Performance e Saúde admin 2 de setembro de 2011 (2) (134)

Correr em trilhas é legal, desde que se treine para elas

Eu até vasculhei os últimos textos que fiz para a CR procurando em algum lugar por uma promessa formal de não correr mais uma prova longa estando completamente despreparado. Não encontrei ainda, mas tenho certeza que a fiz e que isto está guardado em algum arquivo. De qualquer forma, não demorou muito para quebrá-la, de maneira que em pleno agosto aqui vai minha resolução de ano novo para 2012: não correr provas com mais de 20 km sem estar treinado para isso. Meu conceito de preparo mínimo é poder estabelecer (e alcançar) um tempo alvo que me deixe na primeira metade de concluintes de uma prova.

Não me entendam mal, nada contra completar uma prova devagar, caminhando quando necessário (veja a coluna de Fisiologia na edição de junho), mas o fato é que ficar por horas e horas no percurso é extremamente desgastante, na minha opinião até mais desgastante que completar num ritmo rápido, e já tendo por diversas vezes finalizado provas dessa maneira, resolvi que chegou a hora de trocar de pelotão.

O porquê disso? Bem-vindos a Coniston, cidade no distrito de Cumbria, no norte da Inglaterra. A região dos lagos, onde fica a cidade, é considerada a de natureza mais exuberante do país, e é um forte destino turístico entre os ingleses. Coniston, no entanto, é mais lembrada por uma tragédia: em 4 de janeiro de 1967, Donald Campbell faleceu ao tentar estabelecer o recorde de velocidade de um barco à jato, o Blue Bird K7. Cambell já havia ultrapassado a marca de 300 milhas por hora (483 km/h) quando o nariz do barco empinou fazendo com que fosse arremessado 15 metros no ar, estraçalhando-se na água ao cair. O corpo de Campbell e os restos do barco somente foram recuperados em março deste ano. E é justamente nos entornos deste e outros lagos que a prova se desenrola. O terreno é extremamente acidentado, mesmo quando se está nas margens.

 

MARATONA MODESTA E DURA. A primeira "Maratona de Trilhas de Coniston" foi uma prova bastante modesta, apesar do custo nem tanto. Por quarenta libras (pouco mais de 100 reais) de inscrição, a "camiseta tecnológica" deixou bastante a desejar, e sendo o único item do kit, não precisa dizer mais nada. Fora isso, o processo de retirada do "kit" e número de peito ocorreu de forma tranquila, até porque eram apenas 600 inscritos.

A largada ocorreu no campo atlético de uma escola, e após cerca de 200 m os corredores eram forçado a fazer um "u" por uma porteira de fazenda, o que causou algum engarrafamento. O quilômetro inicial percorre as ruas da cidade, até que o percurso adentre às trilhas, de onde não sai até a linha de chegada. Boa parte delas era tão estreita que acomodava apenas um corredor por vez, então ultrapassagens eram feitas na base do "por favor, com licença, obrigado". Por diversas vezes se passava por portões de fazenda com sistema de porteira dupla, para evitar fugas de animais, o que forçava os corredores a uma parada total. Para completar a brincadeira, no km 31 uma ponte havia caído alguns dias antes, e ainda não havia uma substituta. O rio tinha cerca de 10 a 15 metros de largura, e a água ficava na altura nos quadris.

Corredores de trilhas estão habituados a carregar o seu próprio kit de sobrevivência durante os treinamentos. Talvez por isso ninguém (fora eu) parece ter notado que havia apenas quatro estações de hidratação e alimentação durante o percurso, sendo a segunda no 17º km e a terceira lá no distante 32º. Além de água, duas bebidas de gosto extremamente duvidoso (uma energética e uma eletrolítica) e um tal de Kendal mint cake, uma goluseima local extremamente famosa por ter sido consumida durante uma expedição de sucesso ao topo do Everest em 1953. É uma pasta de açúcar endurecida com gosto de menta e cobertura opcional de chocolate. Talvez até funcione como um doce, mas não durante uma prova.

Até o 18º km eu estava correndo (1h50). Dali até o 24º foi o meu purgatório, e pelo 25º já havia desistido de correr naquela superfície ingrata e estava mais caminhando e trotando, levando 5h37 para completar. O tempo é alto, mas em minha defesa vale dizer que dos 600 que largaram, pouco menos de 400 completaram, nenhum abaixo de 3 horas e apenas 62 em menos de 4 horas.

Como falei lá no início, estimulado pela minha sofrida experiência em Coniston, apresento no boxe minhas considerações sobre o tema "correr em trilhas", que é bem diferente de quando estamos no asfalto.

