Performance e Saúde Redação 12 de julho de 2011 (0) (97)

De que forma o organismo reage ao exercício

Esse feito só é possível através de profundas mudanças na funcionalidade e capacidade das estruturas que compõem o sistema responsável pela disponibilização e utilização de energia. Como todos os nossos sistemas estão interligados na função de manter o organismo vivo e operacional, alterar a capacidade de um deles implica em modificar todo o resto, de maneira que sempre exista um equilíbrio entre as partes.

Saber o que acontece em nosso corpo com o exercício é a primeira e mais simples das etapas para o entendimento de como as diferentes estruturas irão responder a diferentes tipos de treino. Um segundo passo é entender como elas acontecem, pois somente assim é possível compreender por completo o funcionamento do corpo, e não simplesmente adivinhar o que irá acontecer. É uma questão filosófica, e algumas pessoas podem dizer que basta saber que alguma mudança irá ocorrer no organismo em resposta a um determinado estímulo para que se possa criar um sistema de treinamento. É verdade, eu concordo.

Muito do que se discute em fisiologia hoje são detalhes tão minimalistas do funcionamento de partes do organismo que foge de interesse / utilidade para quem está lidando com aspectos mais superficiais do treinamento físico. Mas é importante que se perceba que entender o funcionamento de nosso organismo em detalhes possui mais aplicações do que o treinamento em corrida. O exercício funciona como uma ferramenta para deixar nosso corpo mais forte e saudável, e as aplicações deste efeito são inúmeras.

Por exemplo, o exercício aumenta a retirada de glicose (açúcar) do sangue, por um mecanismo que não depende da insulina (hormônio responsável pela retirada de açúcar do sangue, entre muitas outras coisas). Existem grupos inteiros de pesquisa dedicados à tentativa de desvendar passo a passo a maneira como o exercício age sobre as células, para facilitar a captação de glicose. O objetivo final é sintetizar uma droga que reproduza os efeitos do exercício, para auxiliar no tratamento de diabetes em pacientes que são resistentes à insulina. No entranto, entender os mecanismos de ação do exercício é uma tarefa árdua, e apesar dos muitos avanços ainda faltam diversas peças no quebra-cabeças.

 

DO ESTRESSE VEM A EVOLUÇÃO. Sem entrar em muitos detalhes, o mecanismo genérico para as alterações fisiológicas decorrentes da atividade física é mais ou este: o exercício nada mais é do que uma forma de estressar nosso organismo. Por estressar entenda-se desestabilizar o sistema. Estruturas são rompidas, estoques de substratos são esvaziados etc. Nosso corpo possui diversos mecanismos de detectar estas mudanças, e ao reconstruir suas estruturas e estoques o faz de forma mais reforçada, para que num próximo evento suporte o mesmo estresse sem grandes dificuldades.

É daí que vem o princípio básico de sobrecarga no treinamento (gráfico). Uma carga de treino irá desestabilizar o organismo, o que é refletido por uma queda aguda de condicionamento. Com o repouso adequado, o corpo irá "reconstruir" as estruturas danificadas, tornando-as mais fortes. Uma sequência de estímulos adequados é o que irá, a longo prazo, melhorar o condicionamento e performance do corredor. Se, por outro lado, o descanso for menor do que o necessário fará com que a nova carga de treino aconteça antes que o organismo tenha se recuperado, e o resultado é que o condicionamento físico e a performance caem com o passar do tempo. Em longo prazo este fenómeno é conhecido como overtraining.

As adaptações decorrentes da corrida podem ser classificadas em três grupos: capacidade de utilizar combustível, necessidade de utilizar combustível e adaptações neurais e psicológicas. Os dois primeiros grupos são muito mais conhecidos e descritos na literatura, sendo normalmente o objetivo primordial das periodizações de treinamento. As adaptações neurais e psicológicas até pouco tempo atrás ficavam em segundo plano, e ocorriam em conjunto com as demais, sem no entanto ganharem atenção específica. Este cenário está mudando rapidamente, e cada vez mais está se procurando entender estas alterações para que possa incluí-las de forma consciente ao se planejar o treinamento de um corredor.

 

QUANTO MAIS OXIGÊNIO MELHOR. A fonte primordial de energia para o corpo humano é uma molécula chamada ATP (adenosina tri-fosfato). Como o nome sugere, o ATP é uma molécula de adenosina ligada a três moléculas de fosfato, e estas ligações são capazes de armazenar energia. Toda a energia gerada no organismo vem da quebra das ligações de fosfato do ATP. A questão é que nossos estoques de ATP são limitadíssimos, e por isso nosso organismo queima gordura e carboidratos para unir novamente a adenosina aos seus fosfatos. Para se ter uma idéia, supõe-se que o organismo produza o equivalente ao seu próprio peso em ATP a cada 24 horas! Os detalhes deste sistema não são importantes aqui; a mensagem principal é que carboidratos e gorduras são necessários para reconstruir a ATP desmontado para produzir energia, e oxigênio é necessário para a queima deles. Daí a importância dada ao consumo de oxigênio em corredores. Quanto mais oxigênio se conseguir utilizar, mais carboidratos e gorduras se queima, mais energia é produzida e finalmente mais potente pode ser o movimento, ou seja, mais rápida a corrida.

