Releitura Redação 13 de abril de 2020 (0) (105)

No Mundo de 2020 – Crônica de Lauter Nogueira na CR de abril/maio

por Lauter Nogueira | VIDA CORRIDA | ABRIL/MAIO 2020

Por uma sincronia e coincidência dignas de uma performance esportiva, começo a teclar estas mal traçadas e ajambradas linhas no exato momento em que saltam diante de meus míopes e esforçados olhos, a bombástica notícia que o mundo esportivo mais aguardava: o COI e o Comitê Organizador de Tóquio 2020, acabam de transformar Tokyo2020 em Tokyo2021!

Enfim, as vozes dos que deviam ser ouvidos, o foram. Os reais protagonistas desta grande festa esportiva mundial agora podem se dedicar mais às rotinas pandêmicas humanas: cuidar dos seus, de suas quarentenas, de sua saúde, de sua sobrevivência. Em vez de se desesperarem a cada local de treino fechado, a cada competição importante cancelada (ou adiada) ou de verem o tempo, inexoravelmente, passar!

Deixemos os Jogos de Tóquio para depois, pois, por ora, temos mais o que fazer! Sobrevivamos! Pois todos sabem que em matéria de sobrevivência, somos os melhores! Sobrevivemos a todas as mazelas possíveis, e com galhardia, com louvor, sorrindo e fazendo graça, driblando e tripudiando. Somos assim, sejamos assim agora também.

Sabemos que em tempos extremos, afloram juntos, como Eros e Tanatos (Vida e Morte na mitologia grega), o pior e o melhor que a humanidade pode oferecer. Que o melhor floresça antes desta vez! E já que concordamos em apostar na vida, que tal conversarmos sobre alguns temas, que tenho certeza fazem parte dos cardápios de prosas virtuais, conteúdo de postagens mil em redes sociais, motivo de trocas mal humoradas de mensagens e conteúdos sarcásticos ou até publicações pseudo científicas, cujas validades são tão fidedignas quanto o currículo esportivo de alguns que correm por aí: verdadeiras (que paradoxo!) obras de ficção.

Será que daí vem o nome dado ao gênero de filmes baseado em especulações científicas sobre o futuro: os famosos filmes de ficção científica? Se alguns de vocês gostam deste tipo de filme, peço encarecidamente que aguardem o último e longo parágrafo deste texto, porque não se arrependerão.

Voltando aos temas que preenchem os espaços virtuais de muitos corredores reais em tempo de confinamento, desfilemos alguns deles aqui: Como será a vida, a partir de agora, dos maratonistas de elite mundo afora? Pois muitos já obtiveram marcas que os credenciam a participar da Maratona Olímpica, em Tóquio 2021.

A forte seletiva norte-americana também já aconteceu e seus representantes estão selecionados, mas e agora? Em puro exercício de especulação, devo entender que são realidades completamente distintas, as dos maratonistas de países fortes nesta prova (Quênia, Etiópia, Uganda, Eritréia, EUA, Marrocos, Japão…) e a dos países coadjuvantes, que não têm sequer um homem correndo abaixo de 2h10, ou 2h30 para as mulheres, desde 2019.

Para o primeiro grupo, basta apenas manter o status atual, seja referendando os nomes dos vencedores das seletivas nacionais ou os melhores ranqueados em data-limite no primeiro semestre de 2021, mesclado com vaga direta dada a atletas vencedores de maratona em Campeonato Mundial (lembram do inferno em Doha 2019?), como é o caso de Quênia e outros países felizardos do nordeste africano.

Tarefa quase divertida, visto que são nações com um número impressionante de atletas detentores de índice olímpico para a prova. A título de curiosidade, façamos um exercício (calma não será necessário ganhar as ruas, pois é um exercício mental, pode descalçar os tênis): tendo por base os índices oficiais da IAAF para obtenção de vaga para a maratona masculina, que é de 2:11:30, fui verificar quantos etíopes (poderiam muito bem ser quenianos, seriam quase os mesmos números) têm tempos em maratonas, desde janeiro de 2019, inferiores ao índice mínimo exigido pela IAAF.

Depois de peneirar os 172 com marcas dentro daquela marca, para retirar da minha lista os que, em 2020, também correram abaixo da marca da IAAF, cheguei ao dado assustador de 146 etíopes, que poderiam ocupar todas as vagas da lista de largada da maratona olímpica!

Por outro lado, aqui na nossa terrinha, apenas um maratonista conseguiu, em 2019, na rapidíssima Maratona de Londres, o tempo de 2:11:09; este herói (até fevereiro) solitário foi Daniel Chaves, que ocupou no ano passado a tricentésima trigésima oitava colocação do ranking mundial. Mas, não mais que de repente, um quase quarentão rouba a cena no atletismo nacional: Paulo de Almeida Paula, que já defendeu o país em maratonas olímpicas e mundiais, e diga-se de passagem sempre com bravura, tira um coelho da cartola na fria Sevilha, enquanto o carnaval fervia por nossas plagas, e faz um verdadeiro desfile pelas ruas da Andaluzia, cravando 2:10:08!

