História Redação 15 de junho de 2018 (0) (859)

“Extra: grande campeão é derrotado na São Silvestre!”

por Nelton Araújo

Trinta minutos antes da 73ª edição da Corrida de São Silvestre, no dia 31 de dezembro de 1997, ele parecia ser só mais um entre os atletas que, embora de elite, eram anônimos para a maioria das pessoas ali presente. Nem seu número de peito com apenas dois dígitos, o 13, nem o fato que tinha vindo trotando do estacionamento do prédio da FIESP e pulou a grade que dava acesso ao vão do livre do MASP, área reservada à elite, ao lado da principal esperança brasileira na prova, o conterrâneo Vanderlei Cordeiro de Lima, chamou a atenção dos repórteres. Fez alguns alongamentos, e batia nas pernas, como se quisesse acordá-las, observando o burburinho ali próximo.
Pois ali perto estava o sempre simpático Paul Tergat, queniano bicampeão da prova e que acabara de bater o recorde mundial dos 10.000 metros. Não se importou em parar para dar algumas palavras aos repórteres e nem mesmo perdia a paciência de perder alguns minutos do seu aquecimento para tirar fotos sorridentes com quase todos ali em volta. Se perguntassem a eles, o queniano não era só favorito, mas já era o vencedor da prova. Tais elogios da imprensa não o impressionavam, e pedia licença para se alinhar na largada, ao lado daquele rapaz loiro, portando o numeral 13. No nervosismo da largada, não deve ter reparado que já tinha se encontrado com o rapaz algumas vezes. E 44 minutos e 40 segundos depois da buzina de saída, todos ali presentes ficariam extasiados com uma das mais disputadas finais que a São Silvestre já recebeu. Poucos imaginariam aquele desfecho: nem o público que lotava a Avenida Paulista, nem Paul Tergat e muito menos o paranaense Emerson Iser Bem, o protagonista da nossa história.
Não, não é de sempre que os africanos estabeleceram uma tradição de serem os favoritos na principal prova do calendário brasileiro. Na verdade, até 1991, a imprensa comentava sobre o desafio dos africanos em quebrar a “tradição de fracassos na prova”. A primeira menção de um africano inscrito na elite da São Silvestre sequer era queniano ou etíope: foi o tanzaniano Zacharie Barie, na edição de 1986 e que, pela falta de maiores notícias depois da prova, não deve ter ido tão bem. Azar parecido aconteceu com Ibrahim Hussein, o primeiro queniano a disputar a prova em 1988, com ares de favoritaço, pois era o atual campeão da Maratona de Boston e já tinha o título da de Nova York em seu currículo. Nada deu certo no dia e o queniano terminou a prova na 231º posição. O último favorito foi o queniano Peter Koech, 1989, e que conseguiu ser ainda pior, chegando na 255ª posição. Emerson Iser Bem, na época, assistia à prova pela TV, sonhando em um dia está lá, mas ainda era cedo: com apenas 16 anos tinha saído de sua cidade natal para correr em Londrina, se tornando o campeão juvenil nos 5.000 metros.

DOMÍNIO QUENIANO. O jogo começou a virar quando, em 1992, o queniano Simon Chemwoiywo superaria o mexicano Arturo Barrios, então bicampeão da prova, em um sprint espetacular nos últimos metros. Ganhou de presente o bicampeonato no ano seguinte, numa das chegadas mais atrapalhadas da competição: no sprint final, ele e o etíope Fita Bayisa acompanharam o carro que fazia a transmissão para TV e entraram na faixa errada da Avenida Paulista. O queniano, que já estava ficando para trás no sprint, foi mais rápido para perceber o que estava acontecendo e conseguiu reverter a situação, ganhando de um inconformado Bayisa.

Tentaria o tricampeonato mais duas vezes: em 1994 foi facilmente superado pelo jovem Ronaldo da Costa. Já em 1995, enquanto as câmeras esperavam um novo confronto entre o queniano e o brasileiro, surpreenderam-se com outro queniano, alto, esguio, mas que não constava entre os favoritos. Era um tal de Paul Kibii Tergat, que não apenas venceria, como estabeleceria o seu recorde, 43:12, ainda intocado depois de 22 anos. Pouco mais de um minuto depois, na 50ª posição, o jovem Emerson Iser Bem realizaria seu sonho de correr a São Silvestre, mas com gosto amargo de terminar em uma posição ruim para alguém que já era da elite.

