Performance e Saúde admin 11 de julho de 2011 (0) (571)

Quanto tempo é preciso para se preparar para uma ultra-maratona?

A coluna deste mês dá seguimento a uma história iniciada na edição de abril deste ano. A matéria em questão era sobre quanto tempo de treino é necessário para que um corredor esteja "autorizado" a participar de provas mais longas. A discussão é relativamente nova, pois com a expansão das corridas de rua, o gosto pelas provas curtas parece estar se esgotando rapidamente. Digo esgotando no sentido de que a cada final de semana há uma (ou mais!) prova de 5 km ou 10 km nas cidades grandes e até médias, e os novos corredores, que há alguns anos estavam ávidos por participar de cada uma delas, vão perdendo o interesse por essas provas "convencionais". Depois de algumas de 5 km, a graça é fazer os 10 km, que levam à meia-maratona, que logo se torna monótona e então surge a desejo de fazer uma maratona, e depois quem sabe uma ultra, ou começar no triatlo.

Esse fenómeno de migração de distância está cada vez mais rápido entre os iniciantes, e é provavelmente o responsável pelos tempos de conclusão de provas cada vez mais altos. Se décadas atrás maratonas e ultras eram provas para corredores sérios, com tempos invejáveis mesmo entre os últimos colocados, hoje estes eventos são marcados pelos grandes grupos que cruzam a linha de chegada minutos ou segundos antes de o pórtico ser fechado.

Os corredores "das antigas" podem guardar algum rancor dessa nova tendência, e há de se entender o ponto de vista deles. Eventos antes destinados aos mais aptos corredores, hoje estão ao alcance das massas, e de certa forma perde-se um pouco da magia em torno da figura do corredor que participa destas provas. Eu já estive lá, já participei de provas de longa distância, de triatlo e de corrida. Depois da prova alguém de fora do meio sempre comentava como é incrível ter conseguido completar a distância etc e etc. Agora, muitos dos que completam apresentam um físico que pouco lembra o corredor "de antigamente". Esta nova leva de corredores treina um bocado a menos do que os que chegam entre os primeiros 50%, e em sua maioria caminham por boa parte do percurso.

Como comentamos naquela matéria de abril, há ainda de se descobrir se existe um tempo mínimo de prática para que uma prova de longa distância possa ser encarada sem grandes consequências futuras, assim como sobre qual a mínima quantidade de treino que pode ser considerada preparação bastante para uma maratona ou ultra. Não estava nos meus planos recentes tentar responder a essas perguntas, mas alguns acontecimentos pontuais mudaram o itinerário.

 

PREPARAÇÃO MÍNIMA. Há tempos estava em conversa com um pesquisador visitante em nossa universidade, aqui na Cidade do Cabo, sobre qual prova de ultra-distância deveríamos fazer antes que ele deixasse a África do Sul. Nossos critérios nada tinham a ver com a distância da prova, e sim com variáveis como em qual a relação preço de inscrição versus kit do corredor mais alimentação disponível durante e após a corrida era mais benéfica. Esta discussão começou ainda ano passado, quando nenhum de nós estava treinando para nada, exceto duas ou três sessões de academia por semana.

No início de março eu e Harry (o visitante em questão) saímos para uma corrida, alternando 15 minutos de corrida com 5 minutos de caminhada (quatro séries). Durante a corrida voltou aquela conversa sobre participar de uma prova de longa distância, e pela época do ano a única candidata era a Two Oceans Marathon, prova de 56 km realizada em Cape Town, sempre no sábado de Páscoa.

Talvez inebriado pela 1h20 de corrida, no final do treino Harry estava fazendo associações do tipo "se eu consigo fazer 4 x 15 minutos com 5 de pausa, com um pouco de treino eu consigo fazer os 56 km". Sem prestar muita atenção, eu devo ter respondido algo como "é, deve dar". Algumas horas após nosso treino Harry me enviou uma mensagem com a confirmação da inscrição dele na prova. Nada mais a fazer a não ser a minha própria inscrição e uma planilha de treino que parecesse o menos absurda possível.

