Brasileiros lá fora – Ely Behar – AGOSTO 2008
A decisão de correr Passatore foi inicialmente para ser a qualificatória para a corrida Spartathlon de 246 km, que é realizada na Grécia em setembro e é obrigatório um tempo abaixo de 10h30 em corridas de 100 km para ser aceito. Mas, com as mudanças que ocorreram no meu treino e até na minha relação com a corrida decidi que Passatore seria meu objetivo final.
A largada ocorreu exatamente às 15 h do sábado 31 de maio, e participaram mais de 1.300 corredores. Digamos que foi uma largada típica italiana, uma bagunça total, sem nenhuma marcação, apenas a faixa de largada e o organizador da prova gritando que se algum corredor não passasse no tapete de cronometragem da largada, seria automaticamente desclassificado. E, assim, começou a minha aventura nos 100 km de Passatore.
O início foi festa e já com um cenário magnífico, pois a saída foi no centro de Firenze (ou Florença) ao lado da Catedral Duomo, simplesmente maravilhosa, com centenas de pessoas nas ruas festejando e saudando os corredores, além da presença da minha namorada Larissa que foi me dar força neste desafio tão importante na minha vida, e do Edu, meu apoio durante a corrida, e sua esposa Luciana.
Tão logo saímos da cidade, vi a placa Fiesole e uma seqüência de subidas que começaram no km 5 e foram até o 25. A má surpresa foi que o trânsito não tinha sido interrompido e eu precisava literalmente dividir minha atenção com os carros, calçada, corredores, paisagem, subida, meu corpo, meus batimentos e também dois detalhes a mais que eram alguns corredores na contramão fazendo sua corrida diária e o barulho de milhares de italianos falando ao mesmo tempo. O lado bom disto tudo é que não conseguia nem imaginar que iria correr 100 km.
Poucos e confusos abastecimentos
Os pontos de apoio foram outro aprendizado. Eram a cada 5 km, bem curtos e apenas de um lado; tinha que ser rápido para pegar, e só no segundo consegui achar água sem gás, pois água com gás ocupava a maior parte da mesa, junto com chás, água com sal, café e vinho (dá para acreditar?). Além da confusão nas mesas, todas as bebidas eram servidas quentes. Comecei a me preocupar com a minha hidratação, mais fui em frente.
Até o km 25 consegui colocar tudo no eixo e começar a concentrar-me melhor na prova em si, além de ser o início da descida, pois até então tudo foi subida. Meu batimento sob controle, gel, suplemento e tudo mais em ordem, apesar de me perguntar tão cedo na corrida o que estava fazendo aqui. Sempre foi importante para mim largar em qualquer prova que fosse com um porquê e a visão da minha chegada, algo que me impulsionasse e me abastecesse de energia durante a corrida. Como nada disto estava presente, nem ao menos sabia como era a linha de chegada, minha cabeça deu mais trabalho que imaginava. Pensei várias vezes em desistir até o km 35, hora por medo de estar com pneumonia, pois larguei com uma forte gripe que não consegui curar nos 15 dias que antecederam a prova, hora por achar que estava sacrificando meu corpo, e hora por pura falta de motivação, mas vi que não tinha nenhuma van para dar carona até a chegada, muito menos avistei o Edu que deveria me acompanhar a partir do km 30, quando já era permitido. Então, a única opção era continuar correndo.
Ao passar pelo km 30, vi que estava bem, pois apesar das subidas completei em 3h07 o que me mantinha numa ótima média. Estava ansioso para encontrar o Edu, pois precisava de chocolate, água, Coca-Cola, mas nada dele aparecer. Dai que na parada seguinte, no km 35, aproveitei para comer o que podia: pão com mortadela, Pepsi quente (foi o único posto com refrigerante), banana, vários copos de suco de banana, biscoito, foi um banquete. O ponto alto foi a mortadela! Tudo que aprendi sobre não comer e fazer nada que nunca tinha feito em treino acabei esquecendo naquela hora, e comi o que o corpo estava pedindo, o que tinha disponível naquela hora, e foi ótimo, pois comecei a correr mais animado.
