Sem categoria admin 4 de outubro de 2010 (0) (161)

Minhas duas Comrades, descendo e subindo

A iniciativa encontrou forte resistência, principalmente pela distância, que era considerada exagerada, mas que, diante do argumento (Se um cidadão comum, escolhido nas ruas aleatoriamente pelo exército, recebe um rifle e uma mochila com 25 kg, e é enviado para marchar por toda África e lutar por nosso país, certamente um atleta treinado estará apto a vencer a distância) e da perseverança de Vic, foi tomando forma e finalmente em 1921, com um total de 34 participantes, aconteceu a primeira edição da Comrades. Somente durante a Segunda Guerra Mundial, de 1941 a 1945, a corrida não foi realizada.

Inicialmente a Comrades tinha como data o dia 24 de maio, Dia do Império, tendo sido remanejada posteriormente para o dia 16 de junho, Dia da Juventude, feriado nacional dedicado à memória dos estudantes de Soweto, mortos pelas forças de segurança, durante manifestação estudantil contra reformas no ensino, em 16 de junho de 1976, que representa um marco na luta contra a segregação racial. A partir de 2007 a prova será realizada no primeiro domingo após 16 de junho, portanto, dia 17, para causar menos problemas ao trânsito e já com vistas à Copa do Mundo de Futebol, em 2010.

Nos anos ímpares a largada tem lugar na Cidade de Pietermaritzburg, situada no interior, a 650 m de altitude, e a chegada em Durban, cidade litorânea, ao nível do mar. Nos anos pares o sentido da prova é invertido. Dada esta característica, a prova é identificada como Down Run nos anos ímpares e Up Run nos anos pares.

Cinco grandes subidas

O percurso, que é realizado por estradas pavimentadas, é extremamente difícil, com inúmeras subidas e descidas, independentemente de ser Up ou Down Run, com destaque especial para as Big Five, uma referência ao termo usado para identificar os cinco maiores animais do continente africano (Leão, Guepardo, Búfalo, Rinoceronte e Elefante), que são as cinco grandes subidas encontradas no percurso, sendo elas Cowies Hill, Fields Hill, Bothas Hill, Ichanga e Polly Shorts (ver gráfico nas páginas 56 e 57)

Além das Big Five, outros pontos notáveis são a Wall of Honor, que é um muro de contenção onde estão registrados nomes de atletas que concluíram a Comrades em edições passadas (A inclusão do nome é feita através da aquisição do bloco e da flâmula junto a organização) e a Arthur's Seat, uma escavação na rocha, onde, segundo contam os corredores locais, o lendário Arthur Newton, já falecido, fica observando o desenrolar a prova. Arthur Newton foi primeiro atleta a vencer a Comrades em anos subsequentes nos anos 20. Também diz a lenda que aqueles que, ao passarem pelo local, depositarem uma flor ou cumprimentarem o antigo campeão com um "Good Morning Sir"  terão uma ótima segunda metade da prova.     

Para participar da prova o atleta deve ter completado uma maratona entre 16/06/2006 e 07/05/2007. A organização do evento está à cargo da CMA – Comrades Marathon Association, apresentando um excelente padrão, propicia total apoio a todos os participantes, em especial os atletas estrangeiros, que contam com um staff exclusivo, comandado pela eficiente Mbali Madondo, incluindo uma estrutura na chegada para acomodar  estes participantes e seus acompanhantes. Paralelo ao evento ocorre a feira da maratona com a presença das grandes marcas de produtos esportivos, além de clínicas com profissionais altamente qualificados abordando temas relacionados com a prova. 

Passeios prévios pelo percurso

Durante a semana que antecede a corrida, são disponibilizados ônibus com guias, todos corredores experientes, para o reconhecimento do percurso, visando apresentar àqueles que estão participando pela primeira vez da prova as dificuldades a serem vencidas. O passeio também inclui uma visita ao Museu da Comrades, em Pietermaritzburg, que apresenta, além de toda história da prova, uma incrível maquete do percurso.

