20 de setembro de 2024

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Notícias admin 10 de novembro de 2014 (0) (86)

Mulheres nas corridas: poucas aqui, muitas nos EUA

As mulheres ganham cada vez mais espaço na sociedade. Na população brasileira, já são maioria, com 50,6% segundo o último Censo do IBGE. Nos Estados Unidos, desde 2005, lideram as estatísticas de concluintes nas meias-maratonas, com 59% no último balanço, de 2011. Em números absolutos, 950 mil mulheres completaram uma prova de 21 km no ano retrasado em território americano. Nas maratonas, elas representam 41% dos finishers nos EUA e, na Disney, em janeiro, pela primeira vez em 20 anos, mais mulheres do que homens completaram os 42 km. Aqui no Brasil, porém, esses números são muito abaixo nas meias e principalmente nas maratonas. O que leva a essa diferença?
Quase 14 milhões de pessoas correram uma prova de rua nos Estados Unidos em 2011 e mais de 7,6 milhões, 54%, eram mulheres. Em 1990, elas representavam 25% e há 40 anos esse número era irrisório. A Contra-Relógio ouviu treinadores e corredoras, dentro e fora do país, para tentar explicar esse fenômeno que, apesar da supremacia feminina na população, não tem reflexo nas provas. Ou, quando tem, em ritmo bem mais lento.
Entre os fatores explicados, muitos estão interligados, mas basicamente referem-se ao crescimento da corrida, que começou mais tarde no Brasil, ao fenômeno da emancipação feminina, que chegou bem depois aqui também, à baixa procura das jovens nas aulas de educação física nas escolas, ao número muito pequeno de corredoras com menos de 25 anos e ao fator segurança, que atinge muito mais elas do que eles. Ou seja, não há uma causa isolada, mas uma união de fatores que levam a esse panorama.
"Para tentar entender esta diferença, voltei um pouco no tempo, nas aulas de Educação Física no Ensino Médio. Tive um professor que nos dava aula de corrida e poucas meninas aderiram. Eu era uma das únicas que gostavam e praticamente todos os meninos participavam", afirma Daniela Barcelos, de São Paulo. "Penso que o Brasil está caminhando para que um dia o número de mulheres corredoras supere o dos homens. Outro fator poderia ser a característica da modalidade, que talvez não atraia uma grande parte das mulheres, que preferem fazer atividade física em grupo e que, por uma questão cultural, não percebem que este esporte individual pode ser muito coletivo, principalmente agora com o crescimento do número de assessorias e equipes", diz Daniela.
O corredor Roberto Shigueo Suzuki mora em Miami e comentou que, na palestra do maratonista Bart Yasso na Expo da Maratona de Miami, ele comentou justamente o fato de que pela primeira vez no mundo numa maratona de grande porte, no caso a da Disney deste ano, foram registradas mais mulheres concluintes do que homens. Shigueo enumerou alguns fatores que podem explicar as diferenças da participação feminina nas corridas nos Estados Unidos, em comparação ao Brasil:
1- Movimento iniciou mais cedo: "Comecei a ler o livro da Kathrine Switzer, que foi definitivamente uma das pioneiras nas provas longas com sua participação na maratona de Boston de 1967. Ela inclusive esteve no Brasil quando era diretora esportiva da Nívea para incentivar a organização de provas em 1979 e 1980. Ou seja, a cultura disseminou-se antes por aqui, nos Estados Unidos."
2- Incentivo ao esporte nos colégios e faculdades: "Quem visita os EUA se dá conta de que a maioria das escolas conta com uma infraestrutura adequada para a prática esportiva, incluindo-se o atletismo. Os jovens que mostram potencial buscam uma oportunidade de receber uma bolsa de estudos para frequentar as universidades mais conceituadas e eventualmente se tornarem profissionais. Isso vale tanto para os homens como para as mulheres."
3- Assessoria x Associações: "Aqui nos Estados Unidos quase não há assessorias esportivas. Os corredores se reúnem em clubes ou associações que não têm fins lucrativos. Pelo contrário, é muito comum ver pessoas que correm com o objetivo de levantar fundos para uma causa humanitária e tenho a nítida impressão que as mulheres acabam se engajando com muito mais entusiasmo do que os homens. Também li um artigo em que uma mulher usou uma frase no mínimo curiosa: ‘Correr para mim é o Facebook com pernas'. Segundo ela, a corrida tem um cunho altamente social. Durante a corrida discutia animais de estimação, dietas, trabalho, estresse e outras coisas mais."
4- Oferta: "Nos Estados Unidos, existem mais de 1.200 meias-maratonas e oficialmente já estão registradas 623 maratonas para o ano de 2013. Sei da existência de várias meias destinadas exclusivamente ao público feminino, o que mostra o interesse e a atenção dada a este segmento de mercado."

