20 de setembro de 2024

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Os 12 trabalhos de Vanderlei

Vida – Jonas Furtado – JANEIRO 2009

Os 12 trabalhos de Vanderlei

A incrível trajetória do mais famoso maratonista brasileiro, das lavouras de algodão ao olimpo dos atletas.

Vanderlei Cordeiro de Lima decidiu: não vai mais zerar o cronômetro. Um dos maiores nomes do atletismo brasileiro em todos os tempos, ele pára de correr em busca de resultados para se transformar em um porta-voz do esporte e de seus patrocinadores. O bota-fora como profissional estava agendado para o último dia de 2008, aproximadamente dez dias após o fechamento desta edição da Contra-Relógio. O resultado da São Silvestre, na verdade, pouco importa. Ex-bóia fria, caçula dos sete filhos de um humilde casal de nordestinos que emigrou para o noroeste do Paraná, na década de 50, em busca de trabalho no campo, Vanderlei nunca precisou ganhar corridas para ser um vencedor. Foi com uma medalha de bronze que o maratonista protagonizou a mais célebre façanha do país em uma Olimpíada.

“Se tivesse sentado no meio-fio e desistido, reclamando por justiça, minha história seria a de um fracassado. Aquele cara foi só mais um obstáculo para superar, como muitos que apareceram em toda a minha vida”, afirma o corredor de 39 anos sobre Cornelius Horan, o irlandês maluco que obstruiu seu caminho rumo ao ouro na maratona em Atenas-04. Há satisfação no olhar e orgulho nas palavras. Toda a trajetória do corredor foi marcada por desafios. E, como nos 12 trabalhos de Hércules (filho bastardo do deus Zeus com uma mortal) – que, para a mitologia grega, simbolizam uma jornada espiritual e física repleta de tarefas que só podem ser cumpridas por um autêntico herói em seu máximo de esforço e persistência – ele deixou cada um deles para trás rumo ao olimpo dos atletas.

Eis os 12 trabalhos de Vanderlei.

1º – CONSEGUIR UM TÊNIS PARA A PRIMEIRA CORRIDA

A infância de Vanderlei foi muito humilde. Aos 8 anos ele já ajudava os pais na roça.“Catava algodão, colhia café, plantava milho, roçava o pasto, carpia a lavoura”, lembra. O sustento da família vinha das diárias recebidas como bóias-frias. Às vezes, o jantar que dona Aurora preparava dependia da pescaria de seu José Cordeiro de Lima com os três filhos homens. Voltar do rio com as mãos vazias era sentenciar-se a ir para a cama com fome. Dos 5 aos 15 anos, morou em Tapira, a 80 km da Cruzeiro do Oeste onde nasceu. Nesse tempo, sem a menor pretensão, começou a acumular quilometragem nas passadas, correndo os dez, doze quilômetros do caminho do campo para casa.

Até que o convite para participar da prova de atletismo dos jogos escolares despertou o corredor em Vanderlei. Ele precisava conseguir um tênis para participar de sua primeira corrida. Fitando os pés dos colegas de classe, deixou de lado a vergonha e resolveu pedir um par emprestado. “Arrumei um tênis de futebol de salão, já meio “mostrando a língua” no bico. Era tudo o que eu precisava.” Vanderlei acabou a competição em 24º lugar – os vinte primeiros receberam uma medalha. Em vez de frustrar-se, imaginou como seria bom ter conquistado uma.

CONVENCER OS PAIS A DEIXÁ-LO TENTAR SER UM ATLETA

Vanderlei começou a sonhar com medalhas. Ganhou um tênis novo do diretor da escola e virou destaque nas competições regionais. Mas ainda não tinha a dimensão correta de onde o esporte poderia levá-lo. “Não sabia ao certo o que era uma Olimpíada. Eu ouvia falar, mas não fazia parte do meu mundo. Até porque nem televisão em casa a gente tinha. Acompanhávamos as notícias pelo rádio”, lembra. Seu José e d. Aurora não viram com bons olhos quando Vanderlei passou a trocar os plantios pelas pistas com mais freqüência. Tinham medo de que ele abandonasse o que consideravam um trabalho certo na roça por uma aventura em algo que nem viam como uma profissão. A seqüência de triunfos e os conselhos do professor de Educação Física ajudaram a convencer os pais a deixá-lo tentar ser um atleta.

