20 de setembro de 2024

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Blog do Corredor André Savazoni 7 de janeiro de 2019 (1) (164)

Cruce de Los Andes, uma jornada incrível

O assinante de Brasília Carlos Eduardo Bicca Marques (57 anos), participou do Cruce de Los Andes, o famoso El Cruce, com 100 km em três dias, no mês de dezembro. Ele conta, em um relato emocionante, como a prova surgiu na vida dele após uma reportagem na Contra-Relógio e toda a aventura que foi a participação, do ato da inscrição até a linha de chegada, passando pelos vulcões e por três dias de competição. Confira:

Dezembro de 2018, Púcon, Chile

Participar do “El Cruce de los Andes” não se limita a, “somente” percorrer 100 km em três dias, pela fascinante cordilheira sul-americana. Vai muito além! Envolve o desejo de desafiar a mente e provocar o corpo, superar limites, enfrentar o desconhecido; enfim, algo que está no espírito de aventureiros. Ainda não encontrei palavras para descrever…

Então, a ideia de cruzar a mística Cordilheira dos Andes vem de alguns anos atrás, quando li uma matéria sobre a prova (Revista Contra-Relógio, ano 2012 ou 2013). Lembro que, na época, provoquei meu amigo Humberto para embarcarmos nessa aventura, em dupla. A provocação, entretanto, permaneceu adormecida por uns anos até que, em agosto de 2017, recebi o troco pela antiga provocação: Humberto me dizendo que as inscrições para o El Cruce 2018 estariam abertas no dia seguinte. Sem sequer nos atualizarmos sobre a prova, decidimos fazer a inscrição na modalidade team (a dupla deve correr todo o percurso, lado a lado). E assim fizemos. Para minha surpresa, alguns poucos dias após, soube que as inscrições já estavam encerradas, tamanha a procura.

A prova foi marcada para ocorrer em dezembro de 2018, ou seja, 16 meses após a inscrição. Isso me fez relaxar em relação à preparação para enfrentar o imenso desafio que me aguardava.

Mas a vida é como um longo e sinuoso rio… Não temos o controle do que ocorrerá no dia seguinte; não temos controle sobre o futuro. Isso interfere no cotidiano e, por consequência, nos planos e no planejamento de um atleta amador que se dispõe a encarar uma prova com extrema exigência física e mental.

O tempo passou… E agora…?

Nos meses que antecederam o El Cruce (a partir de agosto de 2018), ainda que muito aquém do exigido para o que estava prestes a vir, participei de quatro meias-maratonas na modalidade trail run, o que, até então, era desconhecido para um razoavelmente experiente maratonista “do asfalto” (17 maratonas).

Negligenciei muito nos treinos específicos para adaptar o corpo ao esforço a que seria submetido. Em paralelo, meu parceiro Humberto foi acometido por uma lesão no pé que pôs em risco a participação dele na prova. Pensei em desistir de participar neste ano? Não! Humberto também mostrou-se convicto. Rejeitei a proposta de desmembrar a parceria, pois poderia ser prejudicado na classificação, caso o parceiro não pudesse completar a prova. Por quê? Acreditava na nossa capacidade de superação dos nossos limites, caso isso se apresentasse no desconhecido futuro.

Chegou a hora!

Estávamos em Púcon: eu, minha esposa Cristina e Maya (nossa mascota Labrador, como chamam os hermanos), após 6 mil kms rodados na viagem de estreia da nossa casa rodante. Uma cidadezinha charmosa na Patagônia Chilena, às margens do Lago Villarrica, que se autodenomina “El Centro del Sur de Chile”. De qualquer lugar da cidade, avista-se a imponência do vulcão Villarrica, a poucos quilômetros dali. Um dos vulcões mais ativos da Cordilheira. Sim! Ele está “vivo e operante”. Há permanente fumaça saindo da sua cratera, a 2.847 m.

Uma semana antes da prova, tomei uma decisão inusitada, compartilhada com Cristina: vou ali, me apresentar ao Villarrica! Fui escalar um vulcão em atividade… Numa jornada de mais de quatro horas, subindo lentamente mais de 1.400 metros de altitude, inicialmente sobre rochas vulcânicas (uma espécie de areia marrom escura, que afunda o pé ao pisar) e, predominantemente, sobre neve (por vezes fofa, que afunda o pé até a canela; por vezes dura, que exige muito cuidado para não escorregar).

