Percorrer as históricas ruas de Roma é, sem dúvida, uma experiência única, ainda mais se for correndo 42.195 metros. Entretanto, quando surgem imprevistos que nos obrigam a reformular estratégias, abandonar metas e, mais do que nunca, ter muita garra para superar situações tragicômicas, o significado de concluir uma maratona ganha um sabor ainda mais especial.
No dia 18 de março, eu e meu colega de corrida, Antonio Roberto Ferreira, acordamos bem cedo em uma fria manhã italiana para nos dirigirmos ao Coliseu, local de largada e chegada da 13ª edição da Maratona della città di Roma. Como a largada estava marcada para as 9 horas e nós estávamos hospedados em um hotel distante do centro romano (opção alterada pela agência de viagem uma semana antes), nos programamos para sair com quase duas horas de antecedência. Os meios de transporte que íamos utilizar (trem e metrô, num total de 13 estações) já haviam sido testados no dia anterior e, se não houvesse qualquer contratempo, estaríamos na histórica arena romana em 30 minutos.
Porém, o tempo resolveu aprontar conosco. Passados mais de 30 minutos de espera, os ponteiros do relógio continuavam a trabalhar a todo vapor, e nada do maledeto trem dar o ar de sua graça na plataforma da estação Gemelli. Eu e Antônio inocentemente não havíamos pensado em um plano "B", pois os táxis ou ônibus da cidade poderiam nos deixar pela metade do caminho, já que não sabíamos quais ruas estariam interditadas por conta do percurso da maratona. Já passava das 8h25 quando o trenzinho de dois andares da Trenitália apareceu, para o alívio de dois brasileiros, um austríaco, quatro alemães e dois italianos não oriundos de Roma. Naquela altura do campeonato, se chegássemos no horário da largada já seria uma grande vitória!
Por este motivo, os atletas que se encontravam dentro dos trens e metrôs (incluindo este que vos escreve) começaram a se despir e se trocar dentro dos próprios vagões. A freqüência cardíaca já estava lá em cima, antes mesmo da largada! Na última baldeação do metrô (estação Termini), o movimento lembrava o horário de pico da linha vermelha da estação paulistana da Sé: inúmeras famílias também se dirigiam ao Coliseu, para participar da Stracittadina Fun Run, uma caminhada de 4 km, com largada programada para as 9h15. Crianças, mães, idosos, cachorros, todos muito animados para tomar as ruas de Roma.
Quando chegamos à estação Colosseo, o relógio já indicava 9 horas. Iríamos literalmente correr "atrás do prejuízo", como reza o ditado popular. Escadas lotadas, "dá licença, minha senhora!". Saí da estação e vi pela primeira vez o imponente Coliseu. Apesar do atraso, tive a frieza de separar alguns segundos para registrar uma foto. Eu e Antônio procuramos localizar o guarda-volumes e o tapete em que deveríamos validar nosso chip antes de largar. Pausa para urinar depois de guardar os pertences. Já tínhamos quinze minutos de atraso e o pessoal da caminhada já tomava conta do pórtico da largada. Encontramos alguns "vermelhinhos" da organização, mas a dificuldade de comunicação era gritante. Onde fica a largada? Left? Derecha? Pra baixo? Gauche? Destra? Oh, my God!
Largando… com os caminhantes. Seguimos o povo da caminhada: Scusi! Permesso, per favore! Íamos costurando os caminhantes, abrindo lugar no meio da multidão. Eram muitos caminhantes. Alguns até trotavam, se empolgavam em correr os 4 km de caminhada. Saímos da Via Del Fori Imperiali, em direção à Piazza Venezia. Após o primeiro quilômetro, surgiu a primeira subida. Pensei: "Ué, a Maratona de Roma não é uma corrida totalmente plana, rápida e veloz?". Olhava para o lado, não via outros maratonistas atrasados, apenas caminhantes. Ao fundo, o Coliseu cada vez mais próximo: "Antonio! Você viu alguém correndo com chip? Isso aqui está muito estranho!". Até que o meu colega teve a brilhante idéia de interpelar um membro da organização, isto quando já passávamos pelo 3o quilômetro. O italiano, após algumas mímicas de ambas as partes, nos informou que aquele não era o percurso da maratona! É, desgraça pouca é bobagem!
Voltamos para o Coliseu, novamente para as vias que davam acesso à largada. Perguntei a uma menina se ela falava inglês. "So, so! E a maratona?", perguntei. "Já largou, faz tempo!", ela devolveu. "Eu sei, mas qual é o percurso? Percorso! Maratona! Gran corrida!" Ela nos indicou o mesmo caminho que dava acesso ao relógio da largada, agora já com quase 50 minutos de prova! Zerei o meu cronômetro, respirei fundo. Naquele momento, o tempo de conclusão planejado e treinado por dois meses a fio tinha ido pro espaço. Importava apenas ter garra suficiente para terminar a prova. Felizmente o tempo máximo de conclusão da Maratona de Roma é alto (7 horas e 30 minutos), e mesmo com tanto atraso, tínhamos folga para garantirmos nossas medalhas de participação. Então, eu e Antônio resolvemos ir em frente, ainda com muito gás e vontade.
Descobrimos que os percursos da maratona e da caminhada se separavam 500 metros após o tapete da largada. Como tínhamos começado a correr no meio da massa, simplesmente viramos para a direita, quando o correto seria para esquerda. Agora, a Maratona de Roma começava para nós dois! Solitária, é verdade! Seguimos o rastro de copinhos d'água, esponjas úmidas jogadas no asfalto, além da fita amarela que servia para isolar o percurso e fechar o trânsito.
