Releitura Redação 1 de abril de 2019 (0) (375)

Corra das bolhas

Tudo em cima – Nanna Pretto

 

 

Pé de corredor sofre com o atrito causado pela fricção da meia e do tênis. E o melhor remédio para evitar o surgimento de bolhas é a prevenção.

 

 

        Mesmo com uma bolha no pé esquerdo, Franck Caldeira cruzou a linha de chegada em primeiro lugar na maratona dos Jogos Pan-Americanos do Rio.

        Quando fazia os pés semanalmente, a cirurgiã dentista Maria Cristina Bellini Cabrera, 25, não parava de se lamentar das bolhas, unhas encravadas e marcas da corrida estampadas no pé.

        Sempre que faz treinos longos ou meias-maratonas, o empresário Júlio Fernandes, 30, sofre com bolhas de sangue que se formam embaixo da unha e estouram durante a corrida.

 

“O atrito e a duração do exercício é, na maioria das vezes, a causa das bolhas nos pés do corredor”, explica o dermatologista Reinaldo Tovo, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Dermatológica. Também, não é para menos. Afinal, a cada quilômetro corrido os pés batem no chão quase mil vezes. A cada passada, eles absorvem um impacto de quatro até seis vezes maior que o peso corporal. Eles aterrissam, rolam para frente e decolam do chão, em um movimento que se repete por uma, duas ou três horas seguidas, a depender do tamanho do longão.

 

As bolhas são a acumulação de fluidos entre as camadas interiores e exteriores da pele, que aparecem em função de um processo inflamatório. E essas inflamações ocorrem por agentes físicos, como as queimaduras e o calor, agentes químicos, que são as substâncias cáusticas e após traumas mecânicos, como no caso da corrida, explica Tovo.

 

“Geralmente, as bolhas que aparecem por agentes mecânicos – como a corrida – têm um conteúdo claro, chamado exsudato. É o líquido transparente que fica por debaixo da pele”.

 

Corredor que não deixa o pé bem limpo também corre o risco de sofrer com bolhas causadas pelos agentes infecciosos, como os fungos que formam micoses em locais úmidos, entre os dedos dos pés especialmente. Já os diabéticos e com problemas de circulação devem prestar ainda mais atenção às formações de bolhas, explica o médico. Isso porque essas pessoas têm tendência à má circulação nas extremidades do corpo, como os pés. “Ali o sangue tem dificuldade de circular e, quando uma bolha ou qualquer outra ferida aparece, a cicatrização é mais difícil”, diz Tovo.

 

As bolhas que aparecem nos pés do empresário Fernandes, avalia Tovo, são em função do atrito repetitivo. “De tanto correr ele machuca o pé a ponto de ter micros sangramentos, em função do rompimento de algum vaso sanguíneo. As bolhas que se formam são de conteúdo hemático com sangue”. Segundo o médico, as bolhas que aparecem debaixo das unhas, os hematomas subungueais, se formam no dedão do pé ou no quinto dedo.

Quando concluiu os 42 km da Maratona do Pan, Franck Caldeira tinha o pé esquerdo cheio de sangue. “Achei muito estranho quando vi, pois o problema dele, na semana que antecedeu a prova, foi justamente no outro pé, o direito”, conta o fisiologista Henrique Viana, médico do esporte e técnico de corrida da equipe Pé de Vento, no Rio de Janeiro.

Um pouco antes da prova na capital carioca, Franck fez o polimento de seu treinamento em Cochabamba, na Bolívia, região de altitude para o treinamento dos corredores. Por isso, o tênis que ele usaria na maratona, só foi estreado duas semanas antes do dia da competição, quando ele voltou para o Brasil. “Franck ficou nervoso porque o tênis fez bolha. O que é normal, pois é necessário um tempo para o pé se acostumar, para o tênis amaciar e se moldar ao pé do corredor. E ele não teve tempo para isso”, explica Viana.

Na bolha do pé direito, o treinador fez um curativo especial, com um emplastro específico e um fino esparadrapo, dois dias antes da prova e, no dia da maratona, o curativo foi caprichado. “Tinha certeza de que o pé dele estava protegido e que aquelas bolhas não atrapalhariam a prova”, afirmou o médico.