Cheguei a la cumbre do Villarrica. Uma vista deslumbrante! Uma sensação de total impotência frente à grandiosidade daquilo que eu via sob meus pés e ao alcance dos olhos. A constatação mais humilde de que não somos nada, absolutamente nada, perante a Mãe Natureza! Teríamos alguns minutos lá em cima, antes de iniciarmos a descida. Observei aquela imensidão em volta: de um lado, o Lago Villarrica, Pucón e arredores, encobertos por uma densa nuvem, abaixo de nós. Do outro lado, visíveis, o enorme vulcão Lanín (na divisa entre Chile e Argentina) e… o vulcão Quetrupillán, menor que seus vizinhos, mas com muita neve. Era lá que eu estaria no primeiro dia de prova.

Antes de me despedir do Villarrica, tive a oportunidade de ouvir um “cochicho” dele, talvez um “boas vindas”, acompanhado de um cheiro forte que parecia ser de enxofre. Foi um instante de reflexão. Uma reverência final em respeito à sua grandiosidade. Pensei comigo, sob emoção: hoje estou aqui, a 2.800 metros de altitude. Semana que vem estarei de volta, por suas encostas e trilhas, realizando aquilo a que me referi no primeiro parágrafo: desafiando a mente e provocando o corpo. Com reverência!

Dia 05/12

Um dia especial: 3º aniversário do meu netinho Ike, meu talismã desde que nasceu; e o vovô Bicca a milhares de quilômetros de distância, sem poder abraçá-lo. Um nó no meu coração.

Foi também o dia da abertura oficial da prova. O que eu não sabia era que o El Cruce não começa na largada, como todas as outras em que havia participado. Começa no dia anterior. Uma breve apresentação com o desfile das bandeiras dos mais de 40 países representados no evento. A atmosfera vai se transformando numa corrente de força mental, foco e emoção. Lembro de duas frases:

– Disfrutem! Somos privilegiados por estarmos aqui.

– Respeitem a natureza; respeitem o vulcão!

Palavras estimulantes, palavras intrigantes…

Dia 06/12 – 1ª etapa:

Ainda escuro, saio do Camping La Poza, deixando minhas Cristina e Maya, para embarcar no ônibus que nos levaria até o local da largada, às 06h50.

Temperatura fria; e um frio na barriga pela apreensão do desconhecido dos três dias pela frente.

Largamos, lado a lado, eu e Humberto. Cada um com sua mochila às costas, contendo os itens de sobrevivência obrigatórios, hidratação e alimentação para o percurso.

Sobe e desce e sobe, sobe… Corre e caminha, dá um trotezinho para superar mais um trecho menos inclinado, para e ajusta alguma coisa na mochila, volta a trotar e caminhar. Assim vencemos os primeiros 5 km, até o primeiro oásis (local de hidratação oferecido pela prova). Sabíamos que, a partir daquele ponto, nossa jornada seria muito mais dura. Estávamos aos pés do vulcão Quetrupillán. Durante os minutos parados no oásis, já com o corpo aquecido, decidi tirar o casaco corta-vento (item obrigatório, fornecido pela organização da prova).

Retomamos o percurso. Após o 7º km, começou o El Cruce. Altimetria e terreno extremamente exigentes. Longas e muito íngremes subidas, participantes da prova em uma grande fila indiana, subindo a encosta do vulcão. Até chegarmos a um trecho com neve; muita neve. Vamos em frente, com os bastões para auxiliar a superar aquela quase insana subida.

Bem que me alertaram para treinar o uso dos bastões. Faltou treinar isso (também)… Não soube travá-los, o que me custou tempo e estabilidade em diversos momentos. Sem lamentar, sigo. Levanto a cabeça e vejo, à minha frente, uma imensa montanha branca, cortada por uma minúscula fila de pessoas, subindo rumo ao topo do majestoso Quetrupillán. Ah, natureza!

No meio dessa saga, uma parada necessária para vestir o corta-vento, touca e luvas. Fomos recebidos por uma intensa ventania, ainda a caminho do topo do vulcão. Foi o visual mais bonito que tive em toda a minha vida de corredor amador. Abaixo e acima de onde me encontrava, só neve, cortada apenas por uma interminável fila de pessoas, cada uma com sua experiência naquele tipo de prova mas, seguramente, todas com o mesmo propósito e força interior para superar, passo a passo, aquele gigante branco. Foi incrível. Não existe um termo que traduza o sentimento de estar ali e ter força para continuar. A mente, desafiada, manda um recado: mantenha o foco!

Alcancei a altitude de 2.080 metros sobre o nível do mar (o vulcão tem 2.400 m de altitude), os pés afundando na neve. Impossível não parar ali. Esqueci a corrida por um tempo. E contemplei aquele momento e o privilégio de estar ali! Cada minuto parado para apreciar aquela imensidão da natureza valeu muito. Provavelmente não voltarei aqui, pensei. Indescritível a sensação.

Pouco mais de 4 horas depois e estávamos no topo da prova, mas só na metade do percurso. Daquele ponto em diante, longa e constante descida de 14 km. Descida? Ah, alguém pode pensar que desse ponto em diante seria fácil. Engano.

