Há muito tempo, quando comecei a gostar de corrida, li o livro de Dean Karnazes, "O Ultramaratonista", no qual ele relatava o desafio de se preparar e fazer uma ultra. Assim como ele, a corrida se iniciou para mim meio tarde, e os desafios se tornaram uma constante. As provas de 10 km, meias e maratonas acabaram me conduzindo às ultras e nos dois últimos anos o meu foco e sonho foi a Western States 100 miles Endurance Run, 162 quilômetros pela cordilheira de Serra Nevada, na Califórnia.
Incluí no meu currículo, nestes dois anos, os 50 km do Desafrio Urubici, duas Comrades, 100 km na Argentina, 24 horas de Campinas e algumas de 6 e 12 horas, que na realidade foram partes de um grande treino para a prova americana. Ela ocorreu no dia 23 de junho, com largada às 5 da manhã, envolvendo 450 corredores.
Assim como a Comrades, tela nasceu do desafio entre amigos, sendo que até 1974 era disputada a cavalo, a Tevis Cup 100 miles. Naquele ano, um dos competidores, Gordy Ainsleigh, teve o seu animal machucado às vésperas da competição, e ele, desafiando seus companheiros, resolveu percorrê-la a pé. Após 23 horas e 42 minutos, lá estava ele, para descrédito de todos.
São 100 milhas, descendo e subindo vales, por trilhas de degelo ou escarpas onde só cabrito montanhês fica em pé, de Squaw Valley, uma estação de esqui (local onde foram realizados os Jogos Olímpicos de Inverno em 1960) até Auburn, a 200 km de São Francisco.
NÃO MAIS A CAVALO. A partir daquele ano esta prova deixou de ser feita a cavalo e tornou-se um dos desafios mais procurados pelos ultramaratonistas na Califórnia. Hoje, o tempo-limite foi aumentado para 30 horas, devido às constantes mudanças climáticas. Este ano lá estava ele novamente, Gordy Ainsleigh, um indivíduo carismático, que não aceita homenagens, mas infelizmente pela primeira vez nestes 38 anos, ele, o idealizador da corrida, não conseguiu completá-la. Porém, como bom anfitrião, participou até o final na cerimônia de encerramento.
O clima desta ultra se inicia no final do ano, quando ocorre uma "loteria", na qual aqueles que foram previamente aceitos por seus currículos concorrem a uma vaga. São mais de mil inscritos para estas 350 vagas iniciais. Existem outras 100 vagas que são divididas entre os estrangeiros, também selecionados por currículo, e atletas de elite convidados.
Após a pré-inscrição, é necessário esperar até novembro, quando acontece a sessão da "loteria", que é transmitida ao vivo. Caso não sejamos sorteados, temos que aguardar a decisão por currículo, e aí são dias angustiantes até a chegada do e-mail confirmando nossa possível aceitação, pois para confirmá-la temos que fazer um trabalho voluntário em uma prova, com o atestado de reconhecimento do diretor.
Para mim foi muito gratificante realizá-lo, pois através do meu amigo e treinador "Branca", conheci o trabalho de voluntariado da Corpore. E o que parecia uma obrigação, revelou-se um prazer; fiz o curso, me tornando um Guia Voluntário da Corpore. Isso foi muito importante para que reconhecêssemos o esforço que os 1.500 voluntários fariam por nós durante as 30 horas da ultra.
Sem dúvida que a Western States 100 miles Endurance Run é uma transformação de vida, de atitudes, de humildade e perseverança para todos os participantes.
COM AJUDA DE PACERS. Na segunda-feira, minha esposa Célia e eu saímos de São Paulo, chegando na terça-feira pela manhã em São Francisco. Pegamos um carro no aeroporto e fomos direto para Sacramento (capital administrativa da Califórnia). Lá ficamos até quarta, pois o nosso intuito era encontrarmos o meu "pacer", Dan Tyree, que correria comigo durante o período noturno.
No site da prova (www.ws100.com) eles disponibilizam um espaço para aqueles que desejam "pacers", que são corredores voluntários que já fizeram esta prova, ou ainda não conseguiram inscrição, mas desejam treinar para próximas.
Fomos para Squaw Valley à tarde e, no dia seguinte, demos uma volta em torno do Lake Tahoe; para quem se lembra do seriado Bonanza, aí ficava o rancho Ponderossa dos Cartwright, mas infelizmente está fechado para reformas.
Na quinta à tarde e na sexta, durante o dia acontecem várias "clínicas" sobre alimentação, hidratação, e sobre o que eu não quero nem me lembrar, bolhas.
