Performance e Saúde admin 10 de outubro de 2012 (0) (248)

Como se faz um campeão olímpico?

Não é todo dia que em uma prova de 10.000 m um corredor com a marca de 28:32 termina na vigésima colocação. A liga de diamante da Federação Internacional de Atletismo – IAAF ou mesmo o Campeonato Mundial de Atletismo são momentos únicos na vida de qualquer atleta, mas o ouro olímpico é sem dúvida a maior glória que pode ser conquistada. Ciclos de quatro anos de treinamento são feitos visando aos Jogos, e todo o esforço é posto à prova em questão de segundos ou minutos, o suficiente para marcar o nascimento de uma nova estrela ou a queda de uma lenda. Em Londres, os resultados do atletismo foram tudo, menos previsíveis, e deixaram muitos dos envolvidos com a preparação de atletas com explicações para dar na volta para casa.

Os Jogos Olímpicos de 2012 deixaram algumas nações africanas estarrecidas. Acostumados ao alto do pódio (e às vezes ao pódio inteiro), países como Quênia e Etiópia saíram de Londres extremamente desapontados, e não faltam dedos apontando culpados pelo fraco resultado. No Quênia, por exemplo, onde o ministro dos esportes classificou a performance do país em geral como um "fiasco", a imprensa local destacou uma série de irregularidades no time que foi enviado aos Jogos, desde atletas que teriam tido seu kit de vestimentas roubados por cartolas da delegação, até falhas na decisão sobre quando chegar no país para a fase de aclimatação, passando pela parte em que "oficiais" da delegação se credenciaram como médicos e fisioterapeutas para ter acesso às mordomias da vila olímpica, enquanto os verdadeiros médicos e fisioterapeutas do país ficaram de fora.

No entanto, a questão que parece ter ficado mais doída nos quenianos foi a fato de que tanto Moh(amed) Farrah, campeão olímpico dos 5.000 e 10.000 m, quanto o uganês Stephen Kiprotich, ouro na maratona, treinarem no próprio Quênia. Julius Kirwa, treinador chefe da delegação do país, sugeriu após os Jogos que a decisão de permitir que estrangeiros treinem no Quênia deveria ser revista. A sugestão de Kirwa é pelo menos interessante, e parece desconsiderar por completo e problema de outros países, que muitas vezes se perguntam se deveriam deixar estrangeiros (especialmente quenianos) correrem suas provas locais, visto que eles com frequência levam a fatia principal das premiações em dinheiro, e o reconhecimento também.

 

QUENIANOS INVENCÍVEIS? Mas existe um significado mais profundo nas reclamações do treinador. Alguns meses atrás fizemos uma matéria aqui na CR sobre o domínio dos africanos, quenianos em especial, nas corridas de longa distância. Mostramos que existem alguns pontos em que os corredores quenianos podem ser diferentes dos demais, mas que de forma concreta não existe uma variável específica que se sobressaia das demais, e no final das contas o estigma de invencíveis que se criou em torno deles pode ser um dos fatores responsáveis pelo domínio, numa profecia autocumprida.

Ao reclamar do fato de estrangeiros se prepararem no país, o treinador chefe do atletismo queniano está dizendo que os resultados de seus corredores são influência do meio onde eles estão, e não intrínseco aos atletas. O Quênia, é preciso dizer, teve nada menos do que 278 (duzentos e setenta e oito!) atletas que atingiram o índice olímpico de 2:15:00 exigido pela IAAF na maratona masculina, além de 61 atletas no feminino. Com todo este arsenal, era mais do que esperado que o país dominasse a prova. No entanto, os três atletas do país chegaram na segunda, terceira e 17ª colocação, e o treinador reclama dos estrangeiros que treinam no país.

Apesar de ser um tanto controversa por vários motivos, a argumentação de Kirwa faz sentido. É uma antiga verdade nos esportes que, para competir entre os melhores, é preciso treinar entre os melhores. Ao viver no dia a dia um ambiente em que centenas de corredores são capazes de correr uma maratona perto do recorde mundial, atletas de outras nações são forçados a dar o melhor de si para suportar a rotina de treinos, e por fim passam a encarar este nível de performance como cotidiano, e como se diz no meio "perdem o respeito" por atletas mais celebrados.

O uganês Kiprotich, por exemplo, apesar de ser um relativo desconhecido, inclusive desacreditado pela imprensa do país, que o classificou como "incapaz de representar uma ameaça aos líderes da prova", já tinha alguma credencial na maratona quando deixou para trás Haile Geb para conquistar a terceira posição na Maratona de Tóquio. Assim, mesmo sendo uma "surpresa", Kiprotich é um corredor de excelente calibre, que vive e treina próximo à Eldoret (na capital queniana e mundial da corrida), e acostumado a correr contra os melhores do mundo.