Alguns diziam que o caso de Paul Tergat era sorte de principiante. Iser Bem sabia que não, pois já o conhecia do mundo das pistas e, sobretudo, do cross country. Ambos começaram suas carreiras profissionais em 1992, mas de formas diferentes. O paranaense de Santo Antonio do Sudoeste, cidade fronteiriça com a Argentina, era uma jovem promessa da equipe de atletismo Funilense (embrião do que veio se tornar a BM&F), e com apenas 18 anos foi convidado a participar do mundial de cross country sub-20 e seis meses depois do Campeonato de Juvenis, em Seul, Coreia do Sul, onde 8º colocado nos 5.000 metros rasos, com 13:59, recorde brasileiros sub-20 até hoje, em prova vencida pelo etíope Haile Gebrselassie.
Já Paul Tergat começou a treinar em 1991, aos 22 anos. Embora nascido no “berço dos grandes fundistas”, o Grande Vale do Rift, não se interessou a princípio pelo atletismo. Com seus 1,82 m, bem acima da média dos fundistas, tentou carreira no basquete quando adolescente. Sem perspectiva de sucesso no esporte e já ingresso nas forças armadas de seu país, onde era sargento, passou a correr com seus pares para manter o condicionamento. Só que começou a chamar atenção dos treinadores por sua capacidade física e biomecânica. Depois de um ano de preparação, foi lançado ao mundo e, três anos depois, era campeão mundial de cross country e já tinha meia maratona na casa de 58 minutos. Mas chegou à sua primeira São Silvestre como um ilustre “desconhecido” para muitos especialistas que cobriam a competição.

CARREIRAS VITORIOSAS. Na edição de 1996, Emerson Iser Bem assistiria, bem de perto, o queniano vencer a prova novamente. Agora bicampeão, Paul Tergat chegava a São Paulo em 1997 com ares de grande estrela. Não tanto como “mito”, adjetivo dado anacronicamente, depois de tudo que o queniano viria a conquistar. Contudo, a temporada de 1997 tinha sido especial para o sargento Tergat: conquistou o tricampeonato mundial de cross-country (posteriormente viria a ser pentacampeão), obteria seu recorde pessoal nos 5.000 m, com o tempo de 12:49, e nove dias depois, em Bruxelas, quebrava o recorde mundial dos 10.000 m, com 26:27.85. A temporada só não foi perfeita, porque não conseguiu conquistar o ouro nos 10.000 m do Mundial de Atletismo, em Atenas. Nem tanto por não ter conseguido o ouro, mas por ter perdido, mais uma vez, para o etíope Haile Gebrselassie, grande algoz durante toda sua carreira.
Igualmente, foi uma ótima temporada para o paranaense que, sete anos antes, aceitou deixar a bolsa de meio salário mínimo dado pela prefeitura de Londrina para ir a Cosmópolis, em São Paulo, treinar com o icônico Asdrúbal Ferreira Batista, mentor de atletas do calibre de Adauto Domingues. Tudo bem que não eram resultados tão midiáticos quanto os de Vanderlei Cordeiro de Lima, que já tinha migrado para a maratona.
Iser Bem, o “Alemão”, como era chamado entre seus colegas da Funilense, participou da mesma final do Mundial de Cross Country que consagrou Tergat. Mais à frente obteve seu recorde pessoal nos 5.000 m na Holanda, onde correu para 13:35.43. Em julho, no Troféu Brasil, foi segundo nos 5.000 metros e superou Vanderlei nos 10.000 m, chegando na terceira colocação. Venceu a Meia Maratona Speed Stick, em São Paulo: segunda meia maratona na carreira, segunda vitória. Foi convidado para integrar a equipe brasileira que participou da tradicional maratona de revezamento “International Ekiden”, na cidade japonesa de Chiba, em novembro. Fazendo a primeira perna, passou os 10 km para 27:59, seu melhor tempo na distância. Sua programação depois disso era fazer a base na cidade de Campos de Jordão (pela altitude) e descer para vencer algumas provas pequenas a fim de fazer caixa para sua temporada de cross country na Europa, onde, em 1996, foi o primeiro brasileiro a vencer uma etapa do campeonato promovido pela IAAF, na cidade portuguesa de Albufeira.
Mas nenhuma das conquistas acima foi noticiada pela imprensa (a não ser os leitores da Contra-Relógio ficavam sabendo). Além dos jornais, até os próprios atletas e técnicos não davam muito favor a esses feitos. Exemplo disso foi o artigo no jornal Folha de S. Paulo, escrito por Ricardo D’Angelo, treinador da Funilense, onde, apesar de ter falado das qualidades de Vanderlei Cordeiro e de Iser Bem, ambos seus atletas depois da morte de Asdrúbal Batista em 1992, em um rompante de sinceridade declarou que “Paul Tergat é o favorito, pois trará consigo nesse ano mais um título: o de recordista dos 10.000 m”, disse D’Angelo.