A organização coloca 50 postos de abastecimento, que oferecem água, isotônico, frutas, biscoitos etc, além de 8 estações com massagistas à disposição dos participantes, distribuídos ao longo do percurso. A largada é às 5h:30 da manhã e os corredores são distribuídos por oito baias, classificados em função do tempo de qualificação obtido, sendo que para se largar na baia A é exigido tempo de maratona inferior a 3 horas.

A prova estabelece como tempo limite 12 horas e, além da premiação em dinheiro, oferece medalhas para aqueles que concluirem a prova dentro das 12 horas, distribuídas da seguinte forma:

Ouro: 1º ao 10º colocado
Ouro/Prata: 11º colocado até 5h59 (nova medalha a partir de 2007)
Prata: 6h até 7h29
Bill Rowan: 7h30 até 8h59
Bronze: 9h até 10h59
Vic Clapham: 11h até 11h59

A medalha Bill Rowan é uma homenagem ao vencedor da primeira edição da prova, com tempo 8h59. Além destas medalhas foi criada a partir de deste ano a medalha back-to-back, destinada aos corredores que completarem a prova em anos consecutivos. Os atletas que completam 10 ou mais Comrades conquistam o título de Green Number, e são reconhecidos pela cor dos seus números de peito. 

Treinamento no site 

A home page da Comrades (www.comrades.com) oferece desde informações básicas sobre inscrição até planilhas de treino e forum para que os corredores tirem suas dúvidas com o técnico oficial da prova; Don Oliver foi o técnico até 2006 e agora está no cargo o jovem Lindsey Parry, além de outros especialistas. Para aqueles que não contam com treinador, Lindsey e o experiente Don Oliver (meu preferido), com 19 Comrades completas, apresentam tres tipos de planilhas de treinos, que são divulgadas mensalmente, a partir de outubro, direcionadas para quem pretende correr em menos de 9h, entre 9h e 11h; e entre 11h  e 12h.

As demais dúvidas podem ser sanadas através do forum (Ask the Coach), onde, além do técnico, outros corredores compartilham suas experiências de treinamento, alimentação e tática de prova. Basicamente o treinamento, que cobre oito meses, é similar àqueles destinados a maratonas durante os primeiros cinco meses e meio, apenas realizado em ritmo mais lento. O período posterior, de dois meses e meio, é destinado aos treinos longos, realizados a cada duas semanas, com distâncias superiores a 45 km, chegando ao máximo de 65 km.

MELHOR NA SUBIDA QUE NA DESCIDA

Para aqueles que se sentiram atraídos pelo desafio lançado pela Contra-Relógio no mês passado, descrevo a seguir a minha experiência na prova, da qual participei nos anos de 2005 e 2006. Na realidade meu interesse pelas provas com distâncias superiores à da maratona surgiu quando li um artigo do maratonista Don Kardong (4º colocado na Maratona Olímpica de Montreal) publicado na Runner's World no início dos anos 90, que relatava sua experiência numa prova de 50 milhas (80 km) realizada em uma reserva florestal nos Estados Unidos. Alguns anos após, em 1994, a mesma revista publicou uma matéria sobre a surpreendente vitória de Alberto Salazar na Comrades, maratonista consagrado nos anos 80 e afastado das competições.

Passados alguns anos começaram a surgir relatos de brasileiros que haviam participado da Comrades, o que me fez buscar informações na internet. Inicialmente fiquei desapontado, pois todas as planilhas de treino apresentavam quilometragem elevada para os meus padrões, inclusive vários dias com duas sessões de treinos.

Em 2003, quando Don Oliver foi contratado para ser o novo técnico da Comrades,  com sua planilha de treinos apresentando volumes mais modestos, senti que tinha uma chance real de treinar adequadamente e participar da prova. Planejei então aguardar o próximo ano de Down Run, que seria 2005. Desta forma, usei 2004 para conseguir uma boa qualificação para a prova do ano seguinte, e corri a maratona de Chicago, no início de outubro, que tem um dos percursos mais rápidos do mundo. Minha intenção era largar na baia A, que exigia tempo de maratona inferior a 3 horas, o que acabei não conseguindo por míseros 2 minutos

Seguindo as planilhas

Iniciei a preparação para a Comrades em dezembro de 2004 e segui fielmente as orientações do site, exceto as tomadas de tempo semanais (Time Trials) de 8 km, que substitui por tiros de 1.000m e 1.600m corridos em ritmo de prova para 10 km. A grande diferença entre o programa para a Comrades e os de maratona era o ritmo adotado, no meu caso, de aproximadamente 40 seg/km mais lento que os utilizados para treinamentos voltados para maratona. Completei sem maiores problemas o período de treinos o que, somado à minha característica de correr de forma conservadora as maratonas, relaxando na primeira metade e acelerando na segunda meia, me encheu de confiança para o grande desafio.