De fato, a bolha do pé direito não atrapalhou. O que incomodou mesmo foi um novo machucado, que surgiu no pé esquerdo, na segunda metade da prova. Franck terminou a prova mancando. “É só uma bolha, coisa normal, de maratona”, minimizou ele no dia da competição.

Viana explica que, no caso do campeão, além da questão de amaciamento do tênis, comum a todos os corredores, Franck têm a pele muito fina, o que propicia o aparecimento de bolhas. “Além disso, ele não consegue correr com meias, o que é um facilitador para o surgimento das bolhas.” Os negros, explica Viana, por terem a pele mais grossa, sofrem menos com esse tipo de lesão.

“Se não forem tratados adequadamente, bolhas e fungos, por exemplo, podem impedir o exercício físico regular”, alerta Craig Burkhart, dermatologista professor da Universidade de Ohio, em artigo publicado na revista The Physician and Sportsmedicine.

Férias da manicure

Contra o rejeição pelas meias, como no caso de Franck, não há muito que fazer, explica a dermatologista Lilian Estefan. Mas, para a pele fina, especialmente entre as mulheres, o ideal para fugir das bolhas é dar um tempo nas visitas ao pedólogo. Foi o que fez a cirurgiã dentista Maria Cristina, a Kika, depois de sofrer muito com o aparecimento das bolhas nos pés, desde que começou a correr, em 2003. “No início achei que fosse o tênis, mas comprei um número maior, o que deu uma melhorada, mas não eliminou o problema”.

Em 2004, Kika resolveu fazer a São Silvestre e seguiu todos os rituais para não ter problemas. Dois meses antes ela estreou um tênis, usou uma boa meia e foi para a prova. Nada adiantou. No 11° km, ela sentiu as primeiras dores que se intensificaram no 14°. “Segui firme até o fim, pois a emoção foi tomando conta e até me esqueci da dor”. Quando terminou a corrida, a dentista tinha os pés cheios de bolhas, principalmente nas áreas de mais atrito entre a meia e o tênis. “Passei meu réveillon de chinelinho baixo, curativos e sentada, enquanto todas estavam de salto, dançavam e pulavam”, lembra.

No ano seguinte, quando decidiu fazer uma meia-maratona, Kika comprou tênis novo, um número maior, meias especiais e sem costura, mas, o que fez toda a diferença, segundo ela, foi não fazer os pés com a pedóloga. “Meu treinador aconselhou a ficar pelo menos uma semana sem fazer os pés para a pele não ficar fina demais, o que favorece a formação de bolhas”. Seguindo as recomendações, Kika completou a meia-maratona feliz e sem bolhas. “De 2005 até hoje nunca mais tive problemas com bolhas, continuo correndo meias-maratonas e planejo a Mratona de Chicago para 2008. Sem bolhas”.

 

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Para evitar as bolhas

Existem muitas artimanhas de corredores que são eficientes para evitar o aparecimento das bolhas. Os dermatologistas selecionaram as que realmente funcionam. Confira:

Tênis: antes de um treino longo ou de uma competição importante o tênis deve ser amaciado em pequenos treinos, passeios e até dentro de casa. O pé deve ter tempo para se familiarizar com a palmilha, as costuras e os novos atritos que poderão surgir.

Além disso, o tamanho do calçado deverá ser um número a um número e meio maior que o normal (cerca de 1,5 cm), para evitar que o pé fique apertado e o atrito seja maior.

Para escolher o tênis certo:

– Deixe para comprar o tênis no fim do dia, quando os pés estão mais inchados, devido ao aumento do fluxo de sangue e distensão dos ligamentos.

– Experimente o calçado em pé, porque nessa posição o pé fica mais volumoso.

– O tênis não deve apertar em nenhum lugar. Um pequeno desconforto na loja será pior depois de algumas passadas.

– Quem transpira excessivamente deve escolher um calçado com mais ventilação, como os que têm tecidos com furinhos.

As dicas são de Cibele Réssio, ortopedista com especialização em pés e tornozelos pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Meias: eles devem proporcionar a transpiração dos pés e ter o mínimo de costuras possível. Existem meias específicas para evitar bolhas, com reforços nas regiões mais delicadas. Não faça como o Franck, que só corre sem meias. Experimente usufruir desse conforto que protege os pés.