No km 35 aconteceu um fato bem pitoresco, pois uns dias antes de ir para a Itália, a minha madrina Ana comentou que seu amigo Ferdinando iria participar da corrida e me avisou para dar um oi caso o encontrasse. Claro que imaginei ser uma brincadeira, pois numa prova tão longa e com muitos corredores seria impossível isto ocorrer. Mas estou eu numa longa reta, animado, mas ainda discutindo dentro de mim que faltavam “apenas” 65 km, quando leio atrás da camiseta de um corredor que estava passando o nome Ferdinando. Com meu italiano macarrônico, somado aos 35 km de prova, improvisei um diálogo e não é que era ele mesmo; fiquei surpreso e o fato acabou ajudando a me distrair e não pensar que llgo em seguida iria começar a mais difícil parte da prova, que tem até uma premiação à parte: os 15 km de Borgo S. Lorenzo até Colla di Casaglia, saindo de 195 para 913 m acima do nível do mar.
A temível subida de 15 km
Desde o início até o final essa subida é dificílima, sendo impossível correr o tempo todo. Precisava ir mesclando trote com caminhada, mas meu corpo começou a esfriar muito em função dessa queda de ritmo, mas não tinha jeito. Procurava manter a tranqüilidade, apesar de detestar caminhar durante uma prova, mas não podia nem pensar em desgastar-me a ponto de não conseguir completar. As 2h25 que duraram estes penosos 15 km foram as mais importantes da corrida, pois comecei a observar tudo ao meu redor, a paisagem, os corredores, eu, uma plaquinha pequena marcando que estava completando a distância de uma maratona, os carros, as motos, absolutamente tudo.
No km 45 finalmente apareceu o Edu. Aproveitei para dar uma refrescada no corpo, fiz uma bela hidratação, reforcei a alimentação e larguei… Realmente, estava largando para uma nova corrida, porque daquele ponto em diante estava revitalizado e praticamente não andei mais; segui firme e forte para o topo da montanha para iniciar uma descida de 12 km, após ter completado a primeira metade da corrida em 6h05.
Ao completar a primeira metade e totalmente revitalizado percebi que o pior já tinha passado, mesmo tendo me enganado completamente, pois pela altimetria (figura) da organização a segunda parte supostamente seria tudo descida, mas era apenas uma descida forte de 12 km e depois mesclava subida, descida e retas durante 38 km. Mas estava com vontade e garra para ir adiante, mesmo sabendo que meu objetivo de 10h30 já não era possível, mas não estava preocupado, pois o que importava era curtir cada momento.
Já eram mais de 9 horas e o sol estava indo embora, começando a esfriar rapidamente. Fiz um ritmo bem forte durante a descida, completando-a em 1h04, sendo que passei diversos corredores; parecia um carro de corrida fazendo tangência em todas as curvas, já que era uma estrada bem sinuosa, e consegui aproveitar o máximo deste momento de “descanso”. Conforme combinado com o Edu, passei a fazer uma rápida parada a cada 5 km para tomar suplemento, hidratar e comer, já que a partir deste momento já tinham sido mais de 60 km percorridos e a atenção ao corpo tinha que ser redobrada, pois já estava praticamente escuro e a combinação frio, cansaço e escuridão com certeza não seria favorável, além de ser uma combinação que nunca tinha testado, pois nunca treinei durante a noite.
Dores e confusão
Estava correndo há mais de 9h30, mais de 80 km percorridos, e comecei a sentir muito cansaço e um certo descontrole do corpo. Fiquei preocupado com os carros, pois meus reflexos estavam bem lentos, sendo que minha energia e atenção eram para manter minhas pernas em movimento, sempre correndo. Já não estava raciocinando bem; minhas paradas nos postos de abastecimento eram inusitadas, pois hora comia chocolate com o Edu, hora queria algo bem salgado, tal como mortadela e até ovo cozido acabei devorando. Olhava para as pessoas e tudo estava um pouco em câmera lenta, mas tinha convicção que iria terminar, que estava bem.
Próximo do km 85 comecei a ter muita dor no braço e no pé esquerdo, talvez pelo excesso de inclinação da estrada, mas sabia que mais alguns quilômetros adiante estaria batendo um recorde pessoal, pois nunca tinha corrido mais que 89 km, que é a distância da Comrades na África do Sul. Isto me deu um misto de alegria com tensão, pois a partir deste momento não saberia como meu corpo iria reagir, já que nas duas vezes que completei a Comrades os últimos quilômetros foram muito sofridos e percebi que aqui não seria muito diferente, pois levei 1h25 para percorrer do km 80 ao 90. O importante é que agora faltavam apenas duas “corridas” de 5 km de um total de 18 que já tinha feito; a partir deste momento o importante era cada km completado, pois já tinham passado 10h42 de corrida e eram quase 2 horas da manhã.