ALTA PREMIAÇÃO. Ao chegar a São Paulo, Paul Tergat desvencilhava-se de duas principais perguntas. A primeira era quão fácil seria para ele vencer a São Silvestre. Sempre diplomata, tinha uma resposta pronta: “Tenho fortes adversários, todos merecem muito respeito. Correr 15 km com o calor que está em São Paulo é muito difícil”. A segunda era se ele recebeu da organização algo em torno de U$30 mil dólares de cachê para tentar o tricampeonato. Essa pergunta ele simplesmente não respondia.
Seu silêncio respondia à questão e há indícios que a organização tinha aberto o cofre para trazer os melhores atletas. Embora não se saiba exatamente quanto o queniano ganhou, foram utilizados U$ 100 mil em cachê para 40 corredores de elite, sendo metade atletas africanos. Paul Tergat, obviamente, seria o cachê mais polpudo. Além disso, os vencedores da prova receberiam o prêmio de U$ 10 mil, e os melhores brasileiros um Gol 0 km.
Em busca da premiação desembarcaram na última semana de dezembro uma constelação de excelentes atletas africanos. Como o queniano Shem Kororia, que tinha sido campeão mundial da meia-maratona, com tempo de 59:56. Ou os etíopes, já experientes em São Silvestre, Worku Bikila e Fita Bayiesa, o homem da chegada atrapalhada em 1993. Mas entre todos que estavam hospedados no hotel Braston, na Consolação, o que Paul Tergat mais temia era o sul-africano, Hendrick Ramaala. O atleta, amigo de Iser Bem, estava melhorando suas marcas no cross country e sua especialidade era justamente as subidas. Além disso, Ramaala, bem como o também sul-africano John Morapedi, eram partes de um trabalho desenvolvido pelo cientista Tim Noakes visando medalhas no atletismo para a África do Sul na Olimpíada de Sidney, em 2000. Uma ausência sentida foi da equipe mexicana, que desempenhou um trabalho de protagonismo ao longo dos anos 80 e 90 na São Silvestre. O único grande nome dos nossos vizinhos era o equatoriano Silvio Guerra.
Enquanto os africanos entravam na cozinha do hotel para fazer seu úgali (uma espécie de pamonha que é o principal alimento deles antes de treinos e competições) e decidiam que jogo de equipe iam fazer, o esquadrão brasileiro sofria baixas. Os principais nomes, além de Vanderlei Cordeiro, era Ronaldo da Costa e Luis Antônio dos Santos, os quais, lesionados, não entraram na prova. Só não seria um voo solo de Vanderlei, pois seu amigo, “Alemão”, pediria para Ricardo D’Angelo inscrevê-lo na prova.

TREINO CONVINCENTE. A Funilense não recebia o dinheiro do patrocinador já havia três meses; logo, a principal fonte de renda dos atletas era a premiação das provas. Iser Bem, quando voltou do Japão, manifestou a vontade de correr novamente a São Silvestre; em 1996, como parte da preparação para as provas de cross country de janeiro de 1997, Iser Bem largou na São Silvestre a um ritmo médio de 2:40/km, distanciando-se demais do pelotão que ia na cadencia de Paul Tergat. Só que o combinado era que Émerson corresse apenas 5 km, e assim, quando chegou ao Elevado Costa e Silva, abandonou a prova. A planilha foi cumprida perfeitamente, mas ele não gostou da repercussão midiática.