Durante a retirada do kit, a pressão arterial é medida e somos pesados. Estes dados são colocados em uma pulseira que a partir deste momento só poderá ser retirada ao final da prova, ou em caso de desistência por questões médicas ou por ultrapassar os "cut off" (tempo-limite) determinados para cada uma das 10 estações no percurso.
CONTROLE RÍGIDO DE PESO. Em um desses pontos de controle, já durante a madrugada, ao ser pesado, o paramédico comparou o meu peso com o da pulseira, e como estava mais que 7 % acima do peso inicial, ele simplesmente me disse "fora!". Quase entrei em desespero, pois estava mantendo o peso bem próximo do inicial em todas as estações anteriores. Então percebi que não tinha retirado o cinto com as garrafas durante a pesagem. Ele não queria voltar para conferir, mas eu fiquei em cima da balança estático e o venci por insistência, fazendo com que verificasse o peso novamente. Com o peso dentro do permitido, pude continuar a prova, porém fui alertado que estaria sendo monitorado até o próximo posto.
Pode parecer duro demais, mas na realidade estão cuidando de nossa saúde. Pior que a desidratação, facilmente resolvida, é a hiper-hidratação que pode levar a edema cerebral, convulsões e arritmias cardíacas.
A prova se inicia no sábado e, apesar de a largada ser dada às 5 horas da manhã, a retirada do número é feita uma hora antes, durante o café da manhã oferecido pela organização. Tudo funciona perfeitamente, sem atropelos.
O clima esperado era frio no início e muito calor no final da prova, porém uma mudança climática repentina trouxe muito vento com uma leve chuva e neve no pico, com sensação térmica de alguns graus negativos. Durante a madrugada cruzamos o American River com água gelada e muito frio (este ano foi atravessado caminhando, já que o nível não estava muito alto).
Para dez das estações podemos enviar, na véspera da saída, as "Drop Bags", com roupas, tênis ou algum energético que estamos acostumados a utilizar. Além disso tudo, acrescentei "band-aids". Meus pés doíam, mas só me atrevi a trocar de tênis quando molhou ao atravessar o rio, pois sabia que meus pés eram uma bolha só. Logo após cruzarmos o rio, há um posto onde trocamos de roupa, mas o frio era tanto, que perdemos totalmente a coordenação, e aquele ato tão simples de trocar de tênis, shorts e camiseta parecia a coisa mais difícil do mundo.
O percurso é repleto de lugares maravilhosos inacessíveis para a maioria da população, já que é uma reserva de preservação natural. Geograficamente, após o trecho inicial de quase escalada, na qual subimos 777 m em 6,5 km, descemos de uma cidade à outra, com um desnível total de aproximadamente 8.000 m, porém com várias subidas íngremes no meio dessas descidas.
Como nunca tinha feito percurso tão longo, resolvi transformá-lo em partes. Dessa forma, para mim só interessava a distância entre uma estação e outra, e quanto tempo havia para o próximo "cut off" para as 30 horas.
O meu "pacer", Dan, havia combinado de me acompanhar nos últimos 60 km, porém quando faltavam 24 km, percebi que estávamos muito próximos do corte e, apesar da dificuldade do terreno, pedi para eu ir à frente. Ele é um indivíduo muito forte, mas o ritmo que imprimimos acabou minando suas forças e, com uma atitude de humildade, preferiu que eu fosse sozinho. Nos 10 km seguintes, não sei como, simplesmente "voei", pois não aceitava ter chegado até aquele ponto e ser cortado no final. Como diz meu treinador, nesta hora é a alma e não o corpo que nos conduz.
Quando cheguei à última estação, a 4 km do final, tinha uma hora de sobra, e a namorada do Dan estava me aguardando para corrermos juntos. Em Auburn, por onde passávamos, a festa era grande, principalmente quando percebiam que eu era do Brasil e, como não podia deixar de ser, tudo virou Carnaval.
No final, ao chegarmos ao estádio local, lá estava o Dan nos esperando. Juntos, demos a volta na pista com a Bandeira do Brasil e atravessei o portal de chegada com o locutor gritando meu nome e repetindo "Brasil, Brasil!". Nem precisa dizer que nós nos desmanchamos em lágrimas, pois no pórtico de chegada, estava a bandeira brasileira junto com as outras dos diversos países que tinham atletas competindo, o que me encheu de orgulho, pois pela primeira vez representava o nosso país, sozinho.
Completei em 29 horas e 19 minutos, com muitas bolhas e algumas unhas perdidas. Realmente inesquecível! Ao final, 316 corredores finalizaram, com 20% de desistência.
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Sensacional !!!
Essa eu tenho vontade correr um dia .., quem sabe daqui a uns 10 anos.
Até lá, é treinar, treinar e treinar.