Blog do Corredor Notícias Redação 4 de outubro de 2010 (0) (198)

O dia em que parei um trem

 

"No dia 6 de junho de 2010 eu parei um trem." Essa frase dita pelo super-homem não causaria muita surpresa, mas dita por um maratonista brasileiro pode causar impacto. Mas é a pura verdade. O trem de carga americano nº 6570, que faz a linha Bozeman-Missoula, parou – por volta das 11h30- para dar passagem aos maratonistas da The Lewis and Clark Marathon, realizada nas montanhas geladas de Bozeman, pequena e acolhedora cidade de Montana, EUA.

Para os americanos, normal. Mas para quem está acostumado a ouvir desaforos de motoristas em Curitiba e Porto Alegre, uma façanha e tanto. Sem falar que o próprio maquinista desceu daquele mostrengo fumegante, que continuava com os motores ligados, e cumprimentou com um – digamos – pouco sutil tapa nas costas os maratonistas que se aproximavam do final da prova. O tapa de um maquinista é mais que um tabefe, é um incentivo para que um dia consigamos conquistar o respeito e o espaço que esse nobre esporte tem nos EUA. Nas terras do tio Sam, correr é uma atividade respeitada, apoiada, com milhões de adeptos, ao ponto de uma pequena maratona de uma cidade do interior consiga, não só parar o trânsito, mas uma ferrovia.

Tudo começa numa manhã gelada e chuvosa no estádio da Montana State University. Eram 6 horas, e os ônibus escolares amarelos ligam o motor e partem para a local da largada da prova. A maratona começa às 7 horas no Jackson Creek Road, ponto histórico no parque das Bridger Mountains. Local por onde passaram Lewis e Clark, heróis americanos, que escalados pelo presidente Thomas Jefferson, em 1803, fizeram a epopéia de viajar e mapear as terras que vão do Rio Missouri até o Oceano Pacífico. Enfrentando índios, neve, ursos e um infindável número de penhascos e rios, essa maratona durou três anos. Coisa pra Dean Karnazes nenhum botar defeito. Lewis e Clark estão para os EUA assim como os bandeirantes estão para o Brasil.

Se eles enfrentaram neve, os corajosos 73 maratonistas tiveram que enfrentar vento e uma chuva gelada. Os picos das montanhas com neve faziam um quadro pouco animador. Estava lá eu tentando me convencer que estava certo, que não seria uma indiada, troféu cocar Cherokee, Moicano, sei lá a tribo. Pensava: corro de camiseta ou de jaqueta? O vento cortava como língua de sogra, e eu estava com duas camisetas. Uma da Contra-Relógio por baixo e a do meu grupo de corridas do sul, os Macarunners, por cima. Ainda pensava em tirar o número do peito e colocar na jaqueta corta vento quando ví algo que custei acreditar. Dois corredores estavam a postos na largada, sem camisa. SEM CAMISA! Como se estivessem numa praia de Ubatuba. São metidos esses gaúchos de Montana, pensei. Nem bem tive tempo de me ater a esse detalhe e o organizador da prova avisa pelo megafone improvisado (as mãos em concha): "Um minuto para a largada!" Foi o tempo de colocar a jaqueta na mochila e jogá-la na picape do próprio. Tudo muito simples, a largada foi com uma buzina. Duvido que algum maratonista nunca tenha pensado nisso durante uma largada: "O que eu estou fazendo aqui?" Era tarde. Os sem camisa saíram como uns doidos e agora a única maneira de voltar era correndo, pois os ônibus já tinham se mandado.

 

NADA DE URSO, SÓ UM VEADO. Foi o que eu fiz. Meio covarde, por causa das montanhas geladas e do vento. Como toda maratona, os primeiro quilômetros são só alegria. Mesmo assim, o frio congelava qualquer tentativa de sorriso. Como era um parque, nenhuma viva alma para assistir. A não ser esquilos e pássaros. Corvos gordos baseados numa rica dieta de minhocas gigantes chegavam a passar em rasante.

A cada milha, não quilômetro, uma placa. E a cada 5 milhas (cerca de 8 km) um posto com água e isotônico. As subidas leves se alternavam com leves descidas. Até chegar à milha 14, começa uma ladeira morro acima de 45º. Para piorar, de cascalho redondo, solto como arroz feito por uma boa cozinheira. Aquele calvário durou mais ou menos um quilômetro de sofrimento, calculava eu. Melhor nem pensar. Depois da tempestade, a bonanza (não o seriado americano…), uma boa descida, um aclive de duas milhas. Aos poucos fui percebendo a encrenca onde havia me metido. Eram subidas e descidas. Subidas e descidas. O frio e o vento ficaram em um segundo plano. A chuva fina havia cessado e o sol tornava a decisão de deixar a jaqueta na mochila cada vez mais acertada.

Milha 19. Calculando mentalmente, cheguei à conclusão, que devia estar pelo km 30. A hora da verdade, hora em que o urso pula nas costas. No caso de Montana, encontrar o urso era uma possibilidade muito real. Os ursos são muitos naquela região, incluído o temido grizzly bear, cinza, que naqueles dias – começo da primavera – estava saído da hibernação. Com fome! Era só o que me faltava. Mas os deuses da maratona me pouparam dessa. O único mamífero selvagem que avistei foi um veado, bicho. Um "elk", um veadão criado a Toddy que ficou impassível pastando e olhando com cara de pouco interesse. Nada de urso.

Vislumbrando a chegada, foi aí que ouvi o apito do trem. Tá… mais essa! Na entrada da cidade, o carro do xerife, com as luzes ligadas, sinalizava pista livre para os maratonistas. Éramos quatro, e paramos o trem. Após passarmos, ouvi o monstro de ferro apitar de novo e se colocar em movimento. Foi a glória.

A chegada no estádio não foi tão emocionante quanto parar um trem. Já tinha um sol forte e o calor se fazia presente. Mais uma volta pela pista olímpica com piso anti-impacto, e a medalha no peito com o tempo de 4:18:39. Nada mau pela pedreira da prova e a costumeira falta de treino e aplicação. E único estrangeiro dos 70 que finalizaram a prova. Tendas com massagens, água, isotônicos e pizzas. Muuitas pizzas… O vencedor foi um tal de Mathew Adams, de Bozeman, com o tempo de 2:38:08. Mais tarde fui saber que era um daqueles pelados da largada!

Nota da redação:  Nosso cartunista está fazendo uma temporada nos EUA, pescando trutas e salmões, correndo e tendo aulas de inglês.

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