Em último lugar. Na altura do 3º quilômetro, avistamos corredores do outro lado da pista: eram retardatários chegando ao 9º quilômetro. Sentia a sensação única de ser o ÚLTIMO colocado da competição. Eu e Antônio ainda tínhamos 30 minutos de diferença para alcançar os mais lentos. No 5º quilômetro, tivemos a sorte de pegar as últimas garrafas de água, pois a organização já desativava os primeiros pontos de apoio. Mais adiante, na Via Ostiense, prosseguimos pela calçada, pois o trânsito da região já havia sido liberado. Felizmente, o rastro de copos e garrafas, e a fita amarela, indicavam que estávamos no caminho certo. Encontrar os outros corredores era questão de tempo.
Até que esse momento aconteceu com quase 10 km de prova, na Via Marmorata: a ambulância que acompanha os retardatários seguia à distância duas senhoras, que com o número de peito afixado em suas camisetas, caminhavam calmamente. Poucos metros à frente, um esforçado atleta de muletas. Naquele instante, deixávamos de ser os últimos da Maratona de Roma. Dali em diante o percurso deixou de ser solitário: avistamos e passamos por muitos atletas.
Alguns, já caminhavam, com destaque para uma grande delegação do Canadá, que divulgava sua luta contra o diabetes. Eu continuei mantendo 6 minutos/km, enquanto Antonio, que possui um ritmo mais forte, resolveu se distanciar e seguir seu caminho. Nos encontraríamos ao final, no guarda-volumes. O clima estava muito agradável (em torno de 13°C) quando o percurso passou a acompanhar as margens do rio Tibre. Três atletas de São Francisco tiravam fotos da paisagem. Pistas largas, sempre planas, mais afastadas do centro da cidade. Na entrada do Vaticano, em frente à majestosa Basílica de São Pedro, os turistas teimavam em disputar espaço com os maratonistas mais lentos. As ruas que dão acesso ao Museu do Vaticano estavam muito movimentadas, o que me motivou a abrir a nossa bandeira verde-amarela e pedir passagem.
Quando alcancei a marca da meia-maratona, me animei com a presença dos fotógrafos, e ao mesmo tempo, desanimei ao avistar o relógio oficial da prova: 2h52. Por mais que lutasse, a diferença de 50 minutos entre o tempo bruto e o líquido seria minha companheira por toda a prova. Na altura dos 25 km, o percurso se aproximou do parque da Villa Ada e atravessou o rio Tibre, para fazer o retorno rumo ao centro histórico. Italianos que trabalhavam no apoio viram a minha bandeira e, lógico, começaram a falar de futebol, Adriano, Internazionale… Eu aproveitei para tirar a ´água do joelho` e me abastecer com água e Gatorade. Dispensei as frutas descascadas e as bolachas, que ainda compunham uma farta mesa.
O percurso continuou acompanhando o rio Tibre até o 33° km. Após superar a barreira dos 30 km, ouvia cada vez mais espectadores gritando, incentivando: "Bravo! Forza! Daí Brasile!" Após a passagem de um viaduto (para quebrar o longo retão), adentrei no centro histórico de Roma. A partir dali, teria colírio para os olhos (por passar nas principais fontes e praças da capital italiana) e sofrimento para os pés e coluna (muitas ruas estreitas de paralelepípedos).
Pontos turísticos de monte. Antes do 35o quilômetro, fui apresentado à Piazza Navona, um dos principais cartões postais de Roma, com suas fontes, restaurantes lotados e a Embaixada do Brasil. Logo depois, vieram a Via Del Corso (principalmente rua comercial de Roma, infestada de turistas, que andavam calmamente pelo meio da avenida durante a maratona), um contorno pela Piazza del Popolo (uma espécie de Anhangabaú italiano, que havia sido tomada por irlandeses na tarde anterior, para uma transmissão de um jogo de rugby entre as seleções da Itália e da Irlanda), com direito à trilha sonora ("Sweet Child O'Mine", do Guns n'Roses, tocada por um grupo de adolescentes esforçados) para animar. Após, a Piazza del Spagna (outro famoso ponto de referência da cidade) e a badalada Fontana di Trevi.
Ultrapassada a barreira do 40o quilômetro, ganhei a companhia de um colega português oriundo do Porto. Quando perguntei ao ‘portuga' sobre a Meia-Maratona de Lisboa (também realizada no mesmo dia da Maratona de Roma), o gajo não perdeu a oportunidade de aflorar a rivalidade entre as duas principais cidades lusitanas, e desdenhou da prova lisboeta, me confidenciando que preferia correr duas maratonas por ano, uma em sua cidade natal e outra fora de Portugal.
Após a rápida conversa no idioma pátrio, tive que buscar fôlego extra para enfrentar a pequena e inoportuna subida da Via de San Gregorio, quase no km 41. Vencido o último obstáculo, avistei novamente o Coliseu: faltava apenas contornar a arena dos gladiadores da antiguidade para completar minha primeira "maratona de 46 km". Após 4:44:15 (ou 5:34:28', segundo o tempo oficial da prova), finalmente tinha em meu peito a medalha da Maratona de Roma, que tradicionalmente é gravada com as palavras "Pace", "Libertá" e "Amore" junto ao desenho da loba que amamenta os irmãos Rômulo e Remo, os fundadores de Roma.
Na zona de dispersão, o clima já era de fim de festa: havia cobertores de alumínio para todos os cantos, maratonistas deitados gemendo como se fossem feridos de guerra. A tarde começava a esfriar e eu terminava aquele 18 de março de 2007 com a sensação de missão (quase impossível) cumprida!