No início de julho deste ano ocorreu em Liverpool, na Inglaterra, o 16º congresso do Colégio Europeu de Ciências do Esporte e Exercício. O evento reúne pesquisadores de diversas partes do mundo, apesar de pouca participação dos americanos, que preferem o congresso do Colégio Americano de Medicina do Esporte (a maior sociedade do ramo). Por falar em participantes de todo o mundo, este ano um expressivo número de brasileiros esteve na conferência, sinal de que o que se está produzindo em nossas universidades está ganhando cada vez mais reconhecimento. Um detalhe interessante é que boa parte dos nossos pesquisadores acrescenta uma bandeira do Brasil em seu poster ou apresentação de power point, um patriotismo não muito comum entre os demais presentes.
Este ano tive a oportunidade de apresentar parte dos achados da minha própria dissertação de mestrado, e como já fiz em uma outra edição deste congresso, a matéria deste mês falará um pouco sobre o que mais (me) chamou a atenção durante os quatro dias, com centenas de apresentações, simpósios, pôsters etc.
FLEXIBILIDADE E CORRIDA. A questão da flexibilidade era dada como "morta" até alguns anos atrás. A ordem era alongar sempre, antes e depois do treino, e quanto mais flexível fosse o corredor melhor para sua saúde e performance. A lógica desse pensamento era (possivelmente) o seguinte: em primeiro lugar, uma estrutura mais flexível flui melhor e resiste menos ao movimento, consequentemente se lesionando menos; em segundo lugar, a flexibilidade decai com a idade, então possivelmente isso deva ser combatido; e terceiro e não menos importante, atletas de elite alongam, então deve funcionar.
Esta lógica foi muito atacada recentemente, e surgiram todos os tipos de correntes: quem alonga somente antes, quem alonga apenas depois, quem nunca alonga e vários níveis intermediários no meio destes. Estas propostas alternativas se apoiam nos achados de que corredores mais económicos (que utilizam menos oxigênio para correr a uma dada velocidade) tendem a ser menos flexíveis em algumas articulações, e também na inconsistente relação entre flexibilidade e a ocorrência de lesões.
As novas correntes mostram que uma estrutura mais rígida é mais eficiente na transmissão de força e que justamente por ser mais rígida ela estaria mais protegida de atingir comprimentos que causariam lesões. Por rigidez se entende o quanto uma estrutura se deforma quando uma força é aplicada sobre ela. Ou seja, se nossas articulações funcionam como alavancas, e elas funcionam, uma alavanca mais mole perde força quando se deforma (é ineficiente), e mais facilmente atinge graus de deformações perigosos (é mais propensa a lesões).
Um dos trabalhos apresentados no congresso comparou um grupo de ginastas profissionais, com mais de dez anos de prática intensiva de alongamentos, com um grupo de pessoas fisicamente ativas. Com o uso de ultrasonografia para visualizar os tendões, foi identificado o comprimento do tendão patelar durante contrações de extensão de joelho, o popular chuta-chuta das academias.
O surpreendente foi que não houve nenhum tipo de deformação extra nos tendões das ginastas, o que seria esperado por eles serem muito mais flexíveis que o outro grupo de participantes. Pelo contrário, os valores foram até um pouco menores. Isso quer dizer que os tendões de pessoas que praticam altas doses de alongamentos não possuem características diferentes daqueles que não os fazem com regularidade.
SEM ALTERAÇÃO NOS TENDÕES. Este achado indica que quaisquer que sejam as diferenças estruturais responsáveis pela diferença de amplitude de movimento nas estruturas entre quem alonga ou não, elas estão nos músculos em si e não nos tendões como se acreditava. Existe a possibilidade de que são os músculos de quem alonga que se tornam mais longos, sem qualquer efeito nos tendões. Se esse for o caso, isto diminui consideravelmente qualquer risco de "malefício" que possa ser atribuído à prática de alongamentos.
Saindo da discussão teórica, um trabalho prático na mesma área comparou a rigidez da perna com a rigidez de diferentes músculos e tendões durante a corrida, utilizando técnicas sofisticadas de ultrasonografia, imagens em 3D e plataformas de força. O estudo confirmou a relação entre rigidez de diferentes estruturas das pernas e economia de corrida apenas para o tendão do gastrocnêmio medial (panturrilha), enquanto diversos outros tendões e músculos e mesmo a rigidez da perna como um todo não apresentaram qualquer relação com a economia de corrida.
Em bom português, ambos os trabalhos mostraram que para fins de performance e desempenho o grau de flexibilidade de um indivíduo não está relacionado às propriedades mecânicas dos tendões, e estas por sua vez não estão vinculadas com a economia de corrida. Ou seja, indivíduos com menor amplitude de movimento em algumas articulações parecem, sim, ter uma melhor economia de corrida, mas as intervenções de treino de flexibilidade, como as utilizadas hoje, são insuficientes para alterar esse quadro, quer o corredor se torne mais ou menos flexível. Recentemente diversos trabalhos apontaram para uma redução de força logo após uma sessão de alongamentos, e isso vem sendo usado como argumento pelos grupos anti-alongamento.