Descidas íngremes também exigem muita força, além de joelhos e quadris treinados para isso. Além dos cuidados para evitar escorregões e tombos, que podem resultar em lesões sérias. Descer na neve e não escorregar é impossível. Em alguns trechos mais íngremes e com neve, foi impossível andar. A solução foi acompanhar os que iam na frente e descer de esquibunda. Superei o trauma e também fui. Estava de calção: levanta, sacode a neve e vamos em frente. Foram três trechos de esquibunda. Até que alcançamos o trecho já sem neve e nos deparamos com um bosque muito bonito e denso, com muitas árvores. E muitos ganhos no caminho. Olhos muito atentos para o chão. Não posso cair.

Km a km, fomos descendo intercalando trote e caminhada. Para não dizer que passei ileso na longa descida, um pequeno escorregão, sem nenhuma consequência. Chegamos então ao segundo oásis, onde fomos informados que a organização da prova decidiu suprimir um trecho de 5 km de montanha, por segurança dos participantes dos team que estavam mais atrás (nossa situação).

Daquele ponto em diante, seria o mesmo percurso do início: um estradão corrível, predominantemente em descida. Mas já estávamos com quase 6 horas de prova, 2 horas da tarde e sol quente!

Hora de lembrar que no dia seguinte teríamos outros 32 km para percorrer. Fomos intercalando trote e caminhada. Uma situação inusitada: sentia mais conforto para trotar na subida do que na descida. Coisas da preparação negligenciada, não por falta de orientação e alertas do treinador Filipe Aragão. Correndo e aprendendo, sempre.

Cheguei bem (isso era fundamental no planejamento), hidratei-me e segui no ônibus para o 1º acampamento, um episódio à parte (deixo isso para outro relato). Só um ponto a destacar: banho em rio, com água extremamente gelada. Era importante passar por essa crioterapia natural. Encarei e relaxei os músculos das pernas.

Resumo do dia: Corpo e mente!

28,3 km – 1.550 metros de ascensão – 6h29 (5h12 em movimento).

Dia 07/12 – 2ª etapa:

Após cumprir os passos programados no Camp-1, ônibus até o local da 2ª largada. Certa confusão por parte da organização, atrasou muito a saída.

Largamos depois das 9h, já com sol forte. O dia promete, pensei. Exigirá cautela desde o início.

Subida menos íngreme do que no dia anterior, porém constante nos primeiros 16 km. Pouca neve no percurso, mas nem perto do visual do dia anterior. Logo nos primeiros movimentos das pernas, a lembrança de que subi um vulcão há menos de 24 horas.

Na passagem por um riacho, ainda durante a subida inicial, bati o dedão do pé esquerdo na frente do tênis e isso passou a incomodar um pouco. Com o tempo e a necessidade de cruzar outros riachos, senti que o pé molhado fez uma bolha. Nada que impedisse continuar, mas incomodou durante a longa descida, especialmente na parte final, em um longo e íngreme trecho.

O sol forte se tornou impiedoso após o meio-dia. Tive que parar para reforçar o protetor solar no rosto e braços (corri todo o tempo de camiseta, com o corta-vento na cintura). No final, estava trotando no sol e caminhando na sombra, para aproveitar o refresco.

Corremos pelas encostas do vulcão Villarrica, aquele mesmo da escalada, uma semana antes.

Cheguei mais cansado do que no dia anterior, mas igualmente bem. De lamentar, além da bolha, um arranhão na mão esquerda a 100 metros da chegada, numa cerca de arame farpado que tinha ao lado de um obstáculo que precisávamos pular. Nada além de um pequeno arranhão, curado na água – ainda mais gelada – de um outro rio que nos acolheu.

Resumo do dia: Mente e corpo!

32,2 km – 1.130 metros de ascensão – 6h40 (6h00 em movimento).

Dia 08/12 – 3ª etapa:

O “dia da chegada!” Mais confusão na organização na locomoção dos participantes até o local da largada.

Largamos quase às 10h30, mas o tempo estava nublado e clima ameno. Sabia que o percurso, o mais longo dos três dias, seria dividido em um início em subida muito forte mas, da metade da prova até o final, seria um percurso totalmente “corrível”.

Era o terceiro e último dia, após já termos corrido 60 km, com muita ascensão. Era a hora da verdade! Eu tinha consciência de que teria forças, pernas e mente para chegar bem ao pórtico às margens do Lago Villarrica, em Pucón, depois de derradeiros 34 km.

Subi muito nos primeiros 6 km. Depois, um trecho bom e consegui correr por 2 km. Na sequência, outros 5 km de subida menos íngreme. No 14º Km, uma descida muito técnica, exigiu cautela. A mente, sempre atenta, avisa: vá devagar, não é hora de arriscar e por tudo a perder. Mais 2 km de estradão bom para correr e, no 17º km, a última subida. Metade da última etapa superada.

