Notícias admin 10 de março de 2015 (0) (87)

Uma corrida organizada para ser pequena

Uma prova pequena que pretende ser pequena – organizadamente, pequena. Assim eu definiria a River Run Half Marathon, uma modesta meia-maratona perdida no vasto calendário de grandes eventos de corrida nos Estados Unidos.
Fui parar nessa prova por mera coincidência. Participo anualmente do Content Marketing World, evento mundial sobre minha atividade profissional. Quando recebi a confirmação de que o congresso começaria em Cleveland, no dia 9 de setembro, uma segunda-feira, segui o protocolo que todo corredor sempre faz. Fui buscar provas pelas redondezas, sendo brindado por essa meia na véspera do evento.
No ato da inscrição, a primeira surpresa: era preciso ter a identidade de cidadão norte-americano para preencher o formulário de inscrição online. E agora? Decidi mandar um e-mail à organização. Em poucas horas, recebi retorno da Hermes Events & Sports. Assinada por um rapaz chamado Neal Neroni, a resposta expressava certa surpresa. "Um estrangeiro em nossa prova é algo raríssimo, talvez inédito", disse ele, antes de resolver o problema de documentação em uma única troca de e-mail.
Programei-me para retirar o kit alguns dias antes da prova. Percebi naquele momento a primeira grande diferença entre a mentalidade de quem organiza eventos, ainda que modestos, em território norte-americano. A preocupação maior é servir os corredores. Por isso, a entrega de kit começa na quarta-feira, em uma loja de esportes apoiadora da corrida. A organização forra mesas e espalha os kits, de forma simples, mas ordenada. O corredor chega, informa o nome e retira uma sacola plástica contendo camisa e número de peito. Nada além do necessário, de forma simples, fácil e desburocratizada.
A estrutura fica armada ali das 15h às 19h, horário em que a maioria das pessoas está no trajeto do trabalho para casa – o expediente em Ohio termina às 17h. No final do dia, os organizadores desmontam a estrutura, colocam as tralhas em uma van e no dia seguinte rearmam o balcão de atendimento em outro bairro. Fazem isso em vários cantos da cidade até a véspera da prova.

ESTRUTURA ENXUTA. A largada se deu no Wallace Lake, no bairro de Berea, dentro de um parque em que qualquer desavisado se perderia mesmo com um GPS instalado. A solução para ninguém se perder no labirinto verde novamente privilegiou o corredor. Do estacionamento de uma escola próxima à entrada do parque, partiram cinco ônibus para a largada. Estacionei meu carro alugado antes do amanhecer. Os motoristas cumpriram rigorosamente o planejado e começaram a curta viagem às 6h45. Nem meio minuto de atraso.
Certas características de corredores são universais. Quando você se senta ao lado de um colega de asfalto, é impossível não sair um bate-papo. Minha vizinha de poltrona era Carol Currey, uma senhora que se aventurava em sua segunda meia. Ela ficou surpresa quando contei como funcionam as assessorias esportivas no Brasil, algo muito diferente dos clubes de corrida dos Estados Unidos. E eu fiquei surpreso ao saber que as planilhas online são a fonte de informação técnica da maioria dos americanos.
Em 20 minutos, o ônibus chegou a um estacionamento vasto, em uma parte alta e arborizada do parque, com uma pequena e eficiente estrutura para acolher os 1.300 corredores. A Sra. Carol me indicou os organizadores da prova, desejou boa sorte e se despediu. Fui me apresentar aos staffs. Neal Neroni queria conhecer o "sujeito que viera de tão longe" para uma prova rotineira.

