelo "desconhecido" – embora os participantes fossem bem experientes, ali ninguém havia feito algo parecido com 42 km, a maior parte, em ascensão – e o brilho nos olhos que demonstravam paixão pelo esporte davam o tom na praça central da cidade de Treviso, local da largada. Minutos antes do início da corrida, se não estivessem todos com roupas esportivas e tênis, bem que pareceria uma confraternização de final de ano: todo mundo ria, se abraçava, desejava boa sorte…
Os corredores largaram às 7h, sob fina garoa e temperatura fria. E logo o ar de euforia se dissipou. Pela fren­te seriam cerca de 20 km de incli­nação moderada, 10 de subida forte e os últimos tão inclinados que im­pressionam até mesmo os moradores da região. "Todos estavam focados na serra, mas a primeira metade da prova também foi bem exigente", dis­se o médico Frederico Mendes, nati­vo de Lauro Müller, corredor sub-3 horas em maratonas, que completou a Uphill em 3h54.

A BRIGA PELA LIDERANÇA. Os cam­peões foram o engenheiro carioca Leonardo Maciel, 32 anos, e a pu­blicitária e estudante de educação física Mirlene Picin (Mika), 33, de Mogi Mirim (SP). Mas não foi nada fácil. Além da respeitável altimetria, os corredores enfrentaram desnível de 1500 metros, forte neblina e tem­peratura na casa dos 12ºC, que com chuva e vento baixou ainda mais a sensação térmica.
A liderança na primeira metade da maratona foi de Paulo Lacerda, empresário de 49 anos, de Guaru­lhos (SP). "Consegui fazer uma óti­ma prova, com um início animador. Mas o Léo mereceu a vitória", ava­liou Paulo, segundo colocado geral, que foi seguido por Carlos Kawasaki, engenheiro de 46 anos, de São Paulo.
"Quando recebi o convite, coloquei na cabeça que iria completar bem o percurso. Durante o caminho, perce­bi que era possível ir além e aumen­tei meu ritmo a partir do km 17. Mas foi apenas quando faltavam 5 km que eu disparei", contou Léo.
Pouco atrás dos homens, Mika e Marina Richwin (administradora paulista de 25 anos, a mais nova da competição) encabeçavam o segundo pelotão, travando um duelo acirra­do em grande parte das 256 curvas da serra. Era comum a troca de po­sições. Nos últimos quilômetros, porém, a corredora de Mogi levou a melhor e cruzou a linha de chegada na primeira posição, seis minutos à frente de Marina. A técnica em ra­diologia Eloiza Testolin, 36 anos, de Caxias do Sul (RS), foi a terceira.
A campeã contou que já havia fei­to a Two Oceans (56 km), na Cida­de do Cabo, África do Sul, fechando com 4h53, e várias provas de corri­da de montanha, mas nunca tinha participado de uma maratona e se­quer imaginava vencer esse desa­fio. "Queria fazer uma boa prova e correr o tempo todo, sem caminhar na subida." Junto com seu treina­dor, Beto Carnevale, traçou uma estratégia conservadora, visando chegar bem no trecho final das su­bidas intensas. "Como estava le­sionada e recebi o convite 30 dias antes do evento, não tive tempo de fazer um trabalho específico. Foi um treino bem planejado para che­gar o mais inteira possível no dia da prova", comemorou Mika, que também é atleta de ski cross coun­try e biatlo de inverno.
Léo completou em 3h31 e Mika em 3h48. Todos os participantes finali­zaram a prova, sendo que os últimos levaram o tempo de 5h37.

 

CÃIBRAS, LOUCURAS E LÁGRIMAS

Desde que fui convidada, minha estratégia foi fazer a minha corrida – escapar do corte no km 21, ou seja, passar nesse ponto antes de 2h30 de prova, e seguir no meu ritmo para completar os 42 antes das seis horas (limite de término). Os mais rápidos logo se distanciaram. No bonde do fundão restaram eu, o Iúri Totti, a Jacke Reis e a Betina Balletta. Seguimos pouco tempo juntos porque logo elas abriram. O Iúri também se distanciou um pouco. Segui sozinha por um bom tempo. Alguma coisa começou a me incomodar, mas eu não sabia exatamente o quê. Talvez fosse o medo de não conseguir completar. 