 

DIFERENCIAL PARA VENCER. Independente das controvérsias, dos desapontamentos e das surpresas, os Jogos Olímpicos nos mostraram, mais uma vez, como se corre para vencer. Os líderes da prova permanecem "embolados" por boa parte do percurso, eventualmente alguém tenta uma fuga, sendo perseguido pelos demais, até que uma destas fugas funcione, como aconteceu na maratona masculina. Se uma vez se acreditava que os melhores corredores de fundo eram aqueles com fibras musculares "lentas", como explicar vitórias baseadas em sprints que acontecem quando o ritmo de base está acima dos 20 km/h? Atletas de fundo hoje também são excelentes meio-fundistas, com performances em provas de 400 m e 800 m que deixariam muitos corredores com inveja. Dessa forma, a questão não é simplesmente ter uma maior proporção de fibras lentas.

Corredores de média e longa distância precisam ter três características fundamentais, do ponto de vista fisiológico: uma grande capacidade de consumir oxigênio em relação ao tamanho do seu corpo, uma excelente capacidade de transformar este oxigênio em movimento e finalmente a capacidade de manter altas taxas deste processo por longos períodos. Como estas três variáveis são inter-relacionadas, é possível que diferentes combinações das três culminem num mesmo resultado.

O consumo de oxigênio é diretamente ligado à capacidade de produzir energia de maneira aeróbica, a única forma sustentável por mais de poucos segundos. Assim, quanto mais oxigênio um atleta consegue fazer chegar do ar ambiente para os músculos, maior será seu potencial de desempenho. E dizemos potencial porque o segundo item, a economia de movimento, é que determina este desempenho.

Imagine dois carros sendo comparados quanto ao consumo de combustível por quilômetro. Se dois corredores possuem uma mesma capacidade de consumir oxigênio, terá mais chances de vencer aquele que for mais eficiente em transformar este oxigênio em velocidade de corrida. Nestes dois primeiros itens é onde a maioria dos corredores se equivale, e onde devem acontecer menos variações entre as competições, desde que os corredores estejam sempre em sua melhor forma. Nestes dois itens também estão incluídas todas as variáveis musculares, como a os diferentes tipos de fibras e suas capacidades oxidativas (produção de energia).

POSTURA DE VENCEDOR. É no terceiro item, no entanto, que existe a margem para determinar o que será um bom dia ou não. A capacidade de sustentar uma determinada taxa de esforço por longos períodos é fundamental para o sucesso numa prova, e depende não apenas do funcionamento dos músculos e do sistema cardiorrespiratório, mas também das emoções do corredor durante a prova.

Algumas semanas atrás, assistindo a uma palestra de um renomado treinador de ciclismo, responsável inclusive pela preparação de Cadel Evans (campeão do Tour de France de 2011), foi dita a seguinte frase: "Hoje no ciclismo para vencer você não precisa ser o mais rápido, precisa é convencer seus adversários a desistir, precisa convencê-los de que eles estão mais lentos do que você". O mesmo é verdade para a corrida.

Claro, existe um abismo de performance entre corredores que terminam uma prova com vários minutos de diferença, mas existe uma margem, aquela margem que define quem irá subir no pódio e quem irá ficar de fora dele, que é decidida na batalha mental travada entre os corredores. Ao fugir de um pelotão faltando 10 km para o final da prova, por exemplo, o corredor faz uma afirmação, de que o ritmo atual é confortável demais para ele, que ele consegue sustentar o novo ritmo sem problemas, e azar de quem não conseguir acompanhá-lo.

Essas fugas, quer realizadas no meio ou no final de uma prova, irão impactar a forma como os outros corredores percebem o exercício. Um aumento súbito de velocidade implica num maior gasto energético não somente naquele momento, mas desde aquele momento até o último metro da prova, e é aí que se convence outro corredor a desistir. Qualquer um dos dois quenianos poderia ter acompanhado Kiprotich em seu sprint, mas eles optaram por não fazer, porque acharam que aquele ritmo seria insustentável no longo prazo.

Segundo uma das teorias de regulação de performance durante o exercício, nossa percepção de esforço depende do quanto nos  julgamos aptos a realizar uma determinada tarefa, e também do quanto julgamos que o esforço irá valer a pena. Dessa forma, uma mudança brusca de ritmo irá alterar o custo percebido da medalha, por exemplo, e vencer (ou acompanhar o adversário) se torna uma tarefa muito mais difícil. Conforme os atletas se aproximam da chegada, o custo de aumentar a velocidade é menor, pois ela será sustentada por menos tempo, e novamente o corredor se sente capaz de lutar por uma colocação melhor, mas em muitos casos não há mais tempo.

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