Aumentamos em 100% a nossa participação em Tóquio! Mas e se outros atletas, por conta do adiamento olímpico, conseguirem marcas também inferiores a 2:11:30? Vida dura de nossos dois únicos maratonistas com índice. Só que, comparada à vida dos etíopes, onde mais de 140 atletas já correram em menos (em diversos casos, muiiiito menos) tempo que o índice da IAAF, nossos dois fundistas são uns felizardos, podendo dormir tranquilos suas noites de descanso, e até sonhar com as avenidas e ruas de Sapporo, cidade onde a maratona está prevista para acontecer.

O importante neste momento é que os atletas, deste e de outros esportes, terão a oportunidade de, primeiro, se dedicar a lutar junto dos seus, pela sobrevivência e, com um pouco de criatividade, manter uma rotina de exercícios de manutenção. Não é hora de treinar forte demais, nem longo demais, pois as competições e os Jogos de Tóquio ainda estão distantes para isso. Seus corpos precisam estar descansados, seus sistemas imunológicos fortalecidos!

As grandes maratonas do primeiro semestre migraram para o fim do ano. Como diriam os personagens principais de Casablanca: E Paris? Nós sempre teremos Paris. Só que este ano Paris acontece mais tarde, como uma colheita tardia de um bom Bordeaux Superieur; será uma prova especial, encorpada e de excelente paladar e bouquet.

E Londres? Esperávamos ansiosos sua chegada. O Grande Duelo se anunciava espetacular. Kipchoge e Bekele, estes amigos duelistas, no auge de suas formas. Um, detentor do recorde mundial, com currículo espetacular de vitórias e marcas, e tendo o bônus de ter sido o primeiro humano a quebrar a barreira das 2 horas, numa distância equivalente à maratona. Que se registre a linha anterior, e não se caia mais no crasso erro e hediondo pecado de dizer que Kipchoge foi o primeiro a correr a maratona para baixo de 2 horas!!! Calma lá, que chego já ao ponto que me interessa.

Vamos apresentar o outro duelista. Bekele, enfim, desvenda o mistério da maratona. Depois de várias tentativas desde 2015, no ano passado em Berlim (ah, sempre Berlim) Kenenisa voa Tiergarten adentro, passeia veloz pelo oriente e ocidente da capital alemã. No quilômetro 35, ele alça voo rumo ao Portão de Brandemburgo, cruza a linha de chegada, incrédulo, pois correu e venceu como nunca, mas o tempo, este frio tirano, não foi vencido. Bekele marca 2:01:41, a exatos 2 segundos do recorde mundial de Kipchoge, quebrado nesta mesma Berlim um ano antes.

Ah, os Deuses que desceram do monte Olimpo para a planície de Maratona, devem estar se divertindo. Eles não perdem, como nós, simples mortais, por esperar o dia 4 de outubro. Sim, o desafio dos Deuses da planície de Maratona marcaram um encontro em Londres neste dia. O dia em que a Terra deve parar para olhar e se deliciar. Os duelistas se encontram e, se os deuses presentes concordarem e o público assim fizer por merecer, quebram não só o recorde dos 42.195 m, como também correm, enfim, pela primeira vez, uma maratona de verdade para sub 2 horas!

FICÇÃO CIENTÍFICA

Corria (gosto de começar assim um promissor texto…) o longínquo ano de 1974, na cosmopolita e praiana cidade do Rio de Janeiro. Era um comecinho de verão, ali pelos fins de outubro (como era de costume, o verão nos pegar de surpresa nesta precoce época). Eu e alguns amigos, depois de uma deliciosa praia sem fim, como eram todas as praias dos meus 15 anos, partimos em bando rumo ao cinema, em Copacabana. Era uma estreia de ficção científica, e isso já valia o absurdamente caro ingresso, duros boas-vidas que éramos.

O título do filme era instigante para nossas efervescentes imaginações: No mundo de 2020. Era uma descrição aterradora; Charlton Heston teria que ser mais Heston do que nunca nesta empreitada. Um mundo sombrio, varrido por misérias, fome, poluição e … pandemias. Sim, o ano era 2020 e uma das grandes mazelas da época era uma tal de pandemia, aliás no plural, pandemias. Haja Charlton Heston.

E ele consegue virar o jogo, ao descobrir que o grande líder que unificou a Terrinha era um misto de Big Brother (na linha daquele do George Orwell, na belíssima ficção 1984), misturado com qualquer déspota genocida furioso que lhe venha à mente agora. E ele estava até conseguindo acabar com a fome no planeta não tão azul, de uma forma surreal: a matéria prima mais abundante na época eram os corpos que jaziam aos montes pelas ruas, praças e parques. E o cara usava esta matéria prima para produzir uma barra comestível verde, chamada Soylent Green.

Bem, o boa praça Heston botou pra quebrar até conseguir restituir a ordem no circo. Voou gente viva e gente morta para todos os lados, as letrinhas desceram rápido, as luzes acenderam. Eu e meus camaradas nos entreolhamos por uns longos 30 segundos e, democraticamente decidimos: bora pra casa que amanhã vai ter onda, e esse negócio que a gente viu aí é f-i-c-ç-ã-o!!! Saudades dos meus amigos!

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