Vaselina: pode ser usada antes da meia para impermeabilizar os pés e protegê-los do atrito. O ideal é usar vaselina sólida, em vez da líquida, que tem mais fixação. O cuidado deve ser na quantidade aplicada, para que o pé não fique deslizando no calçado.

Podólogo: quem tem a pele do pé sensível e fina deve evitar a manicure antes das provas ou treinos longos. Ou, pelo menos, evitar lixar a sola dos pés ou passar produtos que afinam a pele. Isso deixará a região mais resistente ao aparecimento do machucado.

Unhas: deverão ser cortadas rente à pele do dedo, mas não muito curtas para não encravar. Unhas quadradas encravam menos que as redondas, por isso, se você não souber como cortar a unha do pé procure uma manicure.

Produtos específicos: Existem protetores especiais para os dedos, feitos de silicone e espuma, à venda em lojas de podologia. Quem costuma viajar para o exterior pode comprar produtos para ”colar” as bolhas, chamados de second skin (segunda pele). O efeito é o endurecimento da pele parecido com o de colas de colagem rápida.

 

 

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O que fazer com a bolha?

Por mais que você tenha tomado todas as precauções, na metade do treino uma bolha se formou na sola do pé e começou a incomodar. Você não precisou parar de correr, mas bateu aquela preocupação com o treino longo do sábado que vem. As bolhas, mesmo as menores, podem ocasionar dores na região, porque o líquido estimula as terminações nervosas. Para evitar que a bolha estoure durante a corrida ou que você sinta muita dor no treino, siga as orientações dos especialistas:

Bolhas pequenas: Não fure. Coloque água boricada para que a pele seque mais rápido. Se for correr e a bolha ainda estiver no pé, proteja-a com um adesivo curativo ou um esparadrapo.

Bolhas grandes: Para furá-las use uma agulha descartável. Limpe bem a região com álcool ou algum antibactericida e faça um furo pequeno deixando que todo o exsudato (o líquido transparente que se forma dentro da bolha) seja extraído. Nunca corte a pele, pois ela é um curativo biológico, ou seja, impede o contato da pele interna com bactérias. Após furar a bolha é necessário passar uma pomada antibiótica.

Bolhas de sangue: Se estiver dolorida, ela deve ser furada logo nas primeiras horas após a formação, senão o sangue coagula e só sai se for retirada também a pele da camada externa.

Vacina antitetânica: Corredor treina no meio da rua e está sujeito a pisar em alguma coisa ou se machucar com algum objeto enferrujado. Uma bolha no pé é uma porta aberta para adquirir o tétano. Estar em dia com a vacinação é fácil. Basta comparecer a um centro de vacinação e pedir imunização contra o tétano. É grátis.

 

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O comentário de Paul Tergat

“De nada adianta a tecnologia dos tênis e das meias se o corredor não estiver com a mente tranqüila para suportar a dor”, avisa o médico e treinador Henrique Viana. A dor faz parte da rotina do corredor e, de fato, é preciso aprender a lidar com ela. Viana conta que nem a bolha, nem nenhuma outra dor impediriam Franck de correr bem a maratona dos Jogos Pan-americanos. “Ele precisava provar para si mesmo que era capaz de suportar uma dor e chegar até o fim. A vitória, em termos de mídia, era essencial para a carreira dele”. Mas, independentemente do aparecimento na mídia, Viana acredita que a vitória serviu para superar a Maratona de Pádova, na Itália, em abril deste ano.

“Ele passou por mim no km 35 e estava muito bem, com ritmo para concluir a maratona abaixo de 2h11. De repente, 2 km depois ele desistiu, alegando forte dor nas costas”, conta o treinador que, ao encontrar o atleta depois, teve de deixar a amizade de lado e lhe dar uma bronca por ter parado faltando apenas 5 km. “De nada adiantaria todos os meus argumentos, se não fosse o campeão Paul Tergat. Ele se aproximou de nós e perguntou porque o Franck tinha parado; ao ser informado da razão,  ele disse para o Frankk: ‘Quando eu corro, eu sinto dor em todo o meu corpo’. Acho que essa colocação o encorajou para continuar treinando para maratona e aprender a suportar as dores de uma maratona, e só desistir em último caso”, lembra o treinador e amigo de Franck Caldeira.

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