Performance e Saúde admin 12 de outubro de 2014 (0) (135)

Frequência cardíaca: chave para individualização do treinamento?

Dizem que o treinamento é parte ciência, parte arte. A parte arte é principalmente aquela em que uma planilha modelo é adaptada a diferentes esportistas. Existem aqueles que podem correr mais dias, menos dias, que lidam melhor com velocidade, com resistência, etc. É surpreendente a quantidade de atletas dos mais variados perfis que cruzam juntos a linha de chegada. Identificar as peculiaridades de cada um a fim de otimizar as suas planilhas não é uma tarefa fácil; é preciso conhecer o corredor dentro e fora das sessões de corrida.
Além desse gerenciamento "macro" da preparação individual, também existem aqueles pequenos ajustes que são feitos no dia a dia. Há ocasiões, por exemplo, em que não adianta forçar: ou o dia foi muito estressante, ou a noite foi ruim, não importa; às vezes, o organismo simplesmente não está disposto a tolerar sessões mais fortes. Nessas ocasiões, o treinador possui duas escolhas: ou ele cede aos pedidos dos atletas, ou passa a ignorá-los com cada vez mais frequência.
As duas situações possuem seus riscos. Cedendo, as sessões ficam aquém do seu potencial, e os processos de adaptação ao treinamento reduzem seu ritmo. Se, ao contrário, o técnico passar a ignorar seus corredores, corre o risco de não levar em conta reclamações verdadeiras e sobrecarregar seus atletas (e provavelmente perdê-los…). Diante das duas opções, a maioria dos preparadores físicos possivelmente opta por ceder, afinal, antes estagnado do que lesionado. Como fazer, portanto, para tonar esse microgerenciamento de cargas mais efetivo e objetivo, sem depender tanto da intuição de cada um?

IMPORTÂNCIA DA FC. No mês de abril, a CR publicou uma matéria sobre a recuperação da frequência cardíaca pós-treino, do colunista Josivan Silva. Recomendo aos leitores que busquem este artigo (seção "Corpo a corpo"), pois esclarece vários conceitos que iremos tratar aqui.
De maneira simplificada, nossa frequência cardíaca de repouso é ditada por dois "ramos" do sistema nervoso autônomo: o simpático e o parassimpático. A relação entre estes dois sistemas afeta a frequência cardíaca de maneira aguda, e pode ser usada para monitorar o funcionamento do organismo e o quanto ele está "pronto" para receber uma carga de treino.
Enquanto variáveis, como a frequência cardíaca de repouso e a recuperação da frequência cardíaca, são relativamente bastante conhecidas, menos divulgada é a possibilidade de utilização da variabilidade de frequência cardíaca. Pense no seguinte: o batimento do seu coração em repouso é de 60 bpm, portanto, média de um batimento por segundo. Isso quer dizer que cada batimento está separado um do outro por exatamente 1 segundo? Muito pelo contrário!
Em pessoas saudáveis, a frequência cardíaca oscila significativamente em torno dessa média, de forma que o intervalo entre os batimentos pode ser, por exemplo, 0.5s, 2s, 1s, etc. É justamente esta variabilidade em torno da frequência média que pode ser utilizada para predizer se o organismo está pronto para receber uma carga de estresse ou não. Esta noção de "preparo" do organismo novamente remete ao grau de atividade dos dois ramos do sistema nervoso.

COMO MEDIR. Apesar de simples em conceito, o cálculo da variabilidade da frequência cardíaca exige um domínio matemático que pouquíssimos têm. A boa notícia é que monitores cardíacos mais avançados já contam com esta opção. O Polar S800, por exemplo, possui a função Ownzone, que nada mais é do que a determinação da variabilidade da frequência cardíaca ao acordar (o procedimento normalmente exige que a pessoa permaneça sentada, deitada ou em pé, logo ao acordar, medindo as pulsações por cerca de 5 minutos).
Com base nessa análise diária, cria-se um padrão para cada pessoa, no qual aumentos da variabilidade (estamos aqui falando de forma simplificada!) indicam que o momento é propício para treinos intensos, enquanto diminuição da variabilidade sugere redução dos trabalhos ou decanso.

E NA PRÁTICA? Em um estudo publicado em 2010, um grupo finlandês demonstrou que a preparação guiada pela variabilidade de frequência cardíaca resultou em uma melhora de performance superior ao do treino "fixo", em que as cargas de cada dia eram pré-estabelecidas. Enquanto o grupo com cargas fixas realizava sequências compostas por repouso, dia moderado e dois dias intensos, o grupo guiado pela variabilidade de frequência realizava o seguinte: sessões intensas, caso a variabilidade dos batimentos aumentasse; e treinos leves ou descanso, caso ela caísse (além de algumas outras regras para limitar a quantidade de dias intensos e descansos).
Ao fim do período de treino, os homens do grupo de cargas variáveis tiveram um aumento superior de performance. As mulheres, por outro lado, tiveram melhoras semelhantes independentemente da periodização (fixa ou variável); no entanto, as que utilizaram a variabilidade de frequência cardíaca como guia realizaram em média 1.8 treinos intensos por semana, contra 3.3 sessões semanais do grupo de treinos pré-estabelecidos. Em um estudo anterior, de 2007, o mesmo grupo já havia demonstrado que um programa utilizando os mesmos preceitos resultou em maiores aumentos de performance quando comparado aos trabalhos com cargas pré-estabelecidas.
Além disso, o contrário também parece ser verdadeiro: aumentos súbitos e abruptos nas cargas diminuem índices relacionados à variabilidade da frequência cardíaca, mesmo em atletas muito bem condicionados. Índices muito baixos são, inclusive, associados a maiores chances de mortalidade e eventos do coração, sendo atualmente utilizados em estudo medindo o grau de aptidão física e longevidade de diferentes populações.
Existem limitações no método, como sempre é o caso, de forma que esta não deve ser a única ferramenta utilizada para nortear decisões sobre as cargas preparatórias. Ainda assim, ela se mostra útil para auxiliar o gerenciamento agudo de dessas cargas, monitorar os efeitos do treinamento ou a fadiga crônica, garantindo que o corredor esteja sempre no caminho certo. Neste caso, mais pela ciência do que pela arte.

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