3º RECEBER O PRIMEIRO SALÁRIO

Com o aval familiar, Vanderlei mudou-se para Maringá em 1987. Morava de favor na casa de conhecidos e recebeu seu primeiro salário relacionado ao esporte. Ele arrumou emprego como zelador do ginásio da Associação Atlética Ingá, clube que representava nas pistas. “A primeira coisa que comprei foi um aparelho de som 3 em 1, para me sentir menos sozinho.” A essa altura, era campeão e recordista paranaense. “Já tinha ídolos, como o Joaquim Cruz, e pensava em viver das corridas, ter uma bicicleta, comprar uma casa, um dia.”

4º VIRAR ATLETA PROFISSIONAL

Na época, dedicar-se exclusivamente ao atletismo era uma possibilidade restrita a uma pequena elite de corredores. No final de 87, ainda juvenil, Vanderlei recebeu um convite da Eletropaulo para integrar a equipe que a empresa patrocinava em São Paulo. Não pensou duas vezes. “Foi a partir daí que passei a ganhar a vida como corredor profissional. Recebia por aquilo que fazia nas provas.”

VENCER A 1ª MARATONA

A carreira de Vanderlei deu uma guinada em 1994. Após uma temporada de treinos e corridas na França, ele foi convidado para ser coelho da maratona de Reims. O acordo valia até o vigésimo quilômetro da prova – após isso, um novo coelho assumiria o posto pelos próximos dez quilômetros. “Passei pelos 20 km muito bem e resolvi tocar até que o próximo coelho parasse também”, conta. “Cheguei nos 30 e procurei, mas nem sinal do cara. Percebi que tinha aberto uma boa distância de todo mundo. Aquilo me motivou a continuar enquanto agüentasse”, continua Vanderlei, que nunca completara a distância antes. O brasileiro venceu a prova de estréia com a ótima marca de 2:11:06. “Quem não gostou muito foi o segundo colocado, que era o favorito”, diverte-se. “Mas era um contrato boca-a-boca, e ninguém me disse que eu não podia ganhar.”

6º ALCANÇAR A ESTABILIDADE FINANCEIRA

A vitória na Maratona de Tóquio de 1996 abriu as portas do mercado japonês para Vanderlei. Desde então, já voltou ao Japão uma dezena de vezes – sua primeira viagem para a Terra do Sol Nascente foi em 1988; a última, no ano passado. Nunca aprendeu a falar a língua, mas virou um ídolo no país, onde é bem tratado e conseguiu bons resultados. “Sempre optei por correr lá porque eram as melhores oportunidades financeiras. Foi onde consegui uma estabilidade, fiz um pé de meia. Essa propriedade aqui é fruto dessas corridas”, afirma, enquanto aponta para as terras do sítio que mantém na zona rural de Cruzeiro do Oeste. “Aqui é um pedacinho do Japão.”

7º CONQUISTAR A MEDALHA OLÍMPICA

Vanderlei já era um atleta de prestígio internacional quando chegou à Grécia para os Jogos de Atenas-04. Mas seu nome não aparecia em nenhuma lista de favoritos ao pódio. O pico de treinamento aconteceu em Paipa, na Colômbia, onde por 60 dias preparou corpo e mente para realizar o grande sonho de conquistar uma medalha olímpica. “Eu me imaginava entrando no estádio lotado entre os três primeiros, mentalizava a cena o tempo todo. Fico arrepiado de lembrar.”. Surpreendendo a todos, Vanderlei liderava a prova no 36º km quando foi agarrado por Cornelius Horan, um ex-padre irlandês que invadiu a prova para atacá-lo. “Foi tudo muito rápido, não pensei em nada, só em como sair daquela situação. Tive um bloqueio nas pernas, que travaram”, conta. Terceiro colocado, ele garante que nunca se sentiu frustrado pela perda do ouro, nem beneficiado pela repercussão do incidente – que acabou ofuscando a vitória do italiano Stefano Baldini. O COI condecorou o brasileiro com a medalha de Pierre de Coubertin, honraria olímpica máxima, pela inspiradora demonstração de espírito esportivo

“Não sei se ganharia”, admite. “Mas pelo menos teria a chance de tentar. Mesmo depois de todo o acontecido, demoraram para me ultrapassar”, continua, abrindo espaço para um pequeno desabafo. “As pessoas confundem, dizem que sou conhecido porque o cara me agarrou. Mas a história do Vanderlei não começou nem terminou em Atenas.”