QUESTÃO CULTURAL – Corredora e educadora física de Campinas, Gisele Campoli atribui a diferença e a baixa presença de mulheres nas provas mais longas à questão cultural. "As crianças e adolescentes brasileiros têm pouco acesso às modalidades esportivas em geral, e a maioria nunca teve contato com o atletismo. Por essa razão, tanto homens como mulheres só conhecerão a corrida se assim desejarem, depois de adultos. Acredito que 90% dos homens e mulheres que correm hoje, começaram depois dos 21 anos. Por que começam? Existem razões diversas. Muitos param de fumar e começam a correr ou começam a correr para parar de fumar, outros querem melhorar a qualidade de vida; mas quando pensamos em mulheres o principal objetivo é geralmente emagrecer para ficar em forma, ou então manter a forma atual. E para isso, não é necessário treinar para correr os tão árduos 42.195 m. Basta participar de provas de 5 km ou 10 km. Veja a quantidade enorme de mulheres em provas de revezamento. A participação de academias nessas provas também é imensa."
Gisele lembra que nos EUA é comum encontrar pistas de atletismo em bairros e escolas. "Por essa razão, desde cedo as crianças têm a oportunidade de vivenciar a modalidade. Isso gera um grande número de adultos americanos que se tornam corredores", explica. Ela cita um fator diferente também em relação ao crescimento feminino na Maratona da Disney. "Entendo que esse fenômeno se deve principalmente ao fato de a Disney povoar o imaginário feminino de forma mais contundente do que o masculino. Isso faz com que muitas mulheres sonhem correr passando pelos castelos e encontrando os principais personagens de sua infância. Acho bem difícil isso se repetir em outras maratonas."

PAÍS MULTIESPORTIVO – A corredora Claudia Dumont, de Belo Horizonte, lembra que nos Estados Unidos a força do esporte feminino, profissional e amador, está presente nas mais diversas modalidades e, assim, não seria diferente nas corridas de rua. "Eles priorizam muito os esportes desde os primeiros anos escolares. Nas universidades, os jogos universitários são conhecidos por revelar talentos. Dessa forma, as mulheres ‘crescem' envolvidas no esporte, aprendem a gostar dele e conhecem seus benefícios desde muito novas. No Brasil é muito diferente. O que temos de esporte nas escolas brasileiras é uma aula de Educação Física ‘para inglês ver', onde muitos dos alunos levam atestados para não participar. Uma minoria frequenta. Os esportes são praticados em clubes, que não são acessíveis a todos", diz.
Claudia lembra ainda que há uma parte do público feminino que tem medo de ficar com corpo feio pelo esporte. "Por exemplo, muitas mães tiram as meninas da natação para não ficarem com o ombro largo ou com o braço forte. Situação semelhante nos outros esportes, como ginástica olímpica. Muitas vezes os pais, por nunca terem praticado atividade física, não conseguem enxergar os benefícios do esporte. Quando entram na universidade, as cargas horárias tomam todo tempo dos estudantes. Não há nenhum tipo de incentivo ao esporte universitário no Brasil. Dessa maneira, as mulheres brasileiras não têm a cultura da prática do esporte", afirma a corredora mineira.
De acordo com Claudia, as mulheres estão conhecendo a corrida de rua por influência de amigas, que começaram a praticar, ganharam qualidade de vida e se "viciaram". "Mas ainda temos poucas mulheres correndo abaixo dos 25 anos de idade", diz. Para ela, a questão da segurança é outro fator, mas não diria determinante. "Aqui em Belo Horizonte corremos nas ruas, não temos parques. Sem policiamento algum. Eu já me acostumei e tento correr em ruas com prédios e porteiros, mas tem muita mulher que morre de medo. A falta de segurança influencia, mas não acho que seja fator decisivo."