TAXA DA PREFEITURA. Na rápida conversa, Neal me contou que, assim como no Brasil, organizadoras de prova dos Estados Unidos são obrigadas a pagar taxas para a prefeitura se quiserem fechar ruas da cidade. No caso daquela prova, num parque pouco movimentado, a Hermes Events & Sports desembolsou US$ 3 mil. Se fosse no centro da cidade, as taxas poderiam chegar a US$ 20 mil. Uma informação que me causou certo choque, pois sempre pensei que esse tipo de pagamento fosse invenção tupiniquim.
A River Run Half Marathon sustenta-se apenas com o dinheiro recolhido com inscrições, que custam entre US$ 45 e US$ 55. E a empresa tem fins lucrativos. Não recebe dinheiro de patrocinador. A lógica é de low-fare, low-cost. Ou seja, preço baixo, custo baixo, e entrega de qualidade.
Os efeitos desse tipo de gestão se expressam na largada. A estrutura é enxuta, mas funciona com perfeição. Não há, por exemplo, pórtico de largada aos moldes das provas de 10 km pelo Brasil, que, por sua vez, se inspiram nas grandes maratonas pelo mundo. Um tapete de cronometragem, com cones nas extremidades, indica o ponto de partida. Uma parafernália simples, moderna e barata.
A três minutos do horário previsto para o início, um dos staffs começou a soprar um trompete. As conversas cessaram imediatamente e o corredor à minha frente retirou os fones do ouvido. Além do som do hino americano, só se ouviam os grilos cantando na manhã acinzentada e úmida, com temperatura na casa dos 19°C.
A largada foi dada ao som de uma buzina. O percurso, que segue o leito de um pequeno e raso rio, é quase todo em leve descida. São quase 60 metros de desnível entre a largada e a chegada.

VOLUNTÁRIOS. Carros de polícia fechavam os poucos cruzamentos da estrada. Quando passavam pelos policiais, diversos corredores agradeciam a eles. Especialmente nesses períodos de manifestações tomando as ruas do Brasil, é impossível para um brasileiro ignorar uma troca de cordialidades entre cidadãos e policiais.
Pouco depois de uma milha, veio o primeiro posto de hidratação. Todos os staffs são voluntários. Fiquei me perguntando por que não existe essa mesma prática em nossas provas. Meu pensamento foi interrompido ao avistar uma criança entre os staffs. Era uma criança especial, com síndrome de Down, que ficava em polvorosa cada vez que um corredor escolhia pegar o copo de suas mãos.
Os postos de hidratação eram montados perto das placas de milhas. Em todos eles, havia um staff que informava, em voz alta, o tempo oficial da prova a cada 15 segundos. Uma forma simples, e até rústica, mas útil, de informar o tempo a quem por alguma razão estivesse sem cronômetro.
Cansado pela correria da viagem dos dias anteriores, e ciente de que estava fora da minha melhor forma, decidi correr só para curtir a prova. Cruzei o tapete de chegada em 1:50:37. Ainda fui saudado pelo locutor, que celebrava cada chegada anunciando o nome e o estado de origem. No meu caso, país de origem.

HONESTIDADE. Poucos metros depois, três tendas abrigavam pães, frutas, água e isotônico. E uma mesa expunha as medalhas. Um único staff se encarregava de reabastecer os mantimentos. Não era necessário ter staffs nem sequer para entregar medalhas. Afinal, qual corredor teria a estúpida ideia de levar para casa mais de uma medalha?
Fiquei pensando se a lógica de confiar na honestidade do público funcionaria numa prova brasileira. Só pude pensar numa resposta quando percebi que não havia – ou não vi – nenhum pipoca naquele dia.
Os organizadores brasileiros pecam ao inflar a estrutura porque querem fazer qualquer pequena prova se parecer com um grande evento. Mas, em grande parte, a culpa é também dos corredores, que obrigam os organizadores a incrementar as estruturas para se proteger de comportamentos malandros e oportunistas.
Assim é uma prova rotineira nos Estados Unidos: sem pórtico de largada nem chegada, sem show de luzes nem massagem pós-prova. Mas com tudo o que um corredor precisa e cuidados a que nós, brasileiros, não estamos acostumados. Ela não tenta ser o protótipo de uma major; quer entregar qualidade, e isso basta. Mais informações sobre a prova em www.hermescleveland.com/roadracing/riverrun/.

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