Lembro que falei ao Humberto: – agora só faltam 17 km!

E fomos ganhando terreno, km a km. A essa altura, todos os participantes “Avanzados” que largaram atrás de nós já tinham nos ultrapassado (um fato curioso neste 3º dia.

Logo após nosso último oásis do El Cruce 2018, no 22º Km, atravessamos o asfalto da ruta Camino Internacional (estrada que leva até o Paso Mamuil Malal e o vulcão Lanín) e pegamos uma interminável reta de asfalto ao lado da pista do aeroporto, onde passamos por uma placa anunciando: Pucón a 3 km! Aquilo parecia uma miragem, mas a placa existia… A euforia tomou conta. Estávamos chegando!

Interrompemos o trote que vínhamos mantendo nos últimos quilômetros, peguei o celular para avisar a Cristina que estávamos próximos. Em seguida, Humberto avisou Socorro. Voltamos a trotar, ainda no asfalto, imaginando que esse último trecho seria assim.

Mas o asfalto só durou 3 km. Logo após o aeroporto, viramos à direita e seguimos a orientação de uma voluntária da prova: “- al final de la calle, pelo sendero”.

Aquela placa de sinalização, para todos os desafiantes da Cordilheira, foi como uma miragem. O tal sendero nos reservava quase 8 km de trilhas, rio com água na cintura, travessia de um riacho se equilibrando em um tronco de árvore, vegetação alta e, para recordar que estávamos prestes a nos tornar cruceros, um trecho final de 1,5 km de areia preta e muito fofa da margem do Lago Villarrica.

Muitos voluntários nesse trecho final, em parte devido ao ziguezague do percurso, mas também para incentivar a todos que estávamos próximos de nos tornar cruceros. Outra voluntária orienta: “- Por acá, por la orilla del lago!” (até hoje, 30 dias após, me recordo e me emociono).

Nesse ponto, quase 93 km após a largada dois dias atrás, atravessei correndo aquela areia fofa até alcançar um trecho de areia batida junto à margem do lago onde parecia mais fácil correr. Sim, eu queria correr. Dali, avistei o pórtico de chegada.

Tive tempo de lembrar dos amigos que, de alguma forma, me ajudaram a chegar até ali, muitas vezes com uma singela palavra de incentivo. Estão todos representados pelo Humberto Freire, amigo de mais de duas décadas, com quem dividi essa aventura de vida, única. Obrigado, parceiro!

Lembrei de muita coisa que ocorreu desde a inscrição na prova, há mais de um ano. Lembrei da minha família, das pessoas que eu amo, que torciam por mim e que estavam na expectativa da minha chegada. Não imaginava que alguns estavam assistindo minha chegada, pelo site da prova, por streaming (o que seria de nós sem essa tecnologia).

Cada vez mais próximo do pórtico, não contive a emoção!

E acho que entrei numa espécie de transe, motivada pela expectativa de chegar.

Lembrei muito de meus pais que, por escolha divina, não puderam compartilhar comigo dessa conquista, que também é deles, pela formação familiar, hereditária e fé em Deus que recebi.

Sobretudo, lembrei muito do meu netinho Ike, que fez aniversário na véspera da prova, a quem dedico muito do esforço que fiz para alcançar esse tão desejado objetivo. Ele ainda não é capaz de entender isso, mas entenderá um dia. Desde que nasceu, tem sido meu talismã nos momentos mais difíceis.

Por último, agradecimento infinito a quem me completa e dá sentido a minha vida, para continuar perseguindo o novo, perseguindo o desconhecido, perseguindo a felicidade nas pequenas coisas do dia a dia: obrigado minha esposa Cristina! Obrigado, inclusive, por cuidar da Maya e fazê-la participar dessa viagem tão significativa em nossas vidas. O desejo de te ver e poder te abraçar na linha de chegada foram o oxigênio e o sangue que me deu a força necessária para que eu me tornasse um crucero da Cordilheira dos Andes!

Desafiei minha mente; provoquei meu corpo; superei meus limites; enfrentei o desconhecido; e… Venci.

Cruzei a linha de chegada!

Resumo do dia: Alma, mente e corpo!

33,9 km – 725 metros de ascensão – 4h59 (4h49 em movimento).

Nunca tive dúvidas de que seria capaz de alcançar “La meta”, como nossos hermanos chamam a linha de chegada.

Foi uma jornada incrível!

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One Comment on “Cruce de Los Andes, uma jornada incrível

  1. Faltou uma 2a. revisão e percebi alguns pequenos erros de concordância e grafia. Mas a essência da mensagem está preservada.

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