A primeira etapa para maximizar o processo que acabamos de descrever é aumentar a capacidade ventilatória do corredor, para que mais oxigênio possa ser absorvido do ar ambiente. Os músculos ventilatórios tornam-se mais poderosos, aumentando a quantidade de ar que circula pelos pulmões. Isso facilita não somente a captação de oxigênio pelo sangue, mas também a extração do gás carbônico, que é produzido durante a queima de substratos. A vascularização dos pulmões também aumenta, pois assim também há mais sangue circulando pelos pulmões, fazendo jus à maior quantidade de ar circulante.

Mas para transportar essa maior quantidade de oxigênio mais mudanças são necessárias: a concentração de glóbulos vermelhos, responsáveis diretos por "carregar" o oxigênio no sangue também aumenta, assim como a quantidade total de sangue circulante. Estamos agora num cenário onde há mais (e mais rico) sangue circulando. É preciso então que o sistema de bombeamento e distribuição seja capaz de suportar sua nova demanda. A musculatura do coração hipertrofia, possibilitando que mais sangue seja bombeado a cada batida. Os vasos sanguíneos também são reforçados, para suportar a maior quantidade de sangue, e finalmente a extremidade dos vasos, chamados capilares, se multiplicam, possibilitando que o oxigênio e nutrientes sejam mais facilmente distribuídos para a musculatura.

A partir deste ponto é preciso que o músculo seja capaz de utilizar estes novos recursos recebidos. Para tal, as enzimas (estruturas responsáveis por "agilizar" as reações químicas" no organismo) responsáveis pela queima de substratos têm sua capacidade e quantidade aumentada. As mitocôndrias, estruturas onde ocorre a queima dos substratos, também aumentam em número e qualidade. Por último, a quantidade de substratos nos músculos também aumenta, como por exemplo os estoques de glicogênio (forma como carboidratos são armazenados no corpo) e gorduras.

 

QUAL COMBUSTÍVEL? Acabamos de ver como nosso corpo se transforma para utilizar mais energia, e por consequência, correr mais rápido. Mas esta não é a única forma de se correr mais rápido ou por mais tempo. Mesmo que aumentem, nossos estoques de carboidratos ainda são limitados, e acabam por limitar nosso tempo de exercício. Além disso, a queima de carboidratos é mais custosa para o organismo em termos de distúrbio da homeostase do que a queima de gordura. Esse é um dos fatores o que nos leva à segunda categoria de mudanças que ocorrem com a corrida: a necessidade de utilizar combustível.

O organismo, agora otimizado, passa a utilizar gorduras com mais facilidade, o que além de mais "barato" energeticamente, ainda preserva os estoques de carboidratos, que são fonte exclusiva de energia para órgãos como o cérebro (precisa falar mais sobre a importância de manter os níveis de carboidratos em equilíbrio?). Além de "economizar" ao tender para a queima de gorduras, o organismo também se beneficia da prática da corrida ao tornar o corpo mais econômico para se locomover em termos absolutos. Com os músculos mais fortes e melhor coordenados, menos energia é necessária para gerar a mesma velocidade. Comparar um corredor treinado a um destreinado é o mesmo conceito de pensar num carro que gaste menos combustível que outro dirigido na mesma velocidade.

O corredor agora possui um corpo melhor, mais potente e de quebra ainda mais econômico. O que falta? Pouco! Falta apenas apenas aprender a utilizar plenamente estas capacidades. Antigamente se acreditava que corredores sempre utilizassem plenamente suas reservas de energia durante o exercício, especialmente em competições, porém mais recentemente ficou comprovado que nosso organismo sempre possui uma reserva de capacidade, uma margem de segurança, digamos assim, e esta reserva parece ser maior quanto mais destreinada for a pessoa.

 

APRENDER A GASTAR BEM. O treinamento então passou a ser não somente o processo de ampliar as capacidades do organismo, mas também o de aprender a utilizar da melhor possível esta capacidade. Este aprendizado se dá tanto de forma consciente, através do planejamento de ritmo, tolerância à dor, aprender a ouvir (ou ignorar) alguns sinais do corpo, como de forma inconsciente, ao se estressar alguns sistemas de forma que eles redefinam os pontos aceitáveis de distúrbio de homeostase.

Um exemplo disso é a linha de estudos com manipulação da glicose sanguínea. Já foi demonstrado, por exemplo, que corredores expostos a situações de hipoglicemia (baixa do açúcar sanguíneo) se tornam mais resistentes, ou seja, passam a tolerar níveis mais baixos de açúcar sem dificuldades. O resultado é que o corredor consegue suportar menores taxas sanguíneas de glicose sem se sentir cansado, correndo mais rápido ou por mais tempo.

O corpo humano possui uma gigantesca maleabilidade, sendo capaz de adaptar-se aos diferentes estresses recebidos, e da mesma forma também é capaz de desmontar estruturas que não necessárias, caso o indivíduo deixe de se exercitar. Em níveis adequados, o exercício melhora o funcionamento da maioria dos sistemas do organismo. Se todos os benefícios listados não forem o bastante para convencer alguém a sair do sedentarismo, o que mais pode ser?

 

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