 

APENAS 6 SEMANAS. A idéia por trás da periodização era simples: tentar chegar num volume razoável da maneira menos traumática possível, de forma que houvesse tempo o bastante para a recuperação antes da prova. O primeiro passo, como em toda a periodização, foi estabelecer um objetivo. Como já havia comentado em edições passadas da CR, uma estratégia interessante, especialmente quando não se está em pico de condicionamento, é trabalhar a partir do mínimo aceitável. Ou seja, qual a pior performance aceitável para que o resultado ainda seja considerado positivo. Em nosso caso, infelizmente, o pior aceitável era completar no tempo limite de 7 horas.

Partimos então para o período total de treino que teríamos, seis semanas até o início da prova. Considerando um tempo de polimento de duas semanas, menos que isso e nunca estaríamos recuperados, tínhamos quatro semanas de "progressão". A idéia central do planejamento era ganhar tempo nas pernas, sem qualquer preocupação com ganho de velocidade, o que geraria um estresse a mais no organismo, tudo o que não precisávamos. A velocidade de corrida provavelmente aumentaria um pouco por si só, e qualquer ganho seria bem-vindo.

Para os treinos longos, cujo principal objetivo é acostumar o corpo ao tempo total de exercício, optamos por trocar longos de corrida por longos de caminhada. O objetivo era possibilitar treinos longos com duração similar à da prova, mas que ainda nos permitissem treinar dois dias depois. A Cidade do Cabo oferece inúmeras trilhas de caminhada por montanhas, então caminhar por ali não é nada como caminhar no parque, e frequências cardíacas na casa dos 150, 170 não eram incomuns.

 

CAMINHADAS E CORRIDAS. Também ficou claro desde o início que teríamos que caminhar – bastante – durante os 56 km. Programar caminhadas reduz substancialmente o desgaste do corpo durante a prova, principalmente nos músculos e articulações. Existe uma grande diferença entre correr por 2 horas ininterruptas ou realizar seis séries de 15  minutos de corrida com 5 minutos de caminhada. É importante considerar qual a diferença entre o tempo de corrida e o de caminhada. Escolhemos 15 minutos porque era o tempo que Harry conseguia correr sem se sentir muito cansado, e porque meu joelho normalmente começa a doer em cerca de 12-15 minutos de corrida, então estaríamos sempre às vésperas de caminhar quando começássemos a perder controle de nossa forma.

Quando se cria um plano assim, é importante começar a caminhar desde cedo, e não quando não se consegue correr mais. Alternando desde o início, nossa meta era correr a 6 minutos/km, um trote confortável para ambos, e caminhar a 12 min/km, uma caminhada um pouco menos confortável, mas ainda assim longe de ser difícil. Esse sistema nos levaria a 19 sessões de corrida, e um tempo final de 6h13, o que nos daria 47 minutos para lidar com imprevistos. Outro ponto do planejamento era levar as corridas em treino para 20 minutos, ao invés dos 15 minutos planejados para a prova. Assim, correr durante a prova, ao menos nos estágios iniciais, seria mais fácil do que em treino.

Mas houve um abismo entre o que planejamos fazer e o que foi efetivamente realizado. Ao final da terceira semana, voltando de nossa caminhada de 6 horas, Harry sofreu uma distensão do poplíteo (músculo estabilizador, atrás do joelho). A lesão, apesar de ligada ao treino, teve uma boa dose de azar: logo após o treino Harry estava correndo para atravessar uma auto-estrada com seu cachorro quando sentiu a lesão. Julgando não ser muito grave, Harry resolveu "correr por cima" nos próximos dias, o que funcionou até o próximo treino de velocidade, quando a lesão possivelmente se agravou. A consulta ao fisioterapeuta não destruiu os sonhos da prova, mas a 10 dias da prova Harry ainda não conseguia correr 400 m. Em solidariedade, também parei de treinar.