Mais de quatro anos depois, Vanderlei diz que não gostaria de encontrar Horan pessoalmente. Mas, e se encontrasse?   “Não perguntaria nada. O meu silêncio diria tudo.”

8º VOLTAR PARA A FAMÍLIA

A façanha na Grécia acabou repercutindo na vida pessoal. Na volta ao Brasil, já como herói nacional, ele se reaproximou de Cleonice, mãe de suas filhas, Any Caroline, 17 anos, e Thayna, 14. Os dois casaram-se em 1990 e estavam separados há sete anos. Depois de reatar o matrimônio, hoje Vanderlei vive com a família em Maringá. “Minhas filhas são muito apegadas a mim, sempre cobravam para que voltássemos a morar junto. Mas minha esposa e eu sempre mantivemos um relacionamento, mesmo separados”, realça. “Casal, sabe como é, né? Briga num dia, no outro ajunta”, diverte-se.

9º DECIDIR PELA APOSENTADORIA

Desde a preparação para o Pan-Americano do Rio-07, Vanderlei vem lutando contra contusões. Primeiro foi um micro-rompimento do músculo posterior. Depois, uma pubalgia, que o afastou da disputa por uma vaga na Olimpíada de Pequim-08.  A demora cada vez maior na recuperação alertou para a proximidade do final da carreira. Inseguro quanto a decidir pela aposentadoria, varou noites sem dormir. “Me vi em um beco sem saída e pensava no pior:  se não puder mais correr, o que será de mim? O que vou fazer para sobreviver”, revela. A amargura persistiu até a primeira conversa em que abordou o assunto com o técnico, Ricardo D’Angelo. “Ele me tranqüilizou, disse que o clube (BM&F) não me deixaria na mão. Fomos conversar com os patrocinadores.”

10º CUIDAR DO SÍTIO

Quando os pensamentos negativos em relação ao futuro tomavam conta do humor, Vanderlei fugia para o mato. “Ia pescar para arejar as idéias.” Também cuidava das tarefas do sítio, andava a cavalo e alimentava as galinhas com o milho que planta na pequena área cultivada. Foi nos arredores da propriedade, por estradas de terra e canaviais, que ele correu para entrar em forma para a São Silvestre. “Tenho orgulho de ser caipira, das minhas origens. Quero passar cada vez mais tempo aqui”.

11º CORRER A SÃO SILVESTRE

Vanderlei retomou os treinos um mês antes de sua última corrida como profissional. Duas semanas antes, estava correndo 8 km por dia. “Ainda sinto muitas dores musculares, pelo tempo que fiquei parado”. Ele sabe que encerrará a carreira sem uma vitória na São Silvestre. Ainda assim, guarda um lugar especial para a prova em suas lembranças. “Todos os meus pódios nela foram importantes. Em 1992, ganhei visibilidade nacional com o quarto lugar”, aponta. E conforma-se. “A verdade é que nunca fiz um treino especifico para ela. Não tenho como me cobrar.”

12º DIVULGAR O ESPORTE

A partir de 1º de janeiro, Vanderlei passará a justificar os salários dos patrocinadores com sua imagem e não mais com seus tempos. Os acordos com a Nike e a BM&F prevêem a participação em eventos promocionais, palestras e competições esportivas. Também estará à disposição do COB e CBAt para viajar pelo Brasil para divulgar o atletismo. E ele quer mais tempo para as pescarias. “Minha rotina era muito puxada. Se o treinador disser que agora eu posso folgar todo final de semana, vou acatar”, sugere, aos risos.  “Vou continuar colocando o esporte em evidência e usufruir um pouco mais da vida daqui pra frente”, planeja, antes de resumir em uma frase o merecido descanso. “Quero correr sem pensar no amanhã.”

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