"Minha vida começou a mudar quando decretaram que eu não poderia continuar escrevendo com a mão esquerda. Depois de um tempo passei a usar a direita, mas meu cérebro só entendeu metade da mensagem. Continuei sendo canhoto de pé e jogando de ponta esquerda no time do colégio.
Na minha adolescência o fascínio pela música me levou a tentar aprender a tocar guitarra e violão. Foi quando percebi os danos que aquela correção haviam provocado em mim. Eu tinha muita dificuldade com os movimentos simultâneos das mãos e meu sonho de me tornar um guitarrista veloz não tinha a menor chance de se concretizar. Foi aí que uma das características necessárias a um maratonista aflorou em mim: nunca desistir.
Fui atrás da minha vontade de conhecer o mundo do jazz e procurei tentar formar uma identidade musical onde a velocidade foi deixada de lado e passei a criar melodias simples com harmonias complexas. Meu trabalho chamou atenção de Joe Pass, um dos maiores e mais velozes guitarristas de jazz de todos os tempos. Com ele estive várias vezes em Los Angeles, e minha carreira foi se solidificando com os CDs e LPs que gravei. Toquei com lendas do jazz e realizei meu sonho, mesmo não sendo um mestre da velocidade e não sabendo ler partituras.
O COMEÇO EM JUIZ DE FORA. Aos 49 anos comecei a fazer umas caminhadas na Universidade Juiz de Fora e conheci a Turma das Sete, um grupo de amigos que se reúne as terças e quintas para fazer treinos de corrida e um bom bate papo. No começo acho que gostava mais da conversa fiada do que das corridas. Sempre estava no último pelotão, mas comecei a notar que resistia bem aos treinos longos.
Logo comecei a participar de dez milhas, meias-maratonas e foi quando aconteceu o inesperado: uma fratura de stress na tíbia esquerda, acompanhada de rotura parcial de um músculo da panturrilha. Ao perceber a gravidade da situação fui fazer minha recuperação na piscina e percebi que tinha outra característica de um maratonista: disciplina. Da piscina passei pra musculação e com a ajuda do Eduardo Baptista, personal de Juiz de Fora que me acompanha até hoje, recuperei a força das pernas e voltei a correr.
Minha volta se deu numa maratona de revezamento no autódromo de Interlagos em comemoração aos cinquenta anos de Ayrton Senna. Nossa equipe ficou em sexto lugar no meio de sete mil corredores e acredito que devido à minha performance meus colegas não subiram ao pódio. Tomei o gosto de novo pelas corridas e fiz minha primeira maratona, no Rio de Janeiro. Quando terminei a prova jurei que jamais faria uma loucura dessas, mas já completei 24, todas a partir dos meus 50 anos.
Em novembro de 2014 estive numa maratona em Búzios solo e depois de 6h45 percebi que realmente resisto bem aos esforços, vindo então a ideia de fazer nove maratonas oficiais em 2015, de uma maneira segura e sem riscos de lesões. Passei a treinar seis vezes por semana, realizando treinos na areia da praia da Barra da Tijuca, onde moro atualmente, e musculação intensa. Ela me deixou mais forte, mas acho que fiquei mais lento ainda.
Não foi fácil encaixar esses treinos na minha rotina profissional. Como médico, estou sempre trabalhando até tarde da noite, de segunda a sábado, o que dificulta muito o planejamento de treinos e alimentação. Viajar também não era fácil, pois precisava deixar de trabalhar no sábado e, para quem tem consultório, a assiduidade ao trabalho faz toda a diferença em termos de remuneração.
EM BRASÍLIA, A PRIMEIRA. Em março comecei minha jornada pela Maratona de Brasília, com um físico mais forte depois de quatro meses de preparação. A mudança no trajeto, em relação há dois anos, deixou o final da prova mais difícil com subidas leves, mas constantes. O clima não estava seco no dia, o que ajudou bastante. Durante a prova, numa daquelas retas longas, ao passar por um ponto de água a menina me perguntou se havia mais alguém atrás de mim. Acordei, acelerei e consegui alcançar e ultrapassar muitos corredores que quebraram no final.
A segunda maratona foi a de São Paulo, que vale destacar com uma organização bem melhor que no ano anterior. Uma indisposição quase me tirou da prova, terminei bem desgastado e um tanto desidratado. O bom de ter amigos nessa hora são os incentivos que a gente recebe; depois de mais de cinco horas de prova e cãibras escutei a seguinte pérola: "Quando o doutor Chico chegou, estavam desmontando tudo, os camelôs já tinham ido embora e o churrasquinho havia acabado."