Já na África, quando fiz o reconhecimento do percurso, percebi que, apesar de ser uma Down Run, as subidas eram inúmeras e difíceis, mesmo para quem realizou os treinos longos no terreno acidentado da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro. Adotei como estratégia correr 8 km e caminhar por 2 minutos durante toda prova, que foi extraída de artigo escrito pelo técnico sul-africano Norrie Williamson, que afirmava que este artifício retardaria o surgimento das fortes dores, que surgem principalmente nos quadríceps, nos 25 km finais da Comrades.

Corri tranqüilamente até os 30 km para o final (na Comrades as placas de quilometragem aparecem de forma decrescente), quando as dores surgiram intensa e definitivamente, obrigando a trechos de caminhada mais longos do que os previstos. Sem outra opção, fui me arrastando até a linha de chegada onde concluí em 9h10 medalha de bronze, dez minutos acima do tempo necessário para a medalha Bill Rowan, que era tida como certa. Todas as fórmulas e tabelas que consultei antes da prova, baseadas em tempos recentes de maratona e quilometragem total percorrida entre janeiro e maio, indicavam um tempo provável entre 7h50 e 8h30, o que explica minha profunda decepção com o tempo obtido.

Fazer duas, para fechar o ciclo

Os veteranos de Comrades dizem que quem corre pela primeira vez só fez metade do caminho, devendo correr a prova em sentido contrário para finalizar seu ciclo. Porém, durante os estágios finais e após a prova eu estava convicto que nunca mais participaria daquela tortura. Voltando à terrinha e conversando com alguns amigos consegumos identificar algumas falhas na minha alimentação durante a prova e, também, na estratégia adotada. Em suma, estava tendo início a minha segunda aventura sul-africana.

Iniciei então o planejamento para o próximo ano e o primeiro obstáculo a ser superado era a obtenção de um tempo de qualificação que me levasse a largar nas baias C ou D, que exigem tempos em maratonas inferiores a 3h20 e 3h40 respectivamente. Pelos meus cálculos a única prova que aconteceria dentro de um prazo razoável seria Curitiba, osso duro de roer, mas, para quem almeja correr a Comrades, não pode representar ameaça. No início de novembro participei da difícil maratona de Curitiba e obtive a minha qualificação, em 3h08, para a baia B da Comrades 2006.

Como preparação não alterei grande coisa do treino do ano anterior, e cumpri as etapas dentro do planejado. As maiores modificações ocorreram na estratégia de prova, onde resolvi tentar correr todo o percurso e levar em um cinto os alimentos sólidos (barras e gel) que fosse consumir durante a prova. As alterações surtiram o efeito desejado e, apesar de ter caminhado durante alguns minutos na última subida, a Polly Shorts, distante 10 km da chegada, fechei a prova em 8h30. Uma vez mais eu decidi, em algum ponto dos últimos 15 km, que esta seria minha última participação na Comrades, visto que sob todos os aspectos havia terminado o ciclo.

Após a minha chegada, sorvendo aquela cerveja gelada oferecida gentilmente aos corredores internacionais pela organização, rodeado por outros conterrâneos/fanáticos (Paulo Renato – 5 Comrades – provavelmente se tornará o primeiro Green Number brasileiro, André Arruda (4 Comrades), os estreantes Ana Maria, Ana Márcia, Ely Behar, Ives Muller, Nilton Ferreira, Wagner Ricca e Wilson Bomfim),  fui informado por minha esposa que ela iria, em futuro próximo, correr a prova, o que certamente me obrigará a uma nova participação.

Alexandre Almeida é assinante do Rio de Janeiro

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