O EXEMPLO DA CORPORE – Já para Giovana Kaupe, corredora e treinadora de Porto Alegre, da Pulsação Assessoria Esportiva, a segurança é determinante e acaba limitando a participação das mulheres no Brasil. "Ainda temos parques e ruas muito escuros para correr. Particularmente, aconselho as minhas alunas a evitar corridas noturnas e em lugares desertos. A corrida nos traz uma sensação tão boa que às vezes esquecemos nos de ter noção do perigo e da violência nas ruas", diz. Ela cita ainda que vivemos momentos totalmente opostos aos dos americanos, com centenas de provas atraindo multidões, tanto de participantes quanto de público. "Aqui os eventos são muito menores, ainda que tenham crescido em frequência e participantes a cada ano."
Giovana acredita que a participação das mulheres tende a aumentar muito nos próximos anos e que o mercado já entende isso, promovendo corridas, reportagens e vestuário, tudo voltado ao público feminino. "A corredora amadora participa de uma prova para testar seus limites (como os homens), mas também gosta de ser mimada, com kits e atrações especiais."
Tanto esse fator é importante que muitas corredoras ouvidas pela Contra-Relógio em São Paulo citam sempre o Espaço Mulher, criado pela Corpore em 2005, como algo pioneiro. E cobram que isso seja seguido pela maioria das provas, o que não ocorre. O projeto inicial do Espaço Mulher, além de guarda-volumes exclusivo para elas, previa banheiros, vestiários, massagens, espaço para alongamento/aquecimento, área para relaxamento e que ainda pode ser usado como um ponto de encontro.

TOP 20 NA ASICS – Uma das novidades para as mulheres em 2013 é a adoção da premiação TOP 20, com a medalha banhada a ouro, para as 20 primeiras amadoras nas quatro provas do circuito de meias-maratonas Golden Four Asics. Até o ano passado, havia o TOP 100, para os cem primeiros amadores, não importando o sexo. Poucas mulheres acabavam premiadas. Houve etapas em que nenhuma chegou na classificação. Assim, o TOP 100 fica exclusivo para os homens e o TOP 20, para as mulheres. É o mercado realmente pensando exclusivamente nelas.

FRASES
"A corredora amadora participa de uma prova para testar seus limites (como os homens), mas também gosta de ser mimada, com kits e atrações especiais."
Giovana Kaupe
Corredora e treinadora de Porto Alegre

"Nos Estados Unidos, as mulheres ‘crescem' envolvidas no esporte, aprendem a gostar dele e conhecem seus benefícios desde muito novas. No Brasil é muito diferente."
Claudia Dumont, corredora de Belo Horizonte

"As crianças e adolescentes brasileiros têm pouco acesso às modalidades esportivas em geral e a maioria nunca teve contato com o atletismo."
Gisele Campoli, orredora de Campinas

"Tive um professor que nos dava aula de corrida e poucas meninas aderiam. Eu era uma das únicas que gostavam e praticamente todos os meninos participavam."
Daniela Barcelos, corredora de São Paulo

"Quem visita os EUA se dá conta de que a maioria das escolas conta com uma infraestrutura adequada para a prática esportiva, incluindo-se o atletismo. Isso vale tanto para os homens como para as mulheres."
Roberto Shigueo Suzuki, corredor de Miami