A próxima foi a de Porto Alegre. Lá eu tenho meu melhor tempo em maratonas: 3h56. Uma maratona excelente pra quem vai fazer sua primeira, pois o trajeto plano e a temperatura agradável fazem dessa prova a ideal pra tentar conseguir boas marcas. A do Rio de Janeiro foi uma festa maravilhosa, muita animação, muita gente bonita e uma paisagem maravilhosa.
Num intervalo pequeno veio a Maratona de Florianópolis. No avião acabei ficando ao lado do tenista Guga, com quem pude conversar e constatar a simplicidade de um verdadeiro campeão. Ele me desejou boas vindas e uma boa prova. Eu não precisava mais nada. A corrida apresenta um percurso sem dificuldades, mas trata-se de uma maratona com ida e volta no mesmo percurso o que pra mim desanima um pouco, mas foi um momento mágico.
Próxima parada: Foz do Iguaçu. Maratona que exige um bom preparo dos corredores, num trajeto com muitas subidas e que fica mais difícil ainda dentro do parque, porém termina de forma magnífica, quando avistamos as Cataratas. Ótimo ambiente. Pude conversar com corredores da elite na ida para o hotel, o que me motivou muito.
Num dia de forte calor no Rio, fui pra Porto Alegre participar da maratona do Rio Grande do Sul, minha primeira noturna. Eu não estava preparado para o frio intenso que fazia naquela noite lá. Senti muito frio antes da largada, procurei um café pra aquecer, mas os corredores só tinham chimarrão e eu preferi não arriscar devidos as propriedades laxativas do conhecido chá. Virei bem na meia, com 2h05, mas depois começaram meus problemas: a temperatura foi caindo cada vez mais e o vento gelado vindo do Guaíba me tornou presa fácil em virtude da minha roupa inadequada para aquele clima. Meu corpo pedia pra parar e a mente mandava prosseguir; ali eu pude ver como o preparo mental é importante numa maratona.
Pelo quinto ano seguido participei da maratona de Curitiba. Adoro a cidade, me sinto bem lá. A prova provavelmente é a mais técnica de todas devido às subidas e descidas fortes que exigem uma musculatura bastante fortalecida. Não é uma prova pra se conseguir bons tempos e tem uma subida bastante difícil depois do km 38.
A ÚLTIMA EM SALVADOR. Em dezembro eu terminei o ano na Maratona da Bahia, Salvador. Acho que devido ao forte calor essa corrida não atrai muitos participantes, mas é bem organizada com trajeto plano pela orla da praia. Esse ano algumas obras no percurso atrapalharam um pouco e o calor estava demais, exigindo bastante atenção com a hidratação.
Completei meu objetivo sem nenhuma lesão durante o ano e comemorei muito. Correr as nove maratonas aos 57 anos foi uma experiência de vida fantástica. Conheci muita gente, convivi com atletas de ponta, pude ver as dificuldades de patrocínio nesse esporte, mas também descobri muita superação dessas pessoas, verdadeiros vencedores anônimos.
Mesmo não sendo veloz encontrei meu espaço no mundo da corrida e percebi que, assim como na música, todos têm seu valor. As características diferentes de cada um e a capacidade de adaptação aos desafios propostos, aliadas ao trabalho duro, necessário para conquistar qualquer objetivo na vida, fazem com que sejamos todos vencedores.
Eu já consegui entrar para o Ranking Brasileiro de Maratonistas da revista Contra Relógio em outros anos, mas em 2015 meu objetivo era diferente e foi alcançado. Acho que poucos brasileiros terão o prazer de concluir um projeto desses. Foi duro e difícil, mas foi vencido um passo de cada vez, uma maratona de cada vez. Mudou a minha forma de ver a vida e mostrou que desde o começo eu estava inconscientemente desenvolvendo as habilidades necessárias para um desafio desses. Hoje sou um corredor melhor, um médico melhor e um músico melhor, e me sinto pronto para encarar qualquer desafio da vida."
AS 9 MARATONAS
Brasília 4:59:31
São Paulo 5:09:49
Porto Alegre 4:18:35
Rio de Janeiro 4:35:51
Florianópolis 4:43:24
Foz do Iguaçu 4:38:01
PoA (noturna) 4:56:16
Curitiba 5:12:28
Salvador 5:16:05
Obs.: Curzio somente não participou da Maratona de Fortaleza