Um ano depois, ele queria mudar essa imagem, porém Ricardo D’Angelo ficou reticente, dizendo que só valia a pena se ele terminasse entre os cinco primeiros, e que talvez fosse arriscar muito e, no final, não ter caixa para ir a Europa no inicio do ano. Iser Bem não contestou, mas resolveu descer até Barueri para correr a tradicional Corrida de São Silveira, que tinha boa premiação. Correu os duros 8 km e ganhou, faturando uma premiação que lhe dava certo respiro.
Ele mesmo admitia que estava em uma fase muito boa. Seus treinos eram realizados em 11 a 12 sessões semanais, com volume de cerca de 160 km a 180 km. Havia muito trabalho de força, devido ao cross. Mas mesmo com todos os bons resultados, ele ainda precisava daquele treino que lhe desse a confiança para ligar para o seu treinador e pedir a inscrição, a despeito de tudo. E ele surgiu no dia de Natal, seis dias antes da prova, quando o paranaense foi sozinho até a pista da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, a Esalq, em Piracicaba, para fazer um treino de 3×3.000 m a 2:50/km, ritmo da São Silvestre. Voltou para casa com sorriso no rosto e logo ligou para D’Ângelo. Curiosamente, no intervalo de um minuto entre os tiros, ele escutou um casal debochar da insanidade do ritmo dele: “Até parece que vai vencer a São Silvestre”.
A organização se preparava para ter uma das edições mais quentes da década. Houve um aumento no número de copinhos de água, de 150 mil para 165 mil em cinco postos ao longo da prova. Além disso, pela primeira vez, houve a distribuição de 90 mil copos de isotônicos em três postos, mesmo número de chuveiros para combater o já esperado calor, nos km 5, 12 e 14. E os banheiros químicos, novidade na edição de 1996, foram aumentados de 44 para 60, dispostos na Avenida Paulista.
Isso ao custo de 20 reais, que, ajustando aos dias de hoje, daria um pouco mais de 90 reais, embora a conta não seja tão simples assim. Os inscritos chegaram aos 11.500 (somente 9.600 completaram a prova), que podiam se inscrever até dois dias antes da prova, facilitado, sobretudo, pelo fato de que não havia sistema de chip eletrônico, tendo ainda os participantes que entregar uma senha ao final para ter seu resultado validado.

CALOR EM 1997. Ponto para organização e para a moça do tempo do Jornal Nacional: às 17 horas daquele dia 31, a temperatura estava em 32,6 graus com 53% de umidade, um verdadeiro “inferno” para quem estava na capital paulistana. Enquanto as principais estrelas internacionais estavam próximas da Paulista, Iser Bem, Vanderlei e outros atletas da Funilense se encontraram na sede da equipe e foram levados por uma van até a largada, propositalmente bem antes do início. Iser Bem comenta que eram umas 13 horas quando o carro foi chegou ao estacionamento do prédio da FIESP, onde ele pegou um papelão, colocou no chão, fez de algumas roupas um travesseiro e dormiu de sonhar. Acordou ainda a tempo de ver a vitória da equatoriana Martha Tenório e junto com Vanderlei aqueceram e foram trotando até a largada. Se mesmo com a figura conhecida de Vanderlei Cordeiro, eles tiveram que pular a grade, imagina se estivesse sozinho?
O ritmo do início da prova já mostraria que seria uma edição mais tática e menos rápida. Paul Tergat começou a sua prova exatamente como tinha dito ao jornal O Globo dois dias antes: “Nos primeiros cinco quilômetros vou analisar o ritmo dos outros e ver o que faço”. Já Iser Bem saiu com a meta de terminar entre os dez primeiros, porém ele já se conhecia e sabia que nunca tinha obtido bons resultados saindo de trás. Logo, se juntou ao grupo da frente na descida da Consolação, reconhecendo o sul-africano Hendrick Ramaala, rival nas provas de cross, e amigo nas noites de baladas pós-competições. Imagine os dois, a 2:50/km, trocando apertos de mão e palavras de boa sorte; pois bem, é o que o paranaense disse que aconteceu.
Passaram os 5 km no “Minhocão” para 14:20, lento em comparação aos outros anos, mas forte se pensarmos no calor que fazia. Só para efeito de comparação, em 1995, quando Tergat bateu o recorde da SS, os termômetros não passaram de 24º C. A partir daí já se destacaria o pelotão que seguiria junto até a subida da Brigadeiro. Capitaneado pelo recordista mundial dos 10.000 m, seguiam, lado a lado, os sul-africanos Ramaala e Morapedi, além de Iser Bem e Vanderlei Cordeiro, que se ajudavam, pegando água um para o outro, e enquanto trocavam algumas palavras, olhavam ao redor, vigiando Paul Tergat, evitando de acelerar precocemente. “Senti que podia abrir, mas pensei ‘Só tem fera aqui, vou continuar junto deles'”, lembra Émerson. Dois quilômetros depois, o equatoriano Silvio Guerra se juntou ao pelotão que iria completar o pódio.