 

A LARGADA, NA PORTA DE CASA. Na quinta-feira antes da prova, conseguimos fazer três séries de 10 minutos de corrida com 5 minutos de caminhada. Na sexta-feira participamos da International Friendship Run, uma boa idéia dos organizadores na forma de uma "corrida" de 4 km por pontos turísticos da cidade para os atletas internacionais. Harry ainda estava reclamando de dores no joelho.

No sábado, madrugada da prova que larga exatamente em frente ao portão de minha casa, liguei para ele para confirmar sua participação. Ele disse que iria largar, e que estava com amigos esperando na altura do km 16, onde ainda é possível pegar um trem de volta, depois do banho de mar. Seis e meia da manhã e enfim, largamos. Os primeiros quilômetros passaram-se rapidamente. A cada vez que caminhávamos ouvíamos corredores e público perguntando o que havia acontecido, já que estávamos no começo da maratona. Passada a primeira 1h40 de prova e estávamos em território desconhecido dos treinos de corrida, mas ainda nos sentindo bem. Fechamos a meia maratona em 2h01, e cerca de 2 km à frente do planejado. Pela altura do km 25 senti que o ritmo dele começou a cair, e no 28 já tínhamos perdido os 2 km de vantagem.

A Two Oceans é uma prova traiçoeira. Os primeiros 28 km são praticamente planos, mas na segunda metade há grandes subidas e descidas. A partir do km 29, e com uma subida constante de cerca de 4 km pela frente, tivemos uma "pausa" de 10 minutos de caminhada, seguida por intervalos que caíram para 5 minutos de corrida por 2 de caminhada. Quando chegamos no topo da subida, no km 33, Harry me disse para deixá-lo para trás, pois ele iria somente até a marca da maratona. Busquei um pouco do tempo perdido nos próximos quilômetros, pois sabia que de qualquer jeito estaria quebrado para os últimos 6 km. Fechei a prova em 6h42, dentro do limite do administrável, mas não que pudesse ter sido muito mais rápido. Harry completou a maratona em 5 horas, e mesmo que quisesse ter continuado havia perdido o tempo limite para passar o pórtico da maratona.

 

VALEU A PENA? Da minha primeira Two Oceans, em 2007, havia ficado a promessa de não entrar em uma prova sem estar preparado para fazer um tempo que me deixasse entre os primeiros 50% participantes. Assim foi por quatro anos, até que mais uma vez lá estava eu entre os corredores dos últimos pelotões. Possivelmente se as 6 semanas de treinos tivessem sido seguidas à risca poderia ter cortado uns bons minutos do tempo total, e Harry teria chegado mais próximo da chegada, ou talvez mesmo conseguido fechar a prova dentro das 7 horas. Mas foram apenas três semanas de treino, e até que ficamos satisfeitos com o resultado.

Quanto mais tempo para se preparar pra uma prova, melhor. Como já foi assunto da edição de abril, a maioria dos treinadores prevê cerca de seis meses para uma periodização bem feita com o objetivo de "sobreviver" a distância da maratona. Dependendo do nível inicial de aptidão física, e da velocidade com que o corpo do corredor se adapta, este tempo pode ser menor, aparentemente sem grandes consequências.

Antes de iniciar algo do tipo, no entanto, mostre seus planos para dois ou três técnicos que você julgue competentes, e não hesite em pedir uma segunda opinião. Treinadores diferentes seguem linhas diferentes, e às vezes um pode recusar veementemente um desafio que o outro aceitará sem grandes ressalvas. Não quer dizer que um é melhor que o outro, e como corredor você deve estar sempre atento a questionar um sim ou um não, e ao topar um treino assim, estar pronto para, talvez, voltar pra casa no fim do dia sem a medalha.

O PORQUÊ DO NOME

A Two Oceans em Cape Town, ou Dois Oceanos na Cidade do Cabo, tem esse nome porque a prova passa ao lado do Oceano Índico e do Atlântico. Essa belíssima cidade da África do Sul está localizada no extremo sul do continente, daí essa posição estratégica.

 

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