 

PREPARAÇÃO PARA PROVAS DE TRILHA

A corrida faz parte do grupo dos esportes chamados cíclicos, ou seja, baseia-se na simples repetição de um mesmo gesto inúmeras vezes. Talvez por isso o treino para este tipo de modalidade muitas vezes possui um aspecto reducionista, em que basta treinar variáveis fisiológicas independentes para se chegar a um resultado final. A corrida em trilhas vai direto nesse ponto, pois mesmo que ainda se trate de corrida, o ciclo do movimento não é mais tão simples, e as constantes diferentes inclinações de terreno e tipo de solo alteram completamente a demanda energética ao longo da prova, quando comparada a um percurso mais plano e estável.

A sugestão mais simples para alguém que deseje competir em trilhas é "treine em trilhas". Infelizmente, essa opção é pouco viável para a grande maioria dos corredores urbanos. No entanto, com alguns ajustes no treinamento é possível fazer com que a transição entre o terreno de treino e o de competição seja o menos impactante possível. Dois ponto essenciais a serem considerados numa prova de trilhas são a intensidade das subidas e descidas e o tipo de terreno.

Por mais que estejam habituados a fazer treinos de subidas, corredores dificilmente estão acostumados a fazer provas inteiras subindo, e principalmente descendo. É importante que a pessoa perceba que mesmo que num treino com subidas ele "desça" o mesmo volume, isto é normalmente feito em trotes ou caminhadas, e portanto o grau de carga excêntrica a que a musculatura é exposta é muito menor. As séries de subidas durante os treinos também devem ser de tamanho similar àquelas que serão enfrentadas durante a competição. Uma alternativa é incluir subidas mais longas de forma rotineira nas rodagens altas, estando atento para também realizar os declives em intensidades similares às planejadas para a prova.

Exercícios de propriocepção ajudam. A importância de estar acostumado ao terreno o corredor descobre logo após os primeiros quilômetros de uma competição. Se não estiver adaptado, a impressão é que os joelhos e tornozelos deixam de funcionar perfeitamente, e o número de tropeços, quase quedas, aumenta de forma significativa. Este tipo de preparo pode ser conseguido, pelo menos em parte, fora das trilhas. Corredores podem incluir em sua rotina de musculação exercícios que trabalhem a propriocepção dos membros inferiores.

Alguns exemplos são realizar agachamentos uni ou bi-laterais (uma ou duas pernas de cada vez), pisando em superfícies que diminuam o equilíbrio, como colchonetes altos de EVA, os chamados discos de equilíbrio ou até mesmo uma bola suíça. Uma variação é substituir os agachamentos por simples tarefas de coordenação motora com os braços, dificultando ainda mais o equilíbrio. Com tempo de treino, a evolução no aumento de repetições até que se perca o equilíbrio é nítida. Dentro da corrida urbana, o corredor pode também optar por correr pelo gramado de um parque, por exemplo, ao invés de utilizar a faixa de terra batida.

Ao longo de um evento por trilhas é importante considerar também as diferentes sensações de dor e cansaço da musculatura. Numa prova de rua, por exemplo, o normal é que todos esses sinais aumentem de maneira linear e constante, de forma que o corredor esteja exaurido apenas ao final da prova. Essa não é a realidade de uma prova de trilhas. Algumas subidas ou descidas são simplesmente muito difíceis para que o corredor possa diminuir o ritmo para manter o grau de esforço numa escala linear. Com isso o esforço durante a prova é muito mais errático, com picos que se assemelham à altimetria da prova, e o corredor deve redobrar a atenção aos sinais de dor e cansaço vindos de diferentes partes do corpo. É importante estar atento a alguns grupos musculares, que podem "cansar" antes que outros, devido aos aclives, declives ou irregularidades do terreno, e qualquer um deles, seja uma dor nas costas ou uma cãibra nas panturrilhas, podem por fim às esperanças de conseguir um bom resultado.

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2 Comments on “Correr em trilhas é legal, desde que se treine para elas

  1. Adorei a matéria! Muito divertida (no início) e, por assim dizer, conscientizadora. Um abraço!

  2. Muito legal a matéria, participei da maratona cross de Búzios na categoria solo e parece que revivi em muitos momentos o que passei a corrida…. é algo totalmente diferente e te testa a todo instante, grupos diferentes de músculos são usados e, se não houver um treino adequado antes, fica quase impossível, ou então se termina a prova em quase 8h como aconteceu com algumas pessoas lá. Não é uma brincadeira, apesar de serem provas que nos proporcionem vistas lindíssimas. Um tênis apropriado também é importante!

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