Muito bate-papo nos longões
A treinadora e corredora Rosa Naimara Bossle, de Curitiba, diz que em sua assessoria, a Maxxyma, há um grupo só feminino, e o número de mulheres que correm os 21 km é levemente superior ao dos homens. "Acredito que a mulher crie mais identidade com grupos do que os homens; elas estão sempre marcando treinos juntas e escolhem provas que as amigas possam participar também", afirma.
De acordo com Naimara, muitas vezes ela precisa prescrever treinos iguais (mesmo com condição física diferente) para que elas treinem juntas. "Se isso não é possível, elas marcam no mesmo horário para que uma anime a outra. Nos longos, então, é uma festa: intensidade de esforço baixa e muita conversa. Por isso, ir dos 10 km aos 21 km acaba sendo prazeroso, tanto pela conquista pessoal quanto pelos exercícios, ao contrário de tentar correr os 5 km ou os 10 km mais fortes."
Ela explica que na questão da maratona, vários pequenos fatores acabam afastando as brasileiras. "Treinar para uma maratona exige um comprometimento não só do atleta, mas também familiar. No Brasil ainda vivemos em uma sociedade machista, na qual a mulher exerce um papel múltiplo e é cobrada por isso não só pela sociedade, mas por ela mesma. Muitas não se permitem deixar a casa, o namorado/marido, filho de lado para se comprometer com os treinamentos. Com as mulheres que têm maridos/namorados corredores, a coisa fica mais fácil."
Segundo Naimara, o fator segurança é um empecilho grande no Brasil. "Curitiba é uma cidade relativamente tranquila, mas se tenho que fazer treinos mais longos durante a semana, preciso de companhia masculina ou um grupo de mulheres, pois correr às 5h30 ou às 22h sozinha é problemático."
Outro ponto importante quando pensamos em mulheres e corrida é o trabalho de fortalecimento muscular, destaca Naimara. "Para a maioria das mulheres, um bom trabalho de fortalecimento muscular é fundamental e quando elas veem as meninas que correm maratonas treinando 4-5 vezes na semana e indo para academia mais 2-3 vezes, elas falam ‘jamais farei isso, é muita coisa'; mas com o tempo, algumas acabam mordendo a língua (no bom sentido) e se adaptando ao volume maior de treinos."
Pensando nesse público feminino, a treinadora montou uma exclusiva planilha de meia-maratona para as leitoras da CR, que publicamos nesta matéria, com base no melhor tempo de 10 km.

A musculatura das americanas
O treinador Marcelo Holcberg vive e trabalha com corrida de rua em Miami desde 1997 e confessa que levou um susto com a quantidade de mulheres correndo, muitas vezes sozinhas, ao chegar aos Estados Unidos. Ele cita diversos fatores que contribuem para essa diferença e inclui a segurança como um ponto determinante. "Esse fenômeno está ligado à questão da emancipação feminina, que se deu bem antes aqui, se compararmos com o Brasil", diz.
Holcberg lembra muito bem quando estacionava o carro ao pé da ponte de Key Biscayne e sempre ao lado paravam mulheres que desciam dos carros, alongavam e saíam correndo sozinhas. "Eu achava aquilo meio diferente, mas logo percebi que nos EUA as mulheres estavam anos-luz à frente em questões desse tipo de autonomia em relação ao Brasil. Como aqui não tem problemas de assalto, como nas grandes cidades brasileiras, as pessoas ficam muito mais à vontade e se sentem mais confiantes para exercer esportes individuais, como é o caso da corrida", compara.
De acordo com o treinador, outro ponto que percebeu é a diferenciação da musculatura de uma corredora americana para uma brasileira. "Depois de 16 anos de Estados Unidos, já estou acostumado. Não acredito que seja uma questão de genética mais favorecida, mas sim porque elas vêm treinando mais duro há várias gerações, os mais diversos esportes."

Box 3
Muito rápidas na Disney
Senti essa força das mulheres nas meias-maratonas durante o Desafio do Pateta, na Disney, em janeiro. Na maratona, pelo ritmo que corri, vi poucas mulheres durante os 42 km. Oito chegaram na minha frente, incluindo a elite. Porém, nos 21 km, chamou demais a atenção o ritmo constante que elas correm e a juventude. Corri ao lado e atrás de várias americanas, todas na casa dos 20 e poucos anos (até menos), algo raríssimo de se ver aqui no Brasil. Muito rápidas, constantes, parecendo um "reloginho". Sempre mantendo um ritmo forte, difícil de acompanhar. Diversas, sub 1h30 ou bem mais baixo. Esse contato com os esportes desde cedo, nas escolas, na vida, realmente faz toda a diferença. E vem por aí uma geração nova, que vai ampliar ainda mais esse crescimento feminino nos EUA. Um fenômeno para aplaudir. (AS)

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