Tomei um carboidrato em gel no km 9 e dei uma animada; pouco depois alcancei o Iúri. Fomos lado a lado, trocando poucas palavras, apenas para sinalizar que es­tava tudo bem. O segundo gel no km 17. Acho que foi por aí que comecei a fazer uma lista mental dos animais que havia visto pelo caminho para passar o tempo. "Cachorro, vaca, cavalo, galo." Coisa de maluco, eu sei. Mas no final acho que foi o que me salvou…
Imprimimos um bom ritmo, passamos pelo centro da cidade de Lauro Müller e chegamos ao km 21, com 2h15. Ali parei um pouco, tomei refrigerante e comi amendoim. A segunda metade seria mais dura. A partir do km 25, com o início da subida da serra, a coisa ia se complicar e só piorar até o final.
Eu e o Iúri seguimos juntos. Mas talvez por eu ter dado a paradinha e o corpo ter esfriado, senti as primeiras e horríveis cãibras nas duas panturrilhas antes de chegar ao km 22. Falei para o Iúri seguir e fiquei para trás. Mas o que me deixou preocupada foi a tremedeira na mão. Achei que pudesse ter um troço ou perder a consciência. Foi então que a lista de animais que eu havia feito antes me veio à cabeça. Eu obrigava a mim mesma repetir, na sequência certa, os animais que tinha visto pelo caminho. "Cachorro, vaca, cavalo, galo." Se errasse, tinha de recomeçar. Achava que assim manteria minha sanidade, meu controle mental. Tomei um remedinho para aliviar a dor e consegui contornar a situação, voltando a imprimir um ritmo razoável.
De vez em quando eu repetia a lista – que foi me cansando muito a cabeça, mas era uma maneira de não "pirar", de não pensar nas adversidades e de não querer abandonar a prova.
Mais adiante, talvez por volta do km 30, cãibras horríveis novamente. Estava sentindo falta de sal e pedi na ambulân­cia, que vinha colada a mim. O médico me deu um gole de soro fisiológico e apro­veitou para aplicar anti-inflamatório em spray e fazer uma massagem nas minhas panturrilhas.
CACHORRO, VACA, CAVALO… À beira da estrada vi um cabrito e o incluí na lista. Agora eram cinco. "Cachorro, vaca, cavalo, galo, cabrito." Por várias vezes fechei os olhos e balancei a cabeça, como se pudesse espantar os pensamentos. Achei que estivesse ficando louca. No km 32, encontrei novamente o Iúri, que agora sentia dores e ameaçava parar. Pedi que continuasse, caso contrário eu não teria forças para seguir também. Dessa vez foi ele que procurou uma rápida ajuda na ambulância.
Ia negociando com meu corpo e com minha cabeça. "Vamos até o 35. Lá você decide o que fazer…" Lembrei-me das palavras dos organizadores Bernardo Fonseca e Clayton Conservani: "Quando você acha que não aguenta mais, ainda restam uns 30%". Certamente eu já tinha entrado nessa reserva – a questão era até quando ela iria durar…
No km 36, mais cãibras. A ambulância parou e eu entrei. O Iúri seguiu. Enquanto um enfermeiro fazia rigorosas manobras nas minhas pernas, aliviando os nós que tinham se formado, tomei uma injeção de dipirona em uma veia da mão direita para aliviar a dor e seguir até o fim.
Ganhei um bom gás, mas como está­vamos na parte de subida mais radical, segui alternando caminhada e trote. Faltando pouco mais 3 km para o final, o sargento Rafael – que também inte­grava a equipe médica da prova – me acompanhou pelo asfalto, contando a história da estrada da Serra do Rio do Rastro. Eu tentava guardar as informa­ções para depois poder escrever sobre elas, mas àquela altura mal conseguia lembrar meu nome.
Quando vi o fotógrafo Marcelo Machado, que fazia a cobertura da prova, pouco an­tes de uma das últimas curvas da serra, me esforcei para sorrir e sair bem na foto, embora a exaustão estivesse estampa­da em meu rosto. Faltava pouco. Virei a última curva e à frente havia apenas 600 metros até o final. "Você não está vendo a linha de chegada por causa do nevoeiro, mas está logo ali", disse Bruno Onezio, da organização.
À medida que fui me aproxi­mando do pórtico, comecei a ver uma galera vindo na minha direção. O Iúri também estava ali, me esperando para cruzar a linha de che­gada. Chorando de alegria e alívio, finalizamos a Mizuno UpHill Marathon em 5h37 com um abraço de irmãos.
Foi minha sexta maratona, a mais difícil que já fiz. Foi uma prova de camaradagem, apoio, força, que me fez pensar nos meus limites, na vontade de continuar e de completar as coisas que muitas vezes aban­dono pelo caminho na vida.

 

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