A corrida estava em ritmo bem lento, cada corredor que eu passava era visível o esforço e o cansaço de cada um para superar cada metro da estrada. Além disto, muitos caminhavam, sendo literalmente empurrados pelos seus pacers de bicicleta que eram permitidos na corrida. Tinha plena certeza que iria completar a prova e já sentia que estava me aproximando da cidade, pois as luzes estavam ficando mais intensas e o fluxo de carro estava maior. A lentidão das minhas pernas era compensada pela agitação dos meus pensamentos que me alimentavam com mais garra e determinação de estar tão resistente e forte para agüentar tudo que já tinha passado, não só da corrida, mas durante os treinos que iniciei em janeiro no qual foram 1.126 km, sendo uma média de 16 km por treino nos 68 dias que corri durante estes 5 meses.
Ânimo no final
Estou no km 95, o Edu encontrou-se comigo após ter ido guardar o carro na chegada, mas num determinado momento decidi completar a corrida abaixo de 12 horas, coisas de quem já não está raciocinando nada, e o Edu teve tempo apenas de me entregar a bandeira brasileira. Logo em seguida um italiano literalmente aproveitou o meu ritmo para ir ao meu lado até o km final, um puxando o outro, nem lembro qual era a conversa, mas recordo plenamente que ambos diziam palavras de ânimo e força para conseguirmos completar abaixo de 12 horas. Só sei que quando cheguei no último km desacelerei, coloquei a bandeira no meu corpo e vibrei, vibrei muito, apesar de não estar acreditando que tinha corrido 100 km, ou melhor, 101 km, pois a marcação da corrida não estava correta, tanto pelo meu relógio como pela informação da organização da prova de que havia uma margem de erro na marcação oficial. Mas o importante não era apenas a chegada, mas tudo que aconteceu pelo caminho, caminho da vida que me fez começar a correr e mostrar-me o quanto sou forte para superar qualquer adversidade na minha vida e em qualquer objetivo que tiver pela frente e realmente quiser superá-lo de corpo e alma!
boxe
Comparação com a Comrades
Após duas Comrades, em 2006 e 2007, posso dizer que Passatore, apesar de ter “apenas” 11 km a mais, é uma prova muito diferente e bem mais desafiante por diversos motivos:
– Pontos de abastecimento: são menores e oferecem pouquíssimas opções para o corredor, além de toda bebida ser servida quente e não ter nenhum isotônico. Na Comrades são a cada 1,6 km, com água, coca (gelada), banana, isotônico, batata salgada, biscoitos.
– A corrida acontece por estrada e os carros circulam normalmente, bem diferente da Comrades, já que lá as estradas ficam completamente fechadas ao trânsito. Na Passatore, após uma certa quilometragem a atenção tem que ser redobrada para não ser atropelado.
– A largada da Comrades é de madrugada, enquanto que na Passatore é a tarde e boa parte da prova é realizada à noite, o que aumenta o risco de lesão, quedas, atropelamento.
– A segurança também é muito crítica, pois não existe nenhuma ambulância nem carros da organização circulando durante a prova, sendo que caso aconteça algo entre os postos de abastecimento e não tenha nenhum carro de apoio lhe acompanhando, muito provavelmente irá depender da boa vontade de algum corredor ou de um motorista para ajudá-lo. Novamente bem diferente da Comrades.
– As subidas são muito mais íngremes e contínuas na Passatore do que na África, sendo que uma é de 15 e outra de 20 km.
– Enquanto na Comrades largam aproximadamente 11 mil corredores, são por volta de 1.300 na Passatore, o que faz com a corrida seja mais solitária e sem muita interação com os outros corredores, mas a paisagem (até escurecer) realmente faz a diferença, pois a Toscana proporciona visuais belíssimos.
– O tempo-limite na Passatore é bem tranqüilo, podendo a prova ser feita quase que toda caminhando, já que os participante podem chegar até às 11 da manhã, totalizando portanto 20 horas. Na Comrades quem chega depois de 12 horas é desclassificado e não ganha medalha.
– Participam poucas mulheres (ao contrário da Comrades). Este ano eram 1.280 homens e 83 mulheres, sendo que completaram 984.
A inscrição custa 50 euros e o site da prova é www.100kmdelpassatore.it
Ely Behar é responsável pela importação dos tênis Brooks para o Brasil.