Um terceiro trabalho na área realizou uma revisão de todo o material já publicado sobre os efeitos do alongamento sobre a força máxima. O estudo mostrou que só existe evidência concreta para este efeito quando alongamentos são concretizados por mais de 60 segundos, o que é extremamente raro em situações reais. Os alongamentos normalmente realizados por corredores, por cerca de 15 segundos quando muito, não possuem qualquer efeito significativo sobre a capacidade de produção de força e, portanto, não são um problema se realizados antes do treino. Além disso, alongamentos para fins de ganho de flexibilidade não devem ser feitos após um treino intenso, quando os reflexos do corpo podem estar prejudicados, pois aí sim os músculos estariam mais suscetíveis a lesões.
ADAPTAÇÕES CIRCULATÓRIAS. A fisiologia do exercício sempre gostou de "separar" os diferentes tipos de treino em zonas, para melhor organizar o que acontece no organismo em decorrência do treinamento. Estas zonas geralmente são estabelecidas a partir de percentuais do consumo máximo de oxigênio ou da frequência cardíaca máxima.
Cada uma destas distintas intensidades é então apresentada como sendo responsável por um diferente efeito de treinamento, e para se montar uma periodização é necessário mesclar os vários elementos, para obter ganhos homogêneos nos diferentes sistemas. Por exemplo, esforços de baixa intensidade, ou abaixo do limiar anaeróbico, que geralmente fica em torno de 70-85% da frequência cardíaca máxima, é a zona de treino para causar adaptações periféricas, como o aumento da densidade mitocondrial (mitocôndrias são os corpúsculos que produzem energia dentro dos músculos), o aumento da quantidade de capilares e a melhora da circulação sanguínea periférica. Já o treinamento de alta intensidade é responsável pelas adaptações centrais, como o aumento da quantidade de sangue no organismo e hipertrofia do músculo cardíaco.
Isso até um grupo inglês mostrar que as coisas não se separam tão bem assim. Em dois trabalhos apresentados a partir do mesmo estudo, os participantes foram divididos em dois grupos: um participou de um treinamento de endurance, com 40-60 minutos de ciclismo a cerca de 65% do consumo máximo de oxigênio, e o outro de um treinamento de alta intensidade, composto por 4-6 séries máximas de 30 segundos de ciclismo. Ambos os treinos foram feitos três vezes por semana ao longo de seis semanas.
Análises obtidas por meio de de biópsias musculares (retira-se um pequeno – mesmo – pedaço de músculo para diferentes testes) revelaram que o grupo de treino de alta intensidade apresentou resultados similares e até um pouco melhores que o grupo de exercício de endurance em diversos parâmetros de vascularização periférica, como quantidade e densidade de capilares.
Foi mostrado ainda que ambos os treinamentos aumentaram a quantidade e o uso de triglicerídeos (gordura) intramuscular e a sensitividade dos músculos à insulina, o hormônio responsável por retirar o açúcar do sangue e colocá-lo para dentro dos músculos, em que é utilizado como combustível para produção de energia.
ALTA INTENSIDADE. Estes dois trabalhos comprovam que as adaptações do organismo estão longe de ser uma exclusividade de uma ou outra "zona" de intensidade, e que criar uma periodização baseado somente nessas ideias, apesar de não ser um sistema falho, é uma ilusão. De quebra, ainda veio a boa notícia para quem não gosta de se exercitar, pois o grupo de treino de alta intensidade conseguiu resultados benéficos para a saúde com cerca de apenas nove minutos de exercício a cada semana!
Reforçando estes achados, um outro trabalho mostrou que uma sessão de seis séries de apenas três minutos, a 90% do consumo máximo de oxigênio, estimulam maior produção de moléculas sinalizadoras do que 50 minutos de corrida constante a 70% do máximo. Estas moléculas são indicativas dos processos químicos responsáveis pelas adaptações estruturais do organismo, ou seja, se uma sessão gera mais moléculas sinalizadoras, espera-se que aquela sessão produza mais adaptações.
MUITA TEORIA. Existe a história que no futuro a medicina estará tão especializada que existirão os médicos para tratar o olho esquerdo e outros para cuidar do direito. Este congresso mostrou que as ciências do esporte estão rumando na mesma direção. Talvez devido à dificuldade em lidar com o assunto, o que menos se viu foram trabalhos com uma aplicação prática para o treinamento das diferentes modalidades. Ao invés disso, os trabalhos estão cada vez mais focados em aspectos microscópicos de uma determinada área ou efeito de algum tipo de exercício.
Enquanto é extremamente saudável que se estudem os mecanismos e detalhes dos diferentes processos fisiológicos associados às distintas atividades físicas, já se nota – ou pelo menos eu senti – uma certa falta de fôlego por parte dos pesquisadores para estudar novas estratégias de se otimizar o treinamento e competição de atletas, o tipo de pesquisa que possui uma aplicação prática mais direta para o grande público.
Talvez o maior esforço nesta área esteja na de suplementação de carboidratos durante o exercício, com novos trabalhos avaliando a composição ideal de dietas e treinamento em jejum, mas esta linha irá precisar de uma matéria exclusiva, então abordaremos o assunto no mês que vem. Até lá!