Passaram os 10 km para um lento 30:24. Nas ruas, o público gritava “Paul Tergat”, para desconforto de Iser Bem. Na transmissão, o narrador ainda parecia incrédulo com a presença do atleta número 13 no pelotão da frente, e mesmo ouvindo o comentário de Lauter Nogueira, que o “Alemão” não era um desconhecido qualquer e contando suas melhores marcas, ainda insistia em frases como “Émerson tenta acompanha as passadas de Vanderlei Cordeiro.”

EM BUSCA DO CARRO. Naquele momento da prova, a meta de Iser Bem de terminar entre os 10 primeiros parecia realizada, mas então ele criou outra: a de estar no pódio. Para isso, bastava que terminasse à frente de apenas um dos seis do pelotão que ali se via rodeado, de preferência, de Vanderlei Cordeiro. Não por uma rivalidade enrustida, mas pelo fato prático que o primeiro brasileiro levaria o carro zero, uma ajuda e tanto para quem estava juntando dinheiro para ir à Europa. Não seria uma tarefa fácil deixar Vanderlei para trás: ambos se conheciam muito bem e desde setembro estavam em Campos do Jordão treinando juntos. Além dos tradicionais longos no Horto Florestal, dois treinos eram bem comuns na planilha deles. Um era dois tiros de 5 km para 14:40. O outro eram sessões de 20 a 26 tiros de 400 metros.
Paul Tergat começou a correr a sua prova quando passaram pelo centro velho de São Paulo, na altura do km 12. Ao ver o queniano acelerando gradativamente, Zequinha Barbosa, que fazia sua estreia como comentarista da Globo, acompanhando os atletas na garupa de uma moto (como Bill Rodgers fez na maratona olímpica feminina em 1984), chegou ao lado de Vanderlei Cordeiro e gritou que era, nas palavras dele, “momento de focalizar” e foi respondido afirmativamente. Não sabemos se realmente Vanderlei entendeu as palavras de Zequinha, mas o fato é que o pelotão tentou responder à investida do queniano.
Porém, o queniano chegava à temida Avenida Brigadeiro Luiz Antônio já com uma distância de 50 metros desse pelotão. A Brigadeiro é um longo trecho de um pouco mais de 2 km, onde se sobe cerca 60 metros até chegar de volta à Avenida Paulista. A diferença para os outros corredores era suficiente, segundo a transmissão, para a vitória fácil de Tergat, já que essa parte era o “quintal” do queniano.
Cinquenta metros atrás, Iser Bem, Vanderlei e Ramaala travavam uma disputa interna de variação de velocidade, coisa que a transmissão não consegue captar e só quem está lá pode dizer. O sul-africano, que afirmava que o trecho da Brigadeiro era o que mais lhe agradava, investiu em um sprint de cerca 30 segundos para se livrar dos brasileiros. Para surpresa de Émerson, Vanderlei não respondeu à altura; nos longos do Horto Florestal, o final era em uma sinuosa subida, onde o “Alemão” sempre ficava para trás daquele que seria o medalhista de bronze na maratona olímpica, em Atenas. Segundo ele, só nas últimas duas semanas de treinamento é que conseguia, com muito esforço, emparelhar com seu companheiro de equipe.

A SUBIDA DA BRIGADEIRO. Rammaala, ao ver que não tinha se desgarrado totalmente, resolveu sprintar novamente. Sabendo que já tinha vencido o sul-africano em algumas provas de cross-country e, sobretudo, temendo que Vanderlei estivesse guardando uma carta na manga, Iser Bem novamente respondeu à investida, mas agora com um lema “não vou soltar mais”. E realmente não soltou. O feitiço virou contra o feiticeiro, e Ramaala ficou, enquanto o “Alemão” acelerava olhando para trás, pois agora seu objetivo nesse momento era justamente escapar de Vanderlei e, assim, ganhar o carro. Em relação a Paul Tergat, considerava uma ousadia inconsequente ir para o embate contra o queniano de passadas perfeitas e expressão serena, que soava que ele poderia acelerar quando quisesse.
Quando Émerson resolveu olhar de vez para frente, viu Luis Minardi, técnico do Cruzeiro, jogando água na cabeça de Tergat. A raiva do paranaense do treinador estar ajudando um adversário foi superada quando o mesmo jogou água também nele, o que “foi maravilhoso, pois o calor era realmente demais”. Mas para Tergat, a atitude de Minardi foi desastrosa: em algumas entrevistas disse que aquilo desencadeou uma dor nas costas, em outras um desconforto estomacal, que lhe impediram de aumentar o ritmo. Provavelmente o que aconteceu foi que Minardi tornou-se uma espécie de “padre irlandês” tupiniquim, pois foi em função do susto de um homem todo de azul jogando água que o queniano se desestabilizou.
A princípio, o locutor da Globo não deu tanta importância ao fato, enganado pelo ritmo instantâneo de cada um que aparecia na tela (o queniano a 20 km/h e Iser Bem a 18 km/h), e passou a falar, naquele momento crucial da prova, das obras sociais de Tergat. Enquanto falava sobre o que todo espectador não quer ouvir no final de uma competição, deixou de ver que o queniano diminuiu seu ritmo para cerca de 17 km/h, cedendo ao sprint que o paranaense dava, na parte mais íngreme da Brigadeiro, cerca de 700 metros do final da prova, não somente chegando, mas ultrapassando o queniano, fazendo o locutor acordar e exclamar que “o que parecia impossível acontece na São Silvestre”.

A ULTRAPASSAGEM POR TERGAT. Nesse instante, aqueles que gritavam Paul Tergat nas calçadas da Brigadeiro, passaram a gritar “Brasil”; afinal, ninguém sabia o nome daquele rapaz de 24 anos de traços germânicos, que realizou sua primeira prova em uma competição que cruzava as fronteiras do Brasil com a Argentina e, ousado, quis acompanhar os líderes, não aguentando depois de 2 km, e voltou para casa todo dolorido. Agora, igualmente ousado, estava à frente de um dos maiores nomes do atletismo mundial. Aí você deduz que nessa hora ela acreditava na vitória, quando entrou para os últimos 300 metros na Paulista. Que nada; veja só o que ele disse em entrevista ao podcast “Por falar em corrida” em junho desse ano: “Eu não tinha a sensação de vitória, porque imaginava que ele pudesse reagir (…), porém, pensei: se ele quiser ganhar mesmo, vai ter de dar tudo, e aí disparei.”.
E deu certo: não houve nenhuma reação de Paul Tergat, a ponto das quatro motos que guiavam os líderes cercarem, faltando 150 metros, Émerson, o que já era uma indicação de não havia ninguém por perto. Venceu a São Silvestre com o segundo pior tempo, até então, desde que a corrida ganhou, em 1991, o formato atual. Mas quem ligaria para isso em uma edição tão quente que fez sete atletas de elite serem removidos em ambulâncias. Com a vitória de Iser Bem, o Brasil completa o quarto ano consecutivo com vitória na São Silvestre: Ronaldo da Costa em 94, Carmem de Oliveira em 95 e Roseli Machado em 96. A melhor brasileira em 1997 foi Viviany Anderson, 4ª colocada, que ganhou seu 4º carro na carreira.
Iser Bem terminou a prova e foi comemorar com a esposa e os dois filhos, não participando da cerimônia de premiação do dia seguinte, o que causou grande mal estar junto aos organizadores. Uma semana depois, enfim, tinha recursos para ir disputar as suas competições de cross country na Europa, como se nada tivesse acontecido. Tentou voltar à São Silvestre no ano seguinte, mas ficou somente na sexta colocação. Sua carreira foi até 2006. Ele Mora no Vale do Paraíba, orienta alguns corredores, organiza provas e faz trabalhos de cronometragem.
Já Vanderlei Cordeiro não tinha nenhuma carta na manga e terminou fora do pódio, na sexta colocação. E Paul Tergat? Bem, já são bem claras as façanhas que ele fez nas pistas e nas provas de rua, porém, naquele último dia de 1997, deu como principal razão para perder para Iser Bem nem tanto o caso da água, mas o fato de não conhecer o paranaense. A mesma desculpa que ele deu, nove anos depois, quando foi derrotado na Maratona de Nova York por Marilson Gomes, que viria a se tornar o maior vencedor